Por Nina Fidelis [Terça-Feira, 27 de Abril de 2010 às 17:58hs]
Superlotação, condições precárias, falta de assistência de todo o tipo são
características comuns a quase todos os presídios brasileiros. Segundo os
últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional*, o Depen, são pouco
mais de 473 mil pessoas presas no país, sendo 442 mil homens condenados a
cumprir pena em um sistema que comporta apenas 278 mil: um déficit de mais
de 160 mil vagas. Agora, imaginemos que toda essa estrutura foi construída
para atender o universo masculino, sendo incapaz de responder às
necessidades básicas da mulher. E, além disso, com uma defasagem de vagas
proporcionalmente maior que a dos homens: 31 mil mulheres presas em
estabelecimentos que têm capacidade para 16 mil vagas. É um cenário que
beira a calamidade.
Segundo a Irmã Margareth, da coordenação estadual da Pastoral Carcerária e
assessora nacional na área de saúde, nenhuma penitenciária ou cadeia
pública foi construída tendo em vista a realidade das detentas. “Até mesmo
a penitenciária de Sant’ana [o maior complexo prisional feminino da
América Latina] foi construído para homens. Depois de algum tempo pintaram
as paredes, mas nada estruturalmente foi modificado para receber as
mulheres e eu não vejo esta possibilidade”, afirma.
Não somente a estrutura física do sistema penitenciário marca a vida das
presas. A não garantia de direitos básicos como o da maternidade, de
relações familiares, saúde e sexualidade, também não são assegurados na
maioria significativa dos presídios femininos. Para Kenarik Boujikian
Felippe, juíza de direito em São Paulo, cofundadora e secretária do
Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia, “o Judiciário
não consegue fazer este recorte de gênero na questão criminal. E isso não
somente no Poder Judiciário. É necessário enxergar esta diferença e
apontar alguns indicadores que possam facilitar a criação de uma política
pública que dê respostas a este diferencial”.
Dentro dos presídios, até mesmo o uniforme utilizado é o mesmo dos homens.
E isso interfere diretamente na autoestima da mulher indicando que não há
diferenças no tratamento, e que nem são consideradas suas
particularidades. Mas elas sempre dão um jeito. Bordam, costuram, fazem
crochê, e imprimem na calça bege ou amarela e na camiseta branca as suas
características. Mas o uniforme está longe de ser o principal problema.
Uma das necessidades básicas que não é atendida pelo sistema penitenciário
brasileiro é o direito à maternidade. “É urgente se construir prédios
pensando nas necessidades femininas como, por exemplo, as mulheres
grávidas e em processo de amamentação”, afirma a Irmã Margareth. A
penitenciária de Sant’ana vem passando por algumas reformas desde 2001,
quando se decidiu transformá-la em um presídio feminino. Porém, tais
reformas nunca foram concluídas. Hoje, no caso das mulheres grávidas,
segundo Margareth, as mães são encaminhadas, no nono mês de gravidez, a
uma ala especial do Centro Hospitalar de São Paulo, antes chamado de
Centro Hospitalar Criminológico, no centro de São Paulo. Por lá, ficam
apenas seis meses em contato com os filhos, amamentando.
Passado o período da amamentação, chega o momento mais traumatizante para
elas: a separação. Caso a presa tenha alguém da família com quem deixar a
criança, o bebê vai para a mãe, tias, irmãs etc. Mas muitas mulheres não
têm com quem deixar seus filhos, que são levados para instituições
públicas. “Todas ficam apavoradas pensando no que pode acontecer com os
bebês caso eles sejam encaminhados para a instituição. Pensam se vão ser
adotados, bem tratados... E o momento da separação ainda é preparado de
maneira muito inadequada”, conta Margareth. “A guarda da criança
permanece da mãe, porém, infelizmente, muitas coisas podem acontecer
nestes abrigos por conta da precariedade, pela falta de condições de
atender às demandas.”
