Prisão perpétua à brasileira
Mesmo sem condenação, seis jovens não têm data para sair de uma espécie de cadeia onde deveriam receber tratamento psiquiátrico. Saiba como vivem esses ex-internos da Febem que estão encarcerados em São Paulo
Solange Azevedo
Apesar do nome sugestivo, a Unidade Experimental de Saúde (UES) não é um hospital. O atendimento psiquiátrico ali é precário. Secundário, até. Embora ostente muros de sete metros de altura, seja vigiada por câmeras e agentes penitenciários, tecnicamente, ela não pode ser chamada de prisão. Afinal, os seis rapazes que vivem no local não estão cumprindo pena nem têm data definida para sair. Também não se trata de um centro de ressocialização porque não há atividades pedagógicas e laborais que ajudem a prepará-los para retomar a rotina do lado de fora. Nas últimas semanas, a reportagem de ISTOÉ entrevistou profissionais do direito e da saúde mental, além de integrantes do governo paulista, para desvendar os mistérios que cercam a criação e a manutenção da UES. Por que ela existe? Como funciona? “A Secretaria da Saúde não permite a entrada de mais nenhum interno na Unidade. Ela está fechada”, garante Arthur Pinto Filho, promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo. “Precisamos encontrar soluções para os seis jovens que estão lá.”
A UES nasceu vinculada à Fundação Casa (antiga Febem). Foi concebida para abrigar infratores diagnosticados com transtorno de personalidade. A ideia era oferecer atendimento especializado enquanto eles cumprissem medida socioeducativa. A Unidade, porém, nunca serviu ao propósito inicial e se tornou o que é a partir de um embate entre o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e o governo do Estado sobre o que fazer com Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha. Junto com quatro adultos, ele sequestrou e matou Liana Friedenbach e Felipe Caffé, em 2003. Felipe, 19 anos, tombou com um tiro. Liana, 16, acabou estuprada durante quatro dias e assassinada a facadas. A crueldade contra os adolescentes, estudantes do tradicional Colégio São Luís, motivou debates acerca da saúde mental dos criminosos e de propostas para a redução da maioridade penal. Como Champinha tinha 16 anos, estava sujeito à punição prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – três anos de internação.
Às vésperas da medida socioeducativa de Champinha terminar, a Justiça paulista tomou duas decisões baseadas num laudo que afirmava que ele sofria de transtorno de personalidade e que a probabilidade de reincidência criminal era alta: primeiro o enquadrou numa medida chamada “protetiva”, o que permitiria que permanecesse mais tempo na Fundação, depois o interditou civilmente e determinou sua internação psiquiátrica – em regime de contenção. “Além do transtorno de personalidade antissocial, Champinha tem retardo mental. Age por impulso. Não tem freios”, afirma o psiquiatra forense Paulo Sergio Calvo, que o atendeu durante três anos na Fundação. “Embora esse tipo de transtorno não tenha cura, se Champinha tiver excelente respaldo familiar e social e acompanhamento terapêutico rígido, seu potencial ofensivo pode diminuir. Infelizmente, casos como o dele são subdiagnosticados e os jovens saem da Fundação sem nenhum tratamento.”
As manobras jurídicas usadas para reter Champinha e os outros cinco jovens, embora desconhecidas do público, não eram inéditas em São Paulo. Antes deles, diversos infratores foram interditados e ficaram encarcerados além do que prega o ECA. A diferença é que saíam da Fundação ao completar 21 anos. Champinha tem 24 e está preso há sete anos e meio. Agora não por ter tirado a vida de Liana e Felipe, mas para tratamento psiquiátrico – e é exatamente neste ponto que a legalidade da UES está sendo questionada. Para alguns juristas, a Unidade não estaria às margens da lei se sua prioridade fosse a saúde dos internos. “O local está sendo utilizado apenas para contenção”, constatou a juíza Mônica Paukoski, do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude, numa visita à UES, em maio de 2008.
De lá para cá, a Unidade foi fiscalizada pelo menos mais duas vezes e nada mudou. Em fevereiro, representantes do MP, do Conselho Regional de Medicina e do Conselho Regional de Psicologia (CRP) a inspecionaram. “A estrutura física é boa”, conta o promotor Pinto Filho. “Mas o equilíbrio é precário. Ainda se tenta estabelecer procedimentos de tratamento. Falta um trabalho individualizado.” Carla Biancha Angelucci, presidente do CRP, é mais enfática. “Os jovens não têm acesso aos prontuários médicos, não há projetos terapêuticos definidos, portanto, também não há perspectivas de melhora e de ressocialização”, relata. “Não digo que aqueles rapazes têm de ser soltos imediatamente porque não sou inconsequente, mas eles não podem ficar lá eternamente.”
