Infância Urgente

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

* Decisão do presidente do Supremo cria jurisprudência a favor da prioridade absoluta no atendimento a crianças e adolescentes

* Decisão do presidente do Supremo cria jurisprudência a favor da prioridade absoluta no atendimento a crianças e adolescentes
* Julgamento fortalece ações civis públicas que cobram dos governos o cumprimento de direitos sociais na área da infância

Ao julgar uma ação envolvendo o Governo do Tocantins, o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu um precedente histórico. Na decisão, o presidente do STF, Gilmar Mendes, deu prevalência ao princípio constitucional da prioridade absoluta de atendimento a crianças e adolescentes. E determinou que o governo estadual crie, no prazo de um ano, uma política pública na área de atendimento a adolescentes infratores, sob pena de multa diária.

A decisão abriu uma jurisprudência inédita no Brasil. Pela primeira vez na história da mais alta corte do País, entendeu-se que o Judiciário pode obrigar o Executivo a cumprir políticas públicas sociais previstas na Constituição. Na antiga posição do Supremo, prevaleciam os princípios da separação dos Poderes – pelo qual o Judiciário não pode interferir em assuntos de competência do Executivo – e da “reserva do possível”, segundo o qual os direitos só podem ser garantidos se houver recursos públicos disponíveis.

São justamente esses os argumentos usados como defesa pelos governos – municipais, estaduais e federal – em ações que cobram a execução de políticas públicas, como no caso do processo julgado por Mendes no dia 8 de julho. A ação foi movida pelo Ministério Público de Tocantins contra o governo estadual, exigindo a implantação de um programa de internação e semiliberdade de adolescentes em conflito com a lei em Araguaína, município de 115 mil habitantes.

De acordo com o processo, diante da inexistência de uma unidade de atendimento especializada no município, o Estado estaria abrigando os adolescentes em cadeias comuns, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e encaminhando os meninos para uma unidade a 160 quilômetros de distância, dificultando o contato deles com a família.

Após o MP vencer a ação em primeira e segunda instância, o Governo de Tocantins recorreu ao STF. O presidente do Supremo decidiu manter a decisão de determinar que o governo estadual implemente em Araguaína, no máximo em 12 meses, um programa de atendimento a adolescentes autores de ato infracional, e proibiu o Estado de abrigar os jovens em unidades que não sejam especializadas. Se não cumprir a ordem judicial, o governo terá de pagar multa diária de R$ 3 mil, por tempo indeterminado.

O Estado de Tocantins alegava, além de interferência entre Poderes, que a punição provocaria “lesão à economia pública estadual”, já que o orçamento estadual não previa recursos para essas ações. Gilmar Mendes discordou dos argumentos. “A alegação de violação à separação dos Poderes não justifica a inércia do Poder Executivo estadual do Tocantins, em cumprir seu dever constitucional de garantia dos direitos da criança e do adolescente, com a absoluta prioridade reclamada no texto constitucional”, escreveu o ministro.

Comemoração e surpresa - A decisão surpreendeu as entidades de defesa dos direitos da criança e dos adolescentes. O coordenador do GT de Convenção dos Direitos da Criança da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Wanderlino Nogueira Neto, explica que o Ministério Público e as entidades sociais que têm prerrogativa de entrar com ações civis públicas na Justiça, como a Anced e os Cedecas, serão fortalecidos. “Alguns Cedecas já ganharam ações, mas era uma coisa rara. Nós festejávamos quando conseguíamos uma vitória num tribunal mais liberal”, diz. “De agora em diante, vamos entrar com ações com mais certeza de que o Judiciário vai garantir o ressarcimento do direito”.

Nadja Bortolloti, assessora jurídica do Cedeca Ceará, acredita que a decisão estimula muitos Cedecas a entrar com ações na Justiça, e não só na área de medidas socioeducativas. Ela dá o exemplo de um problema muito corriqueiro no País: quando o gestor não fornece determinados medicamentos a crianças e adolescentes, alegando falta de recursos. “Você pode usar essa decisão do STF como fundamento das novas ações”, aponta.

Prestes a terminar um relatório sobre a situação das sete unidades de internação de adolescentes infratores de Fortaleza, o Cedeca Ceará estava planejando as estratégias de mobilização quando saiu a decisão do Supremo. “Agora, essa opção pela estratégia judicial se fortalece”, afirma. “Se aqui em Fortaleza a gente ingressar com uma ação e o juiz negar os argumentos, a gente vai poder recorrer até o Supremo sabendo que vamos encontrar um posicionamento condizente com o que diz o ECA”.

Advogado e membro do Cedeca do Rio de Janeiro, Carlos Nicodemos cita uma ação que exige do Governo do Rio o cumprimento das deliberações do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente em relação ao atendimento de adolescentes infratores no Estado. “O juiz da causa está analisando o nosso pedido. Essa decisão do ministro Gilmar Mendes vai com certeza influenciar nos rumos do processo”, explica Nicodemos.

Execução orçamentária - O juiz e presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude (ABMP), Eduardo Rezende Melo, reforça que a decisão do STF deve provocar um aumento desse tipo de cobrança judicial. Uma das possibilidades que se abre, afirma o juiz, é exigir que o governo execute os recursos previstos no Orçamento anual. “Havia uma certa divisão de correntes na Justiça. Esse referencial do STF reforça que é possível, sim, haver decisões do Judiciário obrigando o Executivo a garantir direitos sociais”, aponta.

Ciente de que a cobrança pela execução de políticas públicas vai aumentar, Carlos Formigli, coordenador da área socioeducativa da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, ligada à Presidência da República, disse que a decisão terá enorme repercussão. Mas no caso dos adolescentes infratores, a pressão maior deve ser nos Estados, responsáveis pelos programas de internação e semiliberdade. Nessa área, diz ele, o governo federal tem o papel apenas de “suplementação de recursos”. “Os Estados sempre dizem que não têm recurso para isso e para aquilo. A questão não é que falta recurso, mas sim a priorização desses recursos. E criança e adolescente é prioridade absoluta, está na Constituição”, diz Formigli.

Com previsão de R$ 85,2 milhões no Orçamento de 2008, o programa de “atendimento socioeducativo do adolescente em conflito com a lei” do governo federal teve investimento de apenas R$ 1,2 milhão até o fim de julho. Por meio do programa, o governo arca com parte da construção de unidades de atendimento. Segundo Formigli, a execução está baixa porque o primeiro semestre foi dedicado à análise das propostas enviadas pelos Estados. E, por causa da lei eleitoral, os convênios só poderão ser assinados após as eleições. “É claro que a prioridade absoluta vale para todos. Não só para os Estados, mas para o governo federal”, afirma. “Vamos aguardar com tranqüilidade a repercussão disso”.

Nadja, do Cedeca Ceará, pondera que o Judiciário deve ser a última instância a se recorrer, após esgotadas as outras formas de controle social. E que, ao entrar na Justiça, o maior desafio continua sendo o cumprimento das decisões. “A gente costuma dizer que ganha, mas não leva”, conta. “Existe uma cultura do Executivo de não cumprimento das ordens judiciais. Por isso a gente tenta aliar a estratégia de ação judicial com a mobilização social. O Judiciário é uma das frentes de batalha, mas não resolve tudo”.


* Sugestões de fontes:

Wanderlino Nogueira Neto - coordenador do GT Convenção dos Direitos da Criança, da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced)
(24) 2291-5657

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