Nestes casos, juristas e militantes dos direitos humanos acreditam ser
possível conciliar a pena e a maternidade com medidas alternativas.
Segundo Kenarik, “as mulheres têm o direito à maternidade e a criança, a
uma vida sadia. Temos que fazer isso se tornar real. Conheci a experiência
de uma mulher que estava cumprindo uma pena alta, e que a juíza autorizou
a sua saída para amamentar e depois voltar, já que o Estado não tem
condições de deixar a criança em um lugar apropriado”.
O abandono
Além do abandono por parte do Estado, com a ausência de políticas
públicas específicas, estas mulheres são abandonadas por suas famílias e
por seus companheiros. Apenas 8% recebem visitas de namorados ou maridos,
e 11% são visitadas pelo menos uma vez por mês por suas mães, filhos,
irmãos e irmãs. A maioria nunca recebe visitas. O diretor do Depen,
Airton Michels, conta que na época em que atuava como promotor na região
metropolitana de Porto Alegre (RS), “quando um homem ia preso, as
mulheres procuravam o Fórum para conseguir um advogado para cuidar dos
direitos de seu companheiro. Quando uma mulher ia presa, o homem
procurava o Fórum para que um advogado realizasse o divórcio. Isso define
tudo. A mulher continua parceira. O homem, sua família e toda a sociedade
não aceitam a mulher presa, que acaba pagando pena de forma bem mais
severa que o homem”.
As filas em cadeias masculinas são quilométricas já às quatro horas da
manhã, e as mulheres realizam uma verdadeira maratona para garantir a
visita, a comida, os utensílios pessoais e de higiene para seus maridos e
namorados (conferir reportagem publicada em Fórum nº 81). Além do carinho,
do contato físico com alguém de fora da cadeia, as visitas são muito
importantes por conta do envio de utensílios de extrema necessidade como
sabonetes, xampus, papel higiênico e, no caso das mulheres, de cosméticos:
creme hidratante, esmalte, batom, absorventes... Nem estes últimos são
garantidos pelo Estado.
Teoricamente, também é de responsabilidade dos órgãos de administração
penitenciária colocar o preso ou a presa nos estabelecimentos mais
próximos de sua antiga moradia, permitindo assim que a família consiga
manter as visitas e estabelecer as relações familiares com os detentos.
Teoricamente...
A ausência da família e dos companheiros, e as relações com o mundo
externo influenciam muito no cotidiano. Para a Irmã Margareth, “os homens
conseguem arrumar outras namoradas, se desligam do mundo aqui fora,
diferentemente das mulheres que muitas vezes são os pilares da estrutura
familiar e lidam com isso lá dentro diariamente. Acabam entrando em
depressão, ficam agressivas, tomam calmantes”. Por conta das situações de
abandono, a depressão, além de outras doenças mentais e dermatológicas,
pulmonares, ginecológicas e principalmente a tuberculose são muito comuns.
O tráfico e os crimes de bagatela
Nos últimos anos, o índice de mulheres presas só vem aumentando. Em
dezembro de 2004, o número de detentas chegava a pouco mais de 18 mil; no
mesmo mês, em 2009, já eram 31 mil. Em cinco anos, a população carcerária
feminina aumentou mais de 70%.
Grande parte dos delitos que leva as mulheres à prisão é o tráfico, como
mulas**, e furtos de pequeno porte. Margareth conta casos de mulheres
presas por roubo de chocolate, pão, queijo, muitas vezes para sustentar o
vício ou alimentar uma família. Segundo ela, se existisse um processo
judicial mais adequado para estes pequenos delitos, elas poderiam cumprir
penas alternativas que não as privassem de sua liberdade.