Depois de sair da alçada da Fundação, a UES foi transferida para a pasta da Secretaria de Estado da Saúde (SES). Mas nem os profissionais da SES são favoráveis à internação prolongada porque está na contramão do que a psiquiatria moderna defende. ISTOÉ teve acesso a correspondências do período em que a UES estava sendo criada e essa discordância fica evidente. “Torna-se imperioso enfatizar que a longa permanência de pacientes psiquiátricos em hospitais cronifica sua patologia, tornando-os incapazes de retornar à sociedade, ou seja, esses pacientes se quedam institucionalizados; deslocados do contexto social acabam perdendo a sua cidadania o que é, infelizmente, facilmente comprovado na história da psiquiatria mundial”, escreveu o médico Nilson Paschoa, então secretário-adjunto da Saúde, para a juíza Mônica. Integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Hospital das Clínicas, antigos responsáveis pelo atendimento na UES, comunicaram à SES recentemente que tratamento em regime de contenção não surte efeito. A Secretaria repassou essa informação para o Ministério da Justiça.
A UES fica na zona norte da capital paulista e tem capacidade para 40 pessoas. A estrutura é parecida com a de uma vila. Há cinco casas – com dois quartos cada, equipadas com camas, geladeira, sofá, tevê – horta, quadra de esportes e uma sala com computadores onde estão instalados joguinhos violentos, daqueles de atirar e matar. A casa que Champinha divide com dois internos – também acusados de crimes sexuais – é protegida por uma cerca alta porque os outros não os aceitam no mesmo espaço. Esses jovens, que obrigaram Champinha e seus colegas a ficarem confinados dentro do confinamento, vieram do interior. São todos homicidas. O cotidiano da UES é regulado pelos horários das refeições. Quem quiser tomar café da manhã, por exemplo, precisa estar de pé antes das 7h para receber a quentinha. “A Unidade não oferece nenhuma atividade”, afirma Fabiana Botelho Zapata, defensora de três internos. “Durante muito tempo, juízes determinavam a internação no local por não saber como funcionava.”
“Cabe ao Estado dar tratamento médico a essas pessoas, para a proteção delas próprias e da sociedade. Mas se os indivíduos ficam confinados e sem atendimento adequado, é óbvio que a Unidade é irregular”, avalia Luiz Flávio Borges D’Urso, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (SP). “A legislação precisa ser aperfeiçoada. É necessário criar medida de segurança para menores. Caso contrário, eles podem ficar num limbo jurídico, num espaço sem regras.” “Medida de segurança” é aplicada a doentes mentais que praticaram crimes quando adultos e, por causa disso, não podem ser responsabilizados. Esses indivíduos vão para hospitais de custódia e são liberados quando recebem um laudo médico atestando que a enfermidade está controlada. Isso pode demorar apenas um ano ou décadas. “A Justiça não fixou periodicidade para que Roberto (Champinha) seja reavaliado. Há quase dois anos e meio ele não tem acompanhamento. Aquilo é uma prisão disfarçada de hospital”, diz o advogado Daniel Adolpho Daltin Assis.
Embora decisões judiciais respaldem a permanência desses jovens na UES, o Estado terá de provar o que está sendo feito para tratá-los e mostrar quais são as perspectivas de cada um. Nos corredores da Secretaria da Saúde, o que se diz é que a UES só existe porque a Justiça abriu suas portas à força quando determinou a contenção de Champinha e é questão de tempo os tribunais superiores a declararem ilegal. Os advogados de Champinha e dos outros internos prometem denunciar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Com um remedinho aqui, uma terapiazinha acolá, ficam com essa conversa mole de tratamento de saúde”, afirma o juiz Luís Fernando Vidal, presidente da Associação Juízes para a Democracia e coordenador da Comissão de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. “Essa unidade é cópia de um manicômio, mas com uma agravante: os jovens cumpriram medida socioeducativa e estão presos sem ter sido condenados por outros crimes. Isso é prisão perpétua.”
O grande nó dessa questão é que o clamor social para que Champinha continue preso é forte. Se o assassinato de Liana e Felipe não tivesse repercutido, provavelmente, a UES não existiria e ele já estaria solto – assim como centenas de outros infratores considerados de alta periculosidade que precisariam de tratamento. “A culpa é da legislação, que é ruim”, acredita o psiquiatra forense Guido Palomba. “Quem nasce psicopata, vai morrer psicopata. Isso não tem cura. Não tem remédio. Do ponto de vista médico, está correto que esses indivíduos fiquem longe da sociedade. O problema é que não há previsão legal para isso. Mais cedo ou mais tarde, eles terão de ser soltos”.
Fonte: Isto É
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