Por Juliano Costa, Redação Yahoo! Brasil
As enchentes na várzea do Rio Tietê na Zona Leste de São Paulo, que vão completar dois meses no próximo dia 8 de fevereiro, ressuscitaram um debate sobre a ausência do planejamento urbano naquela área.
# Especial São Paulo
Comunidades inteiras que ficaram alagadas, como o Jardim Romano, o Jardim Pantanal e a Chácara Três Meninas, foram erguidas próximas às margens do Tietê, impermeabilizando o solo. Algumas já começaram a ser derrubadas, como a Vila Aimoré - os moradores foram reassentados em Conjuntos Habitacionais em cidades vizinhas (bem longe de onde moravam) ou se cadastraram para receber um auxílio-aluguel de R$ 300 por seis meses.
A questão é que muito desses moradores estavam ali já há mais de 30 anos, com a anuência do poder público, já que contavam com luz elétrica, telefone e água encanada - um bairro como outro qualquer, mas numa região pantanosa. A indignação das pessoas vem da falta de planejamento dos governos - do estado e da prefeitura de São Paulo - no reassentamento e do fato de que muitas empresas não serão despejadas como elas, apesar de estarem às margens do rio.
"Vão tirar os pobres e deixar as empresas", resume o líder comunitário Ronaldo Delfino, do Movimento por Urbanização e Legalização do Pantanal (Mulp).
Depois de um mês com bairros inteiros debaixo d'água, a secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo criou, em 6 de janeiro, uma resolução que torna mais rigorosos os procedimentos de licenciamento ambiental na área de influência do Rio Tietê. A questão é simples: como uma obra na várzea resulta em impactos ambientais que transcendem os limites dos municípios, cabe ao governo estadual a fiscalização. Por isso, agora o licenciamento nestas áreas tem de passar por órgãos estaduais como a CETESB (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) e o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica). A tarefa antes cabia às prefeituras municipais das cidades por onde passará o Parque das Várzeas do Tietê, como Itaquaquecetuba, Mogi das Cruzes, Poá e Suzano.
O plano do governo do estado é "recuperar as várzeas ocupadas irregularmente e preservar as remanescentes a montante da barragem da Penha até a nascente do rio, em Salesópolis". A área, de 75 km de extensão e 90 km², se tornaria o "maior parque linear do mundo", como tem alardeado o Governo. As moradias serão desapropriadas para dar lugar a uma imensa área verde - as árvores retiradas para construção da terceira pista da marginal Tietê vão para lá. Mas as empresas vão ficar.
A delimitação do Parque corresponde a um estudo da secretaria do Meio-Ambiente que criou a chamada Área de Proteção Ambiental (APA). A linha verde que caracteriza a APA inclui as comunidades pobres, mas deixa de fora as empresas. Num mundo ideal, todos teriam de sair dali. Mas...
"Esse problema já dura mais de 30 anos e vem passando de um governo para o outro. Já passou da hora de tirar aquele pessoal de lá. Se estão numa área de proteção ambiental, numa váreza de rio, é óbvio que a água vai entrar em casa - e nas fábricas também. O loteamento impermeabilizou as várzeas e gerou esse problema, com a leniência dos governos", diz Miron Rodrigues da Cunha, membro da diretoria executiva do Conselho Gestor da APA da Várzea do Rio Tietê. "Construíram até um CEU (Centro de Educação Unificada) numa área próxima ao Rio. Fizeram sem consultar o Conselho Gestor da APA. E agora como fica? Deixa a escola lá? Ela está alagada..."
O CEU é herança da administração de Marta Suplicy (PT) na prefeitura. A mão do governo em local errado, porém, começou a ser vista com o governador Mário Covas (PSDB). Um imenso Conjunto Habitacional da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) foi inaugurado em 1998 às margens da rodovia Ayrton Senna - no caminho para o Aeroporto Internacional de Guarulhos. Isso tudo deixa a população ressabiada - como um complexo de prédios pode ficar ali e uma centena de barracos precisa sair?
A secretaria do Meio-Ambiente garante que a fiscalização será mais rigorosa. A Bauducco, situada em Guarulhos, foi a primeira a ser enquadrada. A empresa foi erguida num aterro às margens do Tietê. Durante a fiscalização também se constatou o desaparecimento de um córrego próximo ao terreno, de acordo com os mapas hídricos do DAEE. O arquiteto da obra, Lúcio Gomes Machado, argumentou que quando obteve o terreno já não havia o córrego no local e que o aterramento seria uma movimentação de terra para formar um piscinão que contenha a água da chuva. A empresa está concluindo um parecer para apresentar à CETESB comprovando que agiu sem qualquer irregularidade. Se for constatado dano ambiental, o DAEE pode exigir que o problema seja desfeito ou uma compensação ambiental. Se as exigências não forem cumpridas, a empresa poderá ser multada e até mesmo interditada.
Tamanha paciência não se aplica à população local. Vilas inteiras foram demolidas em semanas. Há casos de resistência, como o de Dona Marta - que será personagem da segunda reportagem desta série.
"Eu não consigo dormir de tão indignada que estou com toda essa situação", diz a geógrafa Odette Carvalho de Lima Seabra, autora de "Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder: O Processo de Valorização dos Rios e das Várzeas do Tietê e do Pinheiros". A professora doutora da USP clama por uma mobilização popular. "A administração pública não pode deixar o povo dentro da água, mas precisa fazer a remoção com respeito. Não pode somente tirá-los de lá e jogar em outro lugar."
Cloro para limpar o Tietê?
O reassentamento tem sido polêmico. Muitas famílias foram colocadas num Conjunto Habitacional em Itaquaquecetuba, a 11 quilômetros de onde moravam e em instalações péssimas - que será o tema da terceira reportagem desta série.
"Falta organização e planejamento", diz Bruno Miragaia, Defensor Público para assuntos de Habitação e Urbanismo na Zona Leste de São Paulo. "A empresa contratada para fazer o cadastramento não está sabendo lidar com os moradores. É tudo feito de forma desrespeitosa. Veja: estamos lidando com gente que perdeu tudo. É preciso respeito. A pessoa com água nos pés acaba abrindo mão de muitos direitos no desespero. Eles perdem a referência."
Uma tenda da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) foi erguida num descampado ao lado da região mais afetada pelas chuvas na Vila Aimoré, um ponto estratégico entre o Jardim Pantanal e o Jardim Romano, os bairros mais castigados. Funcionários da Sabesp distribuem cloro à população para evitar a proliferação de doenças causadas pela água contaminada - um garoto de seis anos morreu no final de dezembro de leptospirose. "Eles acham o quê? Que vão limpar o Tietê com todo esse cloro? O problema é outro. Tem que combater o que causa a enchente, e não se preocupar apenas com o que vem depois dela", diz Ronaldo, o líder comunitário.
Barreiras da discórdia
São dois os pontos principais de contestação: a necessidade urgente de desassoreamento do rio Tietê naquela área e a fiscalização sobre a abertura da barragem da Penha. Há a suspeita de que ela tenha sido fechada durante a chuva do dia 8 de dezembro, para que a marginal Tietê não fosse inundada. A água represada teria inundado as comunidades vizinhas ao rio naquele ponto.
"Há fortes indícios de que essa questão do fechamento da barragem tenha resultado nas enchentes. Solicitamos ao DAE (Departamento de Águas e Energia) um relatório e um técnico dará o parecer", diz o defensor público Bruno Miragaia. "Mas já sabemos que o rio está muito assoreado. Entramos com uma ação na Justiça, pedindo medidas para amenizar o problema, e o desassoreamento do rio é uma delas. Choveu demais e enchentes acontecem, mas aquele é o único lugar em que a água só sobe, não desce."
Segundo a Secretaria de Saneamento e Energia do Estado, responsável pela barragem da Penha, mesmo com a abertura das comportas a água não baixou por se tratar de uma área de várzea, "espaço natural de amortecimento das cheias".
Miron Rodrigues da Cunha, do Conselho Gestor da APA da Várzea do Rio Tietê, diz que "a função da barragem é exatamente regular as enchentes, mas o problema é que toda aquela área ali foi assoreada com detritos de lixo, então a água acaba passando por cima da barragem quando o volume é muito grande." Ele concorda com Miragaia e vai além: "Tem que fazer o desassoreamento, mas só isso não basta. Um rio só se corrige se você parar de agredi-lo."
A geógrafa Odette lembra que a poluição do Tietê começou nos anos 30, com o estabelecimento da Nitroquímica na região de São Miguel. O crescimento da cidade em torno de seus dois principais rios - o Tietê e o Pinheiros - causou a impermeabilização das margens. Quando chove em excesso, a água não tem para onde ir. "Vemos poucos investimentos nessa área, porque esse tipo de obra não é como uma estrada, que todos vêem", diz Miron Rodrigues da Cunha. "No Japão, foram construídos piscinões subterrâneos que eliminaram os casos de enchente. Mas qual político no Brasil vai investir numa obra que ninguém vai ver?"
Segundo o secretário do Meio Ambiente, Xico Graziano, o projeto para aquela área é outro. "O nosso foco agora é combater a impermeabilização. Várzea é como uma grande piscina natural e queremos garantir que esse piscinão exista", explicou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário