Infância Urgente

terça-feira, 6 de abril de 2010

Direito à cidade: é possível unir o dividido?

Por Márcia Hirata e Renata Bessi

Todos, pobres e ricos, defendem o Direito à Cidade. O consenso está expresso e declarado tanto na Carta do Rio de Janeiro, resultado do 5º Fórum Urbano Mundial (FUM), organizado pelas Nações Unidas, quanto na Carta do 1º Fórum Social Urbano (FSU), feito paralelamente ao FUM por movimentos populares, entre os dias 22 e 26 de março, na Zona Portuária do Rio de Janeiro.

O desenrolar das atividades dos dois eventos – um frequentado principalmente por autoridades, técnicos, ONGs, intelectuais, representantes do Banco Mundial, e outro por movimentos populares, intelectuais e técnicos – evidenciou, no entanto, diferenças de concepções sobre os caminhos a seguir para alcançar o Direito à Cidade.

A representante do Banco Mundial, Zoubida Allaoua, durante a mesa de debate do FUM, “Unindo o urbano dividido: cidades inclusivas”, pregou a consonância entre as agendas social e econômica para se chegar à igualdade de Direitos. “A Agenda social não pode estar dissociada da agenda econômica”. Diante de tal afirmação, Ermínia Maricato colocou em xeque o próprio tema da quinta edição do FUM, “O Direito à Cidade: unindo o urbano dividido”.

Visão hegemônica
Para ela, existe uma visão conservadora hegemônica cujo discurso tenta agregar partes conflitantes, amenizando conflitos. “Não é verdade que podemos anexar os pobres à cidade formal”. Os conflitos existem e não podem ser camuflados, avalia. “Não é verdade que se colocarmos empresários, técnicos, movimentos populares juntos para resolver os problemas eles serão solucionados. Temos diferenças de interesse e elas precisam aparecer”.

A presidente da Fundação Rockefeller, Judith Rodin, atribuiu à urbanização não planejada as desigualdades nas cidades. Já para Antônio Garcia, da União Européia, as desigualdades estão ligadas à má gerência de governos. E para a representante do Banco Mundial, o Estado tem obrigação de corrigir as desigualdades.

A realidade mostrada pelo relatório da ONU, que aponta que as cidades brasileiras estão entre as mais desiguais do mundo, no mesmo patamar de centros urbanos de países como Colômbia, Argentina, Etiópia e Zimbábue, não se trata de uma questão apenas de governo, afirma Maricato. “A good governance, que hoje é a bola da vez, possui poder limitado de mudar questões estruturais”. Para ela, há outras correlações de forças. “Por exemplo, no caso do acesso à terra urbanizada. Muitos prefeitos estão ligados ao capital imobiliário. Temos leis e planos que não acabam mais, declarações bem intencionadas e de nada adiantam”.

Desigualdade de poder
Para o professor da Universidade de Columbia nos Estados Unidos, Peter Marcuse, entre as questões estruturais está o equilíbrio de poder na sociedade. “O que está por traz das desigualdades de renda e de consumo é a desigualdade de poder. É necessário redistribuir o poder. Não é possível empoderar os pobres sem afetar o poder dos ricos”.

Os temas abordados pelo FSU evidenciam tal desequilíbrio. Trataram da criminalização da pobreza e violências urbanas, dos megaeventos e a globalização das cidades, conflitos socioambientais nas cidades e justiça ambiental e grandes projetos e lutas em áreas centrais e portuárias.

Outra diferenciação trazida por Maricato são as interferências internacionais nas cidades brasileiras. “Estou cansada de consultor internacional vir aqui dizer o que temos que fazer”. Judith Rodin foi chamada pelo moderador da mesa, Steve Bradshaw, jornalista da BBC, a contrapor a posição de Maricato. “Pode ser que consultores internacionais tenham suas motivações, mas possuem intenção de ajudar”, retrucou.

Esta questão parece ter ecoado no debate sobre o tema “Levando adiante o Direito à Cidade”, na aplaudida fala de Rose Molokoane, da entidade “South African Urban Poor”. Para ela, quem passa pelos problemas é quem quer resolvê-lo. E pede que o governo os ouça. Os movimentos organizados, avalia Molokoane, não querem conflitos, mas sim desafiá-lo com a apresentação de projetos próprios.

Para Maricato, a sociedade civil brasileira precisa sair da letargia e encarar a realidade. No país existem cerca de 20 mil conselhos participativos, informa ela. “Todos nós estamos participando, mas estamos fragmentados. Não conseguimos sair do mesmo. Temos que reinventar a forma de discutir estas questões. Quem é governo sabe que quem muda as coisas é o povo”.

Cidade-empresa
Tendo em vista o conceito de cidade global, cunhado pela socióloga da Universidade de Chicago, Saskia Sassen – em que as cidades são conectadas em circuitos globalizados, principalmente em relação ao capital financeiro internacional - o urbanismo de mercado é um efeito que predomina em todo o mundo. “Estão nos unindo por meio das cidades transformadas em mercadoria”, afirma Marcuse.

A idéia também foi compartilhada por João Whitaker, arquiteto, urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), e Carlos Vainer, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), que participaram da mesa “Os Megaeventos como Modelo de Desenvolvimento: efeitos e contradições”, realizada no FSU. Para Whitaker, as Olimpíadas e as Copas vêm para alavancar a política urbana mercantilizada. “Permite a canalização de capital do Estado para o capital empresarial. Tudo isso sob o disfarce do interesse público”, disse.

O próprio conceito de planejamento estratégico, criado n Harvard Business School, levado para as cidades, explica Vainer. “Elas estão submetidas aos mesmos desafios das empresas. Vemos uma competição entre territórios por investimentos. Nossas cidades estão sendo pensadas como unidades competitivas”, avalia. Neste modelo de cidade hegemônico desaparecem os espaços de diversidade e encontros.

Na agenda política
Como afirmou Maricato na abertura do FSU, os dois foruns demonstram que o urbano adentrou a “agenda política” dos debates. Harvey, por sua vez, afirma que são elas que nos permitem compreender e até transformar o momento político atual.

Para a construção da unidade do “Urbano Dividido” a ONU acabou por reunir atores sociais diversos e tiveram que ouvir, nos próprios debates por eles organizados, a negação a tal unidade, apesar do objetivo comum de atingir o “Direito à Cidade”. No entanto, não se pode negar, a organização estrutural do FUM procurou garantir a diversidade de falas. Debates de dia inteiro sobre um mesmo tema foram sistematizados em relatórios. Neles foi permitida a incorporação de questões da platéia, como comemora o Fórum Nacional de Reforma Urbana em seu sítio eletrônico. Suas sugestões estão no documento final. Por outro lado, na Plenária Geral do FSU houve resistências, por parte da coordenação do fórum, quanto a propostas de alterações estruturais de sua “Carta do Rio de Janeiro”. Ao final a carta sugerida pela coordenação do FSU foi votada e aprovada em plenário. Formou-se então uma comissão que deverá incorporar sugestões encaminhadas por e-mail.

Apesar de as bandeiras tradicionais definidas pelos movimentos populares, tais como a função social da propriedade e a gestão participativa, estarem presentes nos documentos finais dos dois fóruns, o FSU demarcou como diferença a incompatibilidade do papel do mercado na construção da cidade como um direito. Harvey esclarece tal diferença na conclusão de sua fala de abertura do FSU: “O direito à cidade é uma verdadeira luta anticapitalista e antimilitarista”. As entidades mais lembradas como representantes de tal mercado participaram ativamente do FUM. São elas Banco Mundial, BNDES e Fundação Rockefeller.

Na versão do FSU para a '”Carta do Rio de Janeiro”, os movimentos populares apresentam uma alternativa ao modelo em vigor para a concretização do “Direito à Cidade”. Na carta, os movimentos reafirmam: “Não se trata de um modelo alternativo, mas de alternativas ao modelo, numa urbanidade e num planejamento urbano insurgentes que desafiam e contrariam o mercado, ao invés de servi-lo subservientemente”.
Para Peter Marcuse, em contraposição ao mercado, é preciso ressaltar ações solidárias do cotidiano, como o professor ou a enfermeira que continuam em suas profissões apesar dos baixos salários. A avaliação foi feita à mesa do FUM “É possível uma nova cidade? Práticas e utopias”. Pode não ter sido sua intenção, mas resta como recado ao FSU de que a unidade tem que ser construída no cotidiano, e não somente a cada dois anos.

Articulação
De acordo com entidades e movimentos populares, as cidades que serão sede já estão sentindo os efeitos da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016, com remoções e despejos de moradores das áreas que receberão tais eventos.

O Centre on Housing Rights and Evictions (Cohre), em seu site, afirma que os Jogos Olímpicos deslocaram e expulsaram de suas moradias mais de dois milhões de pessoas nos últimos 20 anos. Este foi um ponto tocado por David Harvey, da City University of New York, durante a abertura do FSU. Ele lembra a atual crise na Grécia, cujas causas em parte se encontram nas dívidas contraídas nas Olimpíadas de 2004.

Desta maneira, no FSU ganhou força a articulação de uma frente de ação popular, como reação aos efeitos sociais trazidos pelos megaeventos. Na mesa que trouxe este debate, “Os megaeventos como geradores de conflitos”, Maurício Guilherme Braga, do Movimento União Popular, relembrou a articulação dos movimentos durante os jogos Pan Americanos no Rio de Janeiro, em 2007. “Conseguimos articular mais de 40 manifestações em toda a cidade”. Agora, o objetivo é fazer uma rede nacional, afirma Braga.

Ele conclama ainda os conselheiros municipais de Habitação, das cidades que serão sede de eventos, para que coloquem em pauta os impactos das obras na cidade e na vida das pessoas mais vulneráveis. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes já se adiantou em proibir atos e manifestações nas proximidades dos locais em que devem ocorrer a Copa do Mundo em 2014.

O plenário do FSU reunido no dia 25 de março declarou a mesma data como Dia Internacional de Luta pelo Direito à Cidade, pela Democracia e Justiça Urbanas. Também foi marcada a segunda edição do FSU para daqui a dois anos, em paralelo ao Fórum Urbano Mundial da UN-Habitat, em Bahrein.

O Fórum Urbano Mundial, organizado pela ONU, é considerado a conferência mais importante do mundo sobre as cidades. A primeira reunião aconteceu em Nairóbi, no Quênia, em 2002. Depois em Barcelona (2004), Vancouver (2006), e Nanquim (2008).

Segundo a organização do evento, o Fórum no Rio de Janeiro recebeu 21 mil inscrições. Os seis eixos estratégicos definidos para os diálogos e os temas para os debates abertos foram: "Levando Adiante o Direito à Cidade", "Unindo o Urbano Dividido: Acesso Igualitário à Moradia", "Diversidade Cultural nas Cidades", "Governança e Participação" e "Urbanização Sustentável e Inclusiva".

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