Infância Urgente

sábado, 29 de março de 2008

Histórias de quem foi algoz e vítima em casas de reclusão

Monitor da Fundação Casa (ex-Febem) desde meados da década de 1990, L. conheceu a tortura logo no seu primeiro dia de trabalho. Durante uma revista, encontraram facas artesanais escondidas no dormitório de um interno, que foi então levado para um canto e espancado por dezenas de funcionários - sob o olhar do próprio diretor local. O agente novato acompanhava a cena, assustado. Até que recebeu a ordem para bater também. "É assim que funciona", conta ele. "Se você não bater, você não serve".
Atualmente, L. está afastado, cumprindo licença médica. Toma remédios para depressão, convive com crises de fúria e com problemas relacionados ao alcoolismo. Tudo isso, diz ele, é resultado do ambiente de tensão, violência e ameaças na Fundação. Entre 1998 e 2002, 60% dos afastamentos de profissionais na instituição se relacionavam a quadros de transtornos mentais. Dados de novembro de 2005 indicavam que 11% dos funcionários estavam fora do serviço por problemas de saúde.
"Quando você entra lá, ninguém te diz o que fazer", relata W., hoje aposentado, depois de mais de 15 anos como monitor na Febem. Nesse contexto, conta ele, os colegas de equipe viram a principal referência, por meio de uma série de regras não escritas. Por exemplo, é considerado um "parasita" quem não age com veemência nos momentos de tensão - repressão de conflitos, pressão para extrair informações de internos, etc.
Também é tratado com desconfiança aquele que mantém relações algo mais próximas, de mínima cordialidade com os jovens. Para W., tal situação encontra paralelo nos próprios códigos de conduta que norteiam os internos - já que, entre eles, acaba taxado de "pilantra" quem é visto como muito ligado aos monitores. "As regras são parecidas para os dois lados", reflete.
Tanto L. quanto W. relatam histórias de rebeliões nas quais foram feitos reféns. Carregam marcas de torturas - queimaduras e perfurações feitas por objetos cortantes - além de uma profunda descrença no pretenso papel de ressocialização desenvolvido pela instituição. "Dizem que você vai ser um educador, mas você vira um cão de guarda", desabafa W.
Para piorar, a tensão e medo não se restringem aos muros da Fundação. L. conta que, certa manhã, abriu a janela e viu um ex-interno trabalhando na feira que ocorre em frente à sua casa. "Ele me reconheceu", recorda. "Depois disso, mudei de casa."
Z., outro ex-funcionário da instituição, afirma esconder até hoje do filho de 15 anos que já foi um agente da Fundação. "Se ele conta para outros e a informação chega às pessoas erradas, matam o meu filho", acredita. "Pra mim, hoje em dia, todo mundo é suspeito."
Dependente de remédios para dormir, W. está divorciado desde 2001. "Agia em casa como se ainda estivesse dentro da Febem. Extravasava batendo nos meus filhos. Lidava com eles da mesma forma como tratava os infratores." Começou o que ele chama de "isolamento". Hoje evita sair de casa, e, quando está na rua, mantêm-se em alerta constante, procurando na multidão o rosto de ex-internos. "Já tomei três enquadros de gente que conheci lá dentro", diz.
Toda essa conjuntura, declara ele, afetou sua personalidade. "Hoje eu perco amizade fácil, não tenho mais confiança em ninguém", explica. "Fiquei metódico. Quero controlar tudo. Rádio alto, banho demorado, tudo me incomoda". Desmanchou namoros por conta das dificuldades de relacionamento, e os próprios filhos já não o visitam faz tempo. "Mas quer saber? Eu não estou fazendo mais questão de nada", desabafa.
Leia também as duas primeiras partes do Especial - Tortura:
Violência contra detentos perdura e questiona poder do Estado
Impunidade e monitoramento débil favorecem abusos
*Esta série de reportagens foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros

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