Série aborda as dificuldades para adotar crianças no Rio Grande do Sul
Juliano Tatsch
O Rio Grande do Sul tem hoje mais de 4,3 mil crianças e adolescentes que vivem em abrigos, públicos e privados. Destes, apenas 4,93% estão na faixa etária de zero a dois anos. Faixa etária esta que foi escolhida por 36,48% das pessoas que adotaram no Estado durante os últimos 12 meses. Do total de abrigados, 3,76% são portadores do vírus HIV e 16,79% necessitam de cuidados especiais por possuírem alguma deficiência.
No entanto, das crianças adotadas entre outubro de 2008 e outubro deste ano, 3,7% têm diagnóstico positivo para HIV e 1,01% possuem alguma deficiência. Cerca de 23,7% dos menores que vivem em abrigos no Estado possuem algum tipo de síndrome, seja ela orgânica, neurológica, infectocontagiosa ou psiquiátrica. Somente 1,44% dos adotados no período já referido têm algum tipo de síndrome. Negros representam 16,37% dos abrigados e apenas 2,89% das adoções. O percentual dos que vivem em abrigos e que têm entre 15 e 18 anos é de 18,7%. O dos adotados que estão nesta faixa etária é de 4,9%.
Dos 5.230 candidatos a adotar cadastrados na Justiça da Infância e da Juventude do Estado, 90,8% têm preferência por crianças com menos de um ano de idade e apenas 0,42% optam por adotar jovens entre 11 e 18 anos. Durante os últimos 12 meses, 691 crianças e adolescentes foram adotados no Estado.
No dia 29 de abril de 2008, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), que integra as listas de crianças que podem ser acolhidas e de candidatos a adotá-las existentes em todo o País. Hoje, há em torno de 23,2 mil pais em potencial no CNA, sendo que destes, 18.501 (79,46%) só concordam em adotar crianças entre zero e três anos, e 9.543 (40,99%) apenas aceitam crianças brancas. Levando em consideração o que consta no cadastro, há ao redor de 80 mil crianças e adolescentes que vivem em abrigos no Brasil. Cerca de 6,1% delas têm entre zero e três anos e 51,6% têm mais de 12 anos. Além disso, destas 80 mil, apenas 3.657 fazem parte do cadastro, ou seja, podem ser adotadas.
O Rio Grande do Sul é o segundo estado com o maior número de jovens cadastrados no CNA. São 734 crianças e adolescentes. O Estado só fica atrás de São Paulo, com 1.165 jovens. Em relação ao número de adultos pretendentes à adoção, são 4.027 no Estado, novamente ficando atrás apenas de São Paulo, com 6.163.
Estes são os números. Frios. O que se vê nos abrigos, porém, não são números. São vidas. Vidas à espera de uma família. Outra questão: o que ocorre com os jovens que, ao completarem a maioridade, depois de terem passado até 18 anos em um estabelecimento de abrigagem, muitas vezes sem receberem qualquer tipo de carinho parecido com o dispensado por um pai ou uma mãe, saem destes locais, sem vínculo de laço afetivo com o mundo exterior?
A nova lei da adoção, que foi sancionada no início deste mês pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e passa a valer a partir do dia 3 de novembro, não responde a essa questão. O novo texto, que de novidade traz muito pouco, também deixa em dúvida a possibilidade ou não de casais homoafetivos poderem adotar, colocando a decisão nas mãos do juiz. Ou seja, de acordo com a legislação, talvez seja melhor que a criança ou adolescente permaneça em um abrigo superlotado, tendo de dividir a atenção dos funcionários ou voluntários com dezenas de outros companheiros, a receber o carinho e o acolhimento de uma família. O texto original deixava clara essa possibilidade; entretanto, pressões políticas fizeram com que esta parte fosse suprimida.
Somente em Porto Alegre, há cerca de 1,6 mil abrigados. Segundo o juiz da 2ª Vara de Infância e Juventude da Capital, José Antonio Daltoé Cezar, as principais dificuldades para se realizar a adoção se encontram em dois perfis de jovens. "Nós conseguimos colocar crianças maiores para a adoção, o que não conseguimos é pôr os doentes e os grupos de irmãos. A sociedade não adota soropositivo, é muito raro. Ao contrário do que se pensa, as principais dificuldades não estão relacionadas com a cor da pele, mas sim com a saúde e com os grupos de irmãos", diz.
Para o magistrado, o principal ponto positivo da nova lei da adoção está em impedir que crianças e adolescentes permaneçam por mais de dois anos em abrigos. "Tem muita criança abandonada que está precisando de pai e mãe em abrigo e é uma situação que perdura há algum tempo. A lei da adoção pode melhorar, pois não vamos ficar meses ou anos esperando que uma família se reestruture. O tempo da criança é outro. Ela é diferente do adulto. Ela precisa crescer em família", ressalta.
Amanhã: especialistas defendem campanhas sistemáticas estimulando a adoção.
A vida à Espera da Adoção
Alta no consumo de drogas resulta em mais abandonos
Junto com todas as razões que historicamente fazem com que pais e mães abandonem seus filhos, mais uma causa se disseminou na sociedade, em todas as classes sociais: o consumo de crack. A droga, que segundo estatísticas da Secretaria Estadual da Saúde é consumida regularmente por 55 mil pessoas no Rio Grande do Sul, é um dos principais motivos das lotações dos abrigos.
"Hoje, a principal causa de destituição do poder familiar são as drogas, o álcool e, principalmente, o crack, que aumentou muito nos últimos tempos. Claro que existe um problema social, mas quando as pessoas têm recursos próprios para se organizar elas conseguem. O problema é que atualmente existe uma desagregação familiar muito grande. No ano passado, colocamos 61 crianças com menos de um ano de idade em abrigos. As mães de todas elas eram usuárias de crack. Temos que fazer um trabalho muito consciente e rápido", afirma Daltoé.
De acordo com o magistrado, o problema deve ser abordado de modo mais amplo. "O Estado tem limites, o Poder Público tem limites. É necessário cuidar dos abrigos, mas não podemos permitir que pessoas que não conseguem cuidar de si próprias tenham cinco, seis ou sete filhos. Quantas vagas nós precisaremos ter? Ao invés das 1,4 mil, vamos precisar de três mil, quatro mil. As pessoas fazem um filho por ano e não conseguem cuidar."
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo número 19, diz que "toda a criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes".
O ponto da nova lei que Daltoé destaca está no parágrafo 2, que foi incluído neste artigo, e que diz que "a permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de dois anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária".
O que se vê na prática, porém, contraria o ECA. Conforme uma pesquisa realizada em 2003 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e pelo Ministério do Desenvolvimento Social, uma das únicas já realizadas sobre o tema, tratando nacionalmente destes pontos, cerca da metade dos menores que viviam em abrigos estava lá há mais de dois anos. Ainda segundo o estudo, 32,9% estavam nos abrigos entre dois e cinco anos, 13,3% estavam abrigados por um período entre seis e dez anos, e 6,4%, há mais de dez.
Os problemas estão aí, para quem quiser ver. As soluções que estão sendo encontradas geralmente são iniciativas isoladas, de organizações da sociedade civil. As causas são diversas: drogas, violência, álcool, pobreza. A consequência é uma só: o prosseguimento de vidas à espera.
Fonte: Jornal do Comércio
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