Homens armados entraram na residência de um adolescente, “por respeito à família” o retiraram de casa e o executaram a tiros no meio da rua. A adolescente “Maria”, nome fictício, de 15 anos, moradora de um bairro da zona oeste de Natal, não soube do fato pelos jornais, por conversas com colegas, ou mesmo através da televisão. A vítima era seu amigo e a casa de onde o retiraram é vizinha a dela. Fatos como esse fazem parte do dia a dia de milhares de crianças e adolescentes de Natal e foram alvo de uma pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No estudo realizado entre 2008 e 2009, pesquisadores analisaram a associação de jovens de 12 a 29 anos com a violência nas 266 cidades do país com mais de 100 mil habitantes, das quais três estão no Rio Grande do Norte. Da pesquisa surgiu o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, para o qual foram avaliados fatores como o número de homicídios, mortes por acidente de trânsito, frequência à escola, acesso a emprego, nível de pobreza e desigualdade social, nessa faixa etária.
Os municípios potiguares ficaram em posições intermediárias no ranking: Mossoró em 94º, Natal em 152º e Parnamirim em 189º, com índices de vulnerabilidade entre médio e médio-baixo. Contudo, não há motivos para comemorar enquanto jovens como “Maria” continuarem convivendo com a violência em sua rotina diária. “Fora essa morte de meu vizinho, já presenciei um assalto e uma outra tentativa de assassinato”, revela a adolescente.
Segundo ela, cada um dos crimes a marcou profundamente, seja através da perda do amigo, ou do temor maior em ir às ruas. “Nunca fui assaltada, mas realmente tenho medo”, admite. “Maria” convive com a violência nas áreas onde anda diariamente e diz que é normal ver pessoas que “conhece de vista” armadas, ou envolvidas em algum crime. A jovem entende que essa convivência influencia vários de seus colegas e reforça: “Muitos já acham normal. Lá perto de minha casa a gente vê direto”.
Questionada sobre o que poderia ser feito pelo poder público para mudar o cenário, ela assume a total falta de conhecimento a respeito de possíveis opções. “Aí você me pegou.” No entanto, a adolescente sabe bem como agir para evitar uma aproximação ainda maior em relação à violência a sua volta. Ela concorda que é complicado se posicionar contra, mas “quando lhe oferecerem para entrar, você recusa”.
Realidade não pode ser escondida
Há cerca de quatro anos Mariana Simonetti*, bacharel em Psicologia pela UFRN, participa de programas e estudos que trabalham diretamente com crianças e jovens expostos à violência. Tendo convivido com dezenas de casos nesse período, ela afirma que uma das piores formas de evitar que os filhos se envolvam com a violência ao redor é esconder a realidade. “Não adianta. Quando ela chegar fora de casa vai descobrir essa realidade e, se os pais agirem assim, talvez ela não esteja preparada e fique mais vulnerável a ingressar nesse espaço de violência”, ressalta.
Encobrir a existência da marginalidade, dos crimes, das drogas e de outras formas de violência existentes na sociedade pode fazer com que os filhos cresçam sem saber como se afastar, ou como evitar esses problemas. “Cabe aos pais conscientizar os filhos dos perigos existentes no mundo, não escondê-los, porque eles estão aí no nosso dia a dia e certamente essa criança um dia vai se deparar com alguma forma de violência”, aponta Mariana Simonetti.
Umas das formas de transmitir essa consciência é incutir valores positivos na mente dos futuros adultos, dentro do convívio familiar. “Quando se inicia a formação da personalidade da criança, que ela vai se desenvolvendo emocionalmente e intelectualmente, vai tendo acesso a valores e começa a aprender a conviver de uma certa forma dentro de casa. E essa forma pode se reproduzir na sociedade”, observa.
Se o jovem perde o respeito pela autoridade familiar, ou pelas regras impostas dentro de casa, aumentam as chances de também não respeitar as normas do convívio social. A comunidade, no entanto, não é apenas vítima de crianças e adolescentes que desconhecem limites. É também culpada. “O estatuto (da criança e adolescente) diz claramente que é dever não só da família, mas de toda a sociedade e também do estado manter a proteção a essa parcela da população”, destaca.
Mariana Simonetti reforça que para ser vítima “a criança não precisa apanhar. Convivendo em um contexto de violência já está se tornando uma vítima. Só em olhar o pai bater na mãe, por exemplo, ela já terá reflexos em seu desenvolvimento.”
*(A jovem é Bacharel em Psicologia, apesar de experiente ela ainda não é oficialmente Psicóloga, título que só recebe daqui a um mês, então não podemos usar psicóloga, só bacharel em Psicologia)
Violência em casa é mais comum
A conselheira tutelar Francinete Flor acompanha há dois anos casos de crianças e adolescentes expostos a situações de violência, na zona Oeste de Natal, e garante que o mais comum são as brigas, discussões e agressões dentro das próprias residências. “Violência doméstica, negligência familiar, maus-tratos dos pais e agressões contra as mães são nossos casos mais comuns”, aponta.
Ela reconhece que a relação próxima com qualquer tipo de violência vai afetando o crescimento psicológico das crianças. “Muitos têm o pai como referência e terminam seguindo a agressividade com a qual cresceram vendo seus pais agirem”, entende Francinete Flor. Quando chegam ao Conselho, algumas não se permitem sequer falar do assunto, por medo de represálias dos pais, ou até por não entenderem a violência que ocorre ao seu redor.
Em certas situações, contudo, as crianças e principalmente os adolescentes desabafam. “Quando já estão no limite a gente percebe nos olhos deles que a história não é aquela e alguns acabam contando a verdade”, relata. Muitos pais conhecem a gravidade da atitude que tomaram, seja contra o filho, ou contra as mulheres, na frente dos filhos. Por isso, é comum que peçam silêncio à criança, ou a ameacem caso revele o que assistiu, ou o que sofreu.
“Por isso as escolas precisavam ser mais presentes. O professor é a pessoa que pode trazer para o conselho tutelar essas informações, já que convive de perto e muitas vezes o pai e a mãe não interessam em denunciar a situação a qual o filho está exposto. Algumas escolas até ajudam, mas várias, infelizmente, deixam para denunciar quando o aluno já está no limite”, reclama a conselheira.
A demora dificulta a solução do problema, que pode passar pela convocação dos pais, o afastamento do agressor, encaminhamento ao psicólogo, a programas de emprego, ou a cursos profissionalizantes. Uma das dificuldades é o estigma que muitos jovens carregam consigo. “Às vezes eles têm como base ‘meu bairro é violento’ e falam da necessidade de melhorar suas vidas, mas a discriminação pesa muito porque seus bairros são notícia de televisão por conta da violência. Há casos de jovens que têm dificuldade em conseguir emprego por conta do endereço onde moram”, revela.
Ela lembra que a violência das ruas não implica necessariamente em um crescimento “desregrado” da criança que convive com essa realidade e reforça que o problema comumente surge dentro do próprio lar. “Temos casos de crianças de cinco anos que não têm mais limites em casa. E que levam para a escola essa falta de limites. Já escutei depoimento de adolescente, com seus direitos violados na convivência familiar, que diz que aprendeu tudo o que faz de errado vendo em casa.”
Francinete Flor ressalta, porém, que a responsabilidade não é apenas dos pais. “Todo mundo tem de estar presente, a sociedade em geral. O conselho não é capaz de resolver tudo”, resume.
Sinais diferem de um jovem para o outro
Esqueça o mito de que crianças vítimas de violência crescem violentas. Ou o de que a exposição a um ambiente de repressão as torna necessariamente tímidas e retraídas. De acordo com a bacharel em Psicologia Mariana Simonetti, não há uma regra geral que defina os reflexos que uma infância exposta à violência terá no desenvolvimento do indivíduo. Um sinal comum, porém, é a mudança de comportamento.
“Os indícios são muito variáveis dependendo da criança. O que existe geralmente é que ela