Imagine um quarteirão qualquer em que vivem, há algum tempo, aproximadamente umas 200 famílias, com crianças correndo, donas de casa lavando a calçada, o bar da esquina. Apesar de toda trivialidade, há algo de excepcional nesse lugar: seus moradores movem ações judiciais para obter o título de propriedade de suas casas.
Na verdade, essas ações de usucapião coletivo propostas por essas pessoas são um projeto piloto inserido numa comunidade de baixa renda, localizada próxima ao Morumbi, bairro nobre do Município de São Paulo. Contudo, para tais moradores colocarem seu direito à moradia em prática em Paraisópolis, têm de enfrentar dificuldades e pressões de vários lados: pela frente esbarra num poder judiciário com seu sistema processual lento e com muitos operadores distantes da realidade social, atrás resta um vazio estatal em relação a direitos básicos como educação, segurança e saúde e, de ambos os lados, rondam interesses imobiliários sobre a região e a negligência do poder público, muito aquém de seu papel de gestor democrático da cidade.
Agora imagine como seria o dia-a-dia de toda essa comunidade. Em meio a um comércio movimentado, carros, pessoas com pressa logo cedo para chegar ao trabalho, Paraisópolis tem algumas características bastante singulares. Com uma população de mais de 80 mil habitantes, encontra-se inserido num complexo plano de urbanização da cidade de São Paulo que, em termos legais, demarcou a região como uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) e condicionou o Município a desenvolvê-la para fins de moradia.
Desse modo, seu cotidiano é recheado da atuação de Organizações Não-Governamentais, de obras públicas, e movimentações políticas para aplicar tais modificações urbanas. Porém, numa análise mais profunda, a prática dessas e outras formas previstas em lei para uma urbanização social e democrática não têm seguido um curso apropriado. Ora, não pode ser difícil imaginar que, sendo a segunda maior favela de São Paulo, Paraisópolis tem seu plano habitacional influenciado por inúmeros desejos financeiros em mudar o caráter da área e torná-la um meio urbano de poucas, mas bem valorizadas moradias, como seu bairro vizinho, o Morumbi.
Portanto, verificam-se evidentes desvios da finalidade original do plano de urbanização para que tais anseios se projetem: no lugar de habitações, creches, escolas e hospitais, são construídas avenidas; no lugar de regularizar o terreno e estruturar fisicamente as moradias para que sejam dignas, são muitos moradores que lá vivem há mais de 20 anos removidos em desrespeito aos meios legais; no espaço de participação democrática dessa população em definir os caminhos a serem perseguidos, são realizados reuniões de Conselhos que aprovam tais desvios de finalidade social; no lugar de uma atuar de uma forma assessória e passageira, as ONGs acabam por tornar a população dependente de seu auxílio eternamente.
Agora imagine que Paraisópolis é uma das mais de quinhentas ZEIS da cidade que se encontram dentro desse novelo político transgressor dos fins traçados para as políticas urbanas na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. São Paulo é um dos poucos municípios com condições financeiras e administrativas de efetivar sua própria urbanização: através de seu Plano Diretor Estratégico - lei municipal de 2003 - foram disponibilizados muitos dos instrumentos possíveis para aplicação participativa da política urbana, que abarca não só a urbanização como também o próprio desenvolvimento econômico, humano e ambiental da maior cidade do país. Contudo, apesar de o Município de São Paulo ter em suas mãos essa grande potencialidade para implementar um plano de urbanização bem-sucedido, na prática, nota-se que muitas ações realizadas nas comunidades carentes da Cidade correm em direção oposta a todo esse plano de urbanização, em constante distanciamento da chamada “função social da propriedade”, princípio positivado em nossa Carta Maior.
Tome, por fim, a imagem daquele local prosaico descrito no início. Naquela ínfima quadra, onde vivem pessoas ansiosas por um título de propriedade do lugar que, na prática, sempre lhes pertenceu, há questões que vão muito além de um registro regular no cartório, que é a atuação do executivo e judiciário em descompasso com a nova ordem jurídico urbanística.
O Estatuto da Cidade, e resoluções do Conselho Nacional das Cidades, exigem participação popular na elaboração, implementação e gestão das políticas urbanas, e garantem o direito da baixa renda de morar junto à áreas urbanizadas e não apenas em suas periferias. Além de justiça social é uma questão de legalidade. Enquanto os aplicadores do direito não perceberem que o desvio de finalidade de um Plano Diretor, de um Plano de Urbanização afetam prejudicialmente toda a cidade, as políticas públicas continuarão seguindo no caminho errado, transformando em letra morta direitos sociais e democráticos previstos na Constituição Federal.
Staicy
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