No último dia 25, diante da pressão da bancada evangélica e de grupos católicos do Congresso Nacional, que ameaçaram apoiar as investigações sobre enriquecimento do ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, o governo federal, na figura da Presidenta da República Dilma Rousseff, decidiu suspender a produção e a distribuição do Kit Escola sem Homofobia, produzido pelo Ministério da Educação, pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (MEC/SECAD) e por Organizações Não Governamentais especializadas em educação e diversidade sexual.
O anúncio foi feito pelo ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da República, que informou também que, a partir de agora, todo material sobre “costumes” editado pelo governo será feito a partir de uma consulta aos “setores interessados” da sociedade. Como se já não bastasse o caráter autoritário dessa decisão, Dilma declarou no dia seguinte que o “governo não fará propaganda de opções sexuais”, como se a homossexualidade fosse uma opção, e pior ainda, como se todos os materiais produzidos pelo governo federal não fossem absolutamente heteronormativos. Sim, porque se o Kit Escola Sem Homofobia é uma propaganda da “opção homossexual”, então o governo deveria rever imediatamente todas as cartilhas do SUS, os materiais didáticos utilizados nas escolas públicas e todos os programas de habitação, trabalho e renda, que promovem unicamente a “opção heterossexual” e contribuem substancialmente para a marginalização das lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais.
Para completar, a Presidenta disse que o Kit é “inadequado”, e que o governo “não pode intervir na vida privada das pessoas”. Ora, como explicar a natureza “privada” de um problema que só no ano passado, matou mais de 250 pessoas em todo o país? Como denominar “privado” um problema que atinge milhares de crianças vítimas de bullyng diariamente nas escolas brasileiras? E como justificar a suspensão de uma política pública de combate a discriminação, com a qual o seu governo diz estar amplamente compromissado, mesmo depois da própria Presidenta admitir que viu apenas um trecho de um dos vídeos que compõem o kit?
Tamanha incoerência tem uma explicação. O Governo Dilma, desde sua conformação, está comprometido com alguns dos setores mais conservadores da sociedade, os fundamentalistas religiosos, para os quais a Presidenta escreveu, durante a campanha eleitoral do ano passado, a chamada “Carta ao Povo de Deus”, que deixava claro o seu compromisso com a família, a moral e os valores cristãos. Diante da eminência da distribuição do Kit Escola Sem Homofobia, prevista para o segundo semestre deste ano, os fundamentalistas decidiram que estava na hora de cobrar do governo o apoio concedido na disputa eleitoral. Para confundir a opinião pública, contaram o apoio da Rede Record de Televisão, emissora ligada a Igreja Universal do Reino de Deus, que durante várias semanas, veiculou matérias contendo informações mentirosas sobre o projeto. Com o surgimento das denúncias envolvendo o ministro Antônio Palocci, coordenador político do governo, os grupos católicos e evangélicos do Congresso Nacional encontraram então o momento ideal para negociar o veto ao kit.
Para nós, militantes do Coletivo 28 de Junho, que acompanhamos nos últimos meses, o recrudescimento da violência homofóbica no Brasil, sem que o Governo Federal tomasse de fato qualquer medida mais efetiva para combater o problema, o Kit Escola Sem Homofobia, uma das poucas iniciativas anunciadas no Governo Lula a (quase) sair do papel, era considerado um avanço. Sua suspensão, e pior ainda, sua transformação em moeda de troca política, possui consequências graves, que vão muito além da ausência de um material didático qualificado parar tratar do tema da diversidade sexual nas escolas. Um episódio desse tipo, protagonizado por uma figura pública como a Presidenta da República, só contribui para o fortalecimento do discurso conservador no Brasil, na medida em que lhes confere absoluta legitimidade e autoriza indiretamente a violência, simbólica ou não, contra a pessoa LGBT.
Mesmo diante do anúncio do ministro da educação, de que um novo kit será distribuído ainda este ano, nada nos garante que uma nova manobra política venha a derrubar o projeto, principalmente depois que a Presidenta deixou claro que, a partir de agora, será necessário consultar os setores “interessados” no assunto, ou seja, os fundamentalistas religiosos. Um retrocesso que põe em risco não só o Estado Laico, como também nos deixa preocupados em relação ao futuro das liberdades individuais em nosso País.
Portanto, torna-se necessário elucidar: o Kit Escola Sem Homofobia é um material didático composto por uma cartilha, uma série de seis boletins, cartas de apresentação, um cartaz e três vídeos, que tem como objetivo oferecer aos professores do ensino médio informações sobre a questão da orientação sexual e da identidade de gênero, visando combater a discriminação homofóbica e promover o respeito às diferenças nas escolas públicas. É, portanto, uma ferramenta essencial para formarmos uma geração de brasileiros mais tolerantes.
REPERCUSSÃO NO MOVIMENTO
Por fim, é impossível não mencionar aqui as reações controversas geradas por essa suspensão no conjunto do movimento LGBT. Em um momento de ataques tão severos aos direitos humanos em nosso país, no qual se faz necessária uma atuação cada vez mais resistente dos movimentos sociais, muitos ativistas LGBT preferiram buscar justificativas para explicar a atitude de Dilma Rousseff e até adotaram um discurso negativo em relação ao material. Na ocasião, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transsexuais (ABGLT) chegou inclusive a lançar uma mensagem bastante duvidosa, dizendo que a Presidenta teria sido vítima de um “golpe” por parte dos fundamentalistas, que teriam lhe mostrado um vídeo falso para influenciar sua opinião. Tal versão dos fatos caiu por terra quando, na sexta-feira, o ministro da educação Fernando Haddad, confirmou que Dilma assistiu ao vídeo “Probabilidade”, e que o motivo de sua reprovação foi uma frase na qual o personagem principal afirma que ser bissexual “aumenta a sua probabilidade de não ficar sozinho”. É lamentável que mesmo diante de uma situação tão séria, a ABGLT, na qualidade de entidade representativa máxima do movimento LGBT brasileiro, tenha mais uma vez se curvado de uma postura crítica para defender um governo que troca nossas reivindicações em nome da “governabilidade”.
Nós, do Coletivo LGBT 28 de Junho, repudiamos toda a movimentação política do Governo Dilma que culminou na suspensão do Kit Escola Sem Homofobia e convocamos o movimento LGBT a estar unido na defesa incondicional deste e de outros projetos que ajudem a combater a intolerância homofóbica.
São Paulo, 30 de maio de 2011.
Um comentário:
Pois é, para quem lutou com coragem contra a Ditadura, mostrou-se fraca diante dos fundamentalistas!!!
Maria Helena Machado - Psicóloga - Fundação Casa.
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