Infância Urgente

terça-feira, 27 de abril de 2010

Crimes de maio 2ª parte

GRUPOS DE EXTERMÍNIO, MAZELA QUE AUTORIDADES NÃO ADMITEM EXISTIR

Para as polícias Civil e Militar e Promotoria de Justiça, não há elementos que provem a ação dos grupos encapuzados. Mas esses órgãos se contradizem

RENATO SANTANA
DA REDAÇÃO


Tanto a Polícia Militar quanto a Civil se mantêm céticas quanto à participação de policiais nos grupos de extermínio. A PM cumpre papel de patrulhamento ostensivo e suas investigações são apenas internas quando envolve desvio de função dos policiais. A Polícia Civil faz as investigações das ocorrências. No caso dos Crimes de Maio, foi ela quem investigou os homicídios e encaminhou os resultados para o promotor de justiça. Entidades de direitos humanos, familiares e Defensoria Pública questionam justamente a maneira como as investigações foram realizadas. Isso no caso da Polícia Civil. Sobre a PM, a falta de empenho em investigar desvios de função e excesso de violência empregada por policiais.


INQUÉRITOS SEPARADOS
A Defensoria Pública quer que, pela semelhança dos homicídios praticados por grupos de extermínio, os crimes sejam investigados de maneira conjunta. Para a Polícia Civil e o Ministério Público, a existência de tais grupos é questionável. O delegado seccional de Santos da Polícia Civil, Rony da Silva Oliveira, defende que os procedimentos dos inquéritos policiais foram feitos de maneira correta. "Pode acontecer depois que a investigação e o inquérito policial, com as provas obtidas, sejam cruzadas, através de perícia, com a prova de outro inquérito. Daí se conclui que dois fatos foram cometidos por uma mesma quadrilha", justifica o delegado.

A demora em iniciar as investigações também é ponto de revolta para os familiares das vítimas. Sobre isso, Rony disse não ter elementos para emitir opinião. Para ele, quem enfrentou problemas deveria ter procurado os órgãos competentes, caso da própria Ouvidoria da Polícia. Segundo depoimentos colhidos pela Defensoria, as vítimas ou testemunhas ficaram com medo de procurar a autoridade policial, dado o conhecimento nas comunidades de envolvimento da própria polícia nos crimes. "Em alguns casos, as testemunhas poderiam ter prestado depoimento sob proteção. Agora a pessoa não quer ir depor, tem medo e depois critica a polícia", ataca o delegado.

Alguns episódios podem justificar o medo. Um vigia foi morto depois de testemunhar a execução da grávida Ana Paula Gonzaga dos Santos e de Eddie Joey Oliveira, sobreviventes foram ameaçados e, na missa de um ano de Edson Rogério Silva dos Santos, viaturas passavam pelo local em alta velocidade, cantando pneus, com os policiais militares encapuzados e com os corpos para fora dos veículos. Tudo isso consta nos processos tocados pela Defensoria Pública Rony ventilou a hipótese de os crimes terem sido cometidos por integrantes do crime organizado: "Não posso dizer que houve homicídios de retaliação por parte da polícia. Meses antes houve os crimes do Naldinho...".

Em 2005 teve início uma verdadeira matança: o PCC iniciou uma disputa por hegemonia nos pontos de tráfico de drogas na região. O principal opositor era Naldinho, que mantinha laços comerciais e de amizade com o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro. Subestimando os números, a quadrilha de Naldinho tevemaisde15baixas. Questionado se o crime organizado costuma operar dessa maneira, em seus acertos de contas, o delegado afirmou não trabalhar com hipóteses.


QUANDO FALA O CORAÇÃO
O delegado seccional, entretanto, acredita que "um ataque leva a um contra-ataque". Não descarta a possibilidade de que alguns crimes foram cometidos por policiais. "Se existisse prova, infelizmente, íamos ter que adotar os procedimentos legais", disse. Infelizmente? Rony se justifica, dizendo que é duro punir um policial que agiu com o coração e não com a razão. Sobre um dos homicídios, o de Edson Rogério Silva dos Santos, o promotor de justiça Octavio Borba de Vasconcellos Filho disse: "Só a justiça divina vai apurar a morte de Edson, que foi cometida por PMs desequilibrados".O atual secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto, não se pronunciou até o fechamento desta série depois de diversos contatos telefônicos e por e-mail.