Para Kenarik este aumento tem a ver com uma série de fatores, mas também
com a crise econômica. “A leitura só pode ser feita se avaliarmos o que
acontece fora dos muros. É real que as mulheres, cada vez mais, assumem o
papel de chefia de famílias, com muitas responsabilidades. E a droga, por
muitas vezes, acaba sendo uma fonte de renda”, aponta. Segundo ela, a
questão do tráfico é algo que requer uma avaliação de conceito. “Tudo que
a sociedade elege ou é do bem o é do mal. E isso acaba refletindo no
sistema judicial. A imprensa também acaba tendo um papel perverso, pois
sempre aplica discursos de encarceramento. E o tráfico é uma questão posta
neste sentido. Mas algumas decisões começam a mostrar que é possível
aplicar penas diferenciadas para os pequenos tráficos”.
Airton Michel concorda com a juíza. “Prender pessoas por estes pequenos
delitos não tem dado resultado nenhum para a sociedade. A primeira coisa a
se mudar é a lei de tóxicos. Tanto para os homens quanto para as
mulheres”. Aproximadamente 20% dos homens são presos por tráfico de drogas
no Brasil. No caso das mulheres, 50% são presas enquadradas neste delito e
muitas caem junto com o marido ou namorado, às vezes pagando pelas
práticas deles. Por isso também a ausência dos companheiros no dia da
visita.
As visitas íntimas Um dos temas mais discutidos quando o assunto é
penitenciária feminina é a proibição ou não das visitas íntimas. Na
opinião de Airton, a prisão não pode privar a mulher do direito às
visitas. “Isso é bárbaro. É um retrocesso civilizatório”, ressalta.
Segundo o Regimento Interno Padrão dos Estabelecimentos Prisionais do
estado de São Paulo, as visitas íntimas são consideradas regalias aos
presos, assim como a participação em festivais, a prática de esportes em
horários fora dos normais, sessões de cinema, teatro, e outras atividades.
Já a Resolução 1/99 do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária estabelece o compromisso dos estabelecimentos em assegurar o
direito à visita íntima em presídios de ambos os sexos. Isso inclui todas
as condições para que esta aconteça, como por exemplo, um local
específico. Mas ainda não há nenhuma lei que regulamente o assunto. Além
disso, toda a rede de campanhas de prevenção às doenças e informativas
sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres deve se estender aos
presídios. Bem como todos os exames.
Estas visitas, nos presídios masculinos, são tidas com algo normal, mas
sempre improvisadas. Em geral, os casais ficam na cela e tentam garantir
o mínimo de privacidade com um lençol. Já nos presídios femininos, é
proibida a permanência de homens na cela, o que dificulta ainda mais o
“jeitinho” de burlar a regra, que tem como penalidade o castigo.
Na opinião da juíza Kenarik, a questão da visita íntima revela o caráter
preconceituoso da sociedade em relação às mulheres. “Na verdade, este é um
preconceito que existe com a mulher antes mesmo de ela ser presa. Uma
coisa ideológica de não assumir que ela tem a sua sexualidade. Se fizermos
um levantamento, a visita íntima sempre existiu em vários locais, de
maneira formal ou não, mas não para as mulheres”, observa.
Confidências de uma ex-presidiária
Camila*** é mais uma mulher que aumenta as estatísticas deste enorme
abandono. Sua história é semelhante à de muitas outras detentas. Aos 19
anos, foi presa junto com a mãe e o namorado por tráfico de drogas; 25
gramas de cocaína foram o suficiente. “A polícia entrou lá em casa e ele
assumiu tudo. Eu não tinha nada a ver com aquilo. Muito menos a minha
mãe. Mas a polícia não quis saber”, conta ela. “Chegaram [a polícia] a
alegar que eu iria continuar fazendo os ‘corres’ para ele, caso ficasse
na rua”.
Na época, Camila estava trabalhando de babá, tinha carteira assinada e até
mesmo a sua empregadora foi depor a seu favor no julgamento. Nada disso
mudou seu veredicto. Condenada, após 1 ano e 3 meses presa, ficou mais
seis meses em regime fechado, passando para o regime semi-aberto, em que
saía nos feriados. Permaneceu 2 anos e um mês presa e, durante este
período, passou pelo presídio de São Bernardo, em Campinas, e pela cadeia
pública feminina de Monte Mor.
“No primeiro dia pensei que não fosse aguentar, tive até uma hemorragia
nervosa...”. Em Monte Mor, por exemplo, eram 230 presas onde cabiam apenas
30. Inclusive foram expedidos inúmeros pedidos de interdição desta cadeia,
denunciada por superlotação. “Sempre dormiam umas três no mesmo colchão.
Tinha que caber de qualquer jeito”, lembra. No São Bernardo não era muito
diferente: 32 mulheres em uma cela em que cabiam doze.
Hoje, Camila enfrenta a rotina de milhares de mulheres que vão visitar
seus companheiros. Ela e sua mãe foram soltas, mas o namorado, com 31
anos, permanece no cárcere. “Eu não recebia visitas. Uma vez por mês, um
amigo da minha mãe ia levar algumas coisas pra gente com o dinheiro que a
minha irmã mandava de outro estado. Mas homem mesmo não aguenta porta de
cadeia não”, diz.
Assim como nos presídios masculinos, lá existem as divisões de tarefas, as
responsabilidades e a obrigação de se cuidar, de se manter limpa. Toda vez
que usar o banheiro tem de lavar, e cada uma tem de usar o seu próprio
material de limpeza. “Lá dentro, mesmo que a gente não saiba quem é quem,
ninguém fica sem nada, pois a gente acaba dividindo o que tem. As mulheres
são solidárias”, assegura. Esta solidariedade se dá também em forma de
troca de favores. Se a pessoa não tem algum mantimento de higiene, ela
pode limpar a área da cama da companheira e receber o que precisa. “O
Estado mesmo não ajuda em nada”, afirma indignada.
Com relação aos remédios receitados arbitrariamente, Camila afirma já ter
tomado em duas ocasiões. “Qualquer problema que a gente tem eles querem
que a gente tome remédio. Para eles o preso tem que morrer ou ficar louco,
porque qualquer coisinha é tarja preta. Conheci muita gente que acabou
indo para o hospital de loucos”.
As mulheres também passam por situações de violência por parte da
polícia. Seja ela física ou moral. A história de mulheres que “saíam” com
o carcereiro nas cadeias públicas em troca de favores é comum. Mas Camila
lembra o dia em que a Tropa de Choque entrou no presídio. “Foi a pior
coisa do mundo! Eles não gostam das lésbicas e batem mesmo, sem elas
fazerem nada. E a gente também não pode fazer nada. Eles ficavam dizendo:
‘Não quer ser homem? Então apanha quem nem um’.”
A história de Camila com certeza ilustra a vida destas mulheres, com
algumas diferenças. Foi presa junto com o namorado, ficou anos presa sem
receber visitas, mas tinha a sua mãe como porto seguro, que cumpriu a
pena, literalmente, ao seu lado. Hoje, curiosamente, depois de condenada e
ter ficado presa por mais de dois anos, foi absolvida. Nem os advogados
conseguem explicar essa brecha no sistema, e alegam nunca terem visto um
caso assim. Mas Camila e sua mãe já entraram com um processo contra o
Estado, que tramita na Justiça, por terem sido presas sem provas concretas
de participação no crime.
“Quando saí, foi a melhor coisa do mundo. Olhar o céu, ver carro. As
mínimas coisas do mundo a gente admira. Senti muita falta das estrelas, da
lua, do sol, do vento batendo... Não tem nada melhor que a nossa
liberdade, não tem dinheiro que pague”. Assim, Camila desfruta novamente
de sua liberdade, mas sua saga no sistema penitenciário continua até que
seu marido saia e eles possam criar o filho – de cinco meses – juntos.
*Os dados são os últimos disponibilizados pelo órgão e são referentes a
dezembro de 2009.
** Mulas são pessoas (homens e mulheres) contratadas para transportar
drogas. As mulheres são as mais cogitadas para este ‘serviço’.
*** Nome fictício para preservar sua identidade.
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Nina Fidelis
Fonet:http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=8265
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