POLÍCIA MILITAR
O tenente-coronel da Polícia Militar Jairo Bonifácio, respondendo pelo Comando de Policiamento do Interior-6, não informou se foi aberto qualquer processo de investigação para apurar desvio de função e se houve algum policial punido por envolvimento com os grupos de extermínio. Nem os procedimentos que avaliam as posturas dos policiais. "Todos os casos que tenham envolvido policiais em ocorrências tendo como resultado a morte de pessoas foram inicialmente objeto de apuração em nível das infrações penais militares", disse.Ações de retaliação foram rechaçadas pelo tenente-coronel. De 12 a 21 de maio, 59 agentes públicos morreram e 13 ficaram feridos. Entre os civis, foram 505 mortes e 97 feridos. A partir do dia 14, o número de civis mortos para cada policial ou agente público mortos ultrapassa 10. Atinge mais de 20 no dia 17 e cessa no dia 18, data em que não houve mais agentes mortos. Para ele, a PM "atuou de maneira forte e com a energia necessária para conter os atos criminosos que não foram causados pela Polícia e atingiram a tranquilidade da população". Afirmou que a corporação não compactua com ações ilegais praticadas por seus integrantes. Tampouco estimula tais práticas.





ENTREVISTA

Pelas mãos do promotor de justiça da Vara do Júri de Santos, Octavio Borba de Vasconcellos Filho, passaram os inquéritos de alguns homicídios dos Crimes de Maio, depois de encerradas as investigações da Polícia Civil. Dos processos que estão com a Defensoria Pública, o último foi arquivado pelo Judiciário em 2008. A alegação do promotor é a falta de provas, mesmo que em um dos inquéritos ele tenha reconhecido a existência de grupos parapoliciais ou de extermínio. O Grupo de Atuação Especial Regional para a Prevenção e Repressão ao Crime Organizado (Gaerco) também investigou alguns inquéritos, mas nada se apurou.Borba afirma que os grupos de extermínio são "etéreos" e que nunca ninguém falou da existência deles de maneira concreta: "Não existe nenhuma noção de que grupos são esses. Havia uma ideia". Leia os principais trechos da entrevista.


O senhor reconhece, num dos inquéritos, a exis- tência de grupos parapoliciais, de extermínio. Por que então a opção pelo arquivamento?
O que se comentava é que em represália a atuação do PCC, alguns policiais teriam se organizado e feito isso. Naquela época foi terrível porque muitos homicídios que pareciam não ter ligação com isso pareciam que tinham. Não necessariamente podia se dizer que tinham. Tudo foi apurado pontualmente, cada caso.


Mas por que o processo foi arquivado?
Não existe nenhuma noção de que grupos são esses. Havia uma ideia. Nós fomos a fundo, pedi várias diligências, mas não se descobriu nada.


Há testemunhas apontando indícios das mortes terem acontecido pelas mãos dos grupos de extermínio. Homens encapuzados em carros, recolhimento de cápsulas. Inclusive em dois ataques o carro é o mesmo. Ainda assim, não dá para ter certeza da ação destes grupos?
Absolutamente não. Se houvesse os processos teriam sido iniciados. Nenhum foi. Se eu tivesse algum indício de responsabilidade teria denunciado.


Esses grupos atuavam encapuzados, sem uniforme, recolhiam as armas...
Mas os bandidos do PCC andam encapuzados.


Os crimes de grupos de extermínio tiveram as mesmas características no Estado inteiro...
Você é que tá falando em grupos de extermínio. Nunca ninguém falou da existência de grupos de extermínio.


O senhor mesmo afirma em um dos processos (o de Ricardo Porto Noronha e Mateus Andrade de Freitas) a ação e existência desses grupos.
Comenta-se que até mesmo grupos parapoliciais, pessoas fora da polícia. Mas isso não quer dizer que tinha alguma coisa orquestrada.


O que o senhor precisaria para reabrir esses processos?
Alguém falar: vi fulano de tal em atitude suspeita. Me traga alguém que tenha visto e indique alguma atitude suspeita de um policial. Não houve nada de concreto que pudesse orientar uma investigação. Fica tudo no ar. Muitas vezes os crimes ficam sem solução.

Octavio Borba de Vasconcellos.
Promotor de justiça de Santos



EXECUÇÕES MAQUIADAS NOS BOLETINS

A Polícia Militar matou, nos dias posteriores aos atentados do PCC, em maio de 2006, 109 criminosos ou suspeitos alegando, nos boletins de ocorrências, resistência seguida de morte. O professor e perito criminal da Universidade de Campinas (Unicamp), Ricardo Molina, defendeu essa tese, após analisar os laudos na época. Ele concluiu que em 88 dessas mortes há indícios de execução.O estudo está no livro Crimes de Maio, publicado pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria da Justiça de São Paulo. O especialista constatou que muitos desses mortos foram atingidos nas costas. Outros se encontravam em posição de rendição, dado que os disparos foram de cima para baixo. Num total de quase3.000 tiros dados nas 505 vítimas civis fatais, 60% foram na cabeça. No Código Penal, não existe a denominação "resistência seguida de morte". Numa suposta troca de tiros entre um PM e algum suspeito, quem morreu é figurado, no boletim de ocorrência, como investigado. Por sua vez, o PM que matou é tratado como vítima. O esquecimento acaba sendo o destino da pessoa morta. "É para chegar arrasando,matando. Os policiais já chegam para fazer justiça, aplicar a pena de morte sem processo, sem contraditório. A Organização das Nações Unidas (ONU) define isso como execução sumária", declara o defensor público Antônio Maffezoli.


VIOLENTA E LETAL
Um estudo comparativo entre a letalidade das polícias de Nova York e São Paulo, divulgado pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, revela como a PM opera na rua. A polícia novaiorquina mata, em 1 ano,uma média de 12 civis. A paulista, 400 no mesmo período. O número de feridos, anualmente, pelas mãos da polícia de Nova York é o dobro dos mortos. Em São Paulo é exatamente o contrário. A pesquisa, feita pela Agência de Aplicação da Justiça de Nova York, revela que a PM quando atira é para matar e não machucar. Ainda de acordo com o estudo, na cidade estadunidense, a proporção de policiais mortos em relação aos civis é de 11,2%. Em São Paulo, a proporção é de 6,7%. "A PM se torna o mesmo funcionário público: detecta, acusa, julga e executa a pena em dois minutos", diz o defensor.


PRÁTICA CONTINUA
As mortes no Estado justifica- das por ocorrências de resistência seguida de morte não param. O ano passado registrou um aumento de 41% desse tipo de ação da PM. São 524 mortos. Em 2008, foram 371. Em 2006, momento de erupção da violência, 495. Dados são da Secretaria Estadual de Segurança Pública. "Com esses indicativos, a polícia de São Paulo é muito violenta. Apesar dos esforços de humanização, a herança institucional muita gente atribui ao período da ditadura. Principalmente pela histórica falta de punição", completa Maffezoli.


"Em alguns casos, as testemunhas poderiam
ter prestado depoimento sob proteção.
Agora a pessoa não quer ir depor, tem medo e depois critica a polícia"
Rony da Silva Oliveira, delegado seccional de Santos da Policia Civil


400
essa é a média
de civis mortos pela polícia paulista

59
agentes públicos
foram mortos em maio de 2006

“Os policiais já chegam para fazer justiça, aplicar a
pena de morte sem processo, sem contraditório. A
Organização das Nações Unidas (ONU) define isso
como execução sumária"
Antônio Maffezoli, defensor público.



Baixada Santista

A-3
baixadasantista@atribuna.com.br abril de 2010

www.atribuna.com.br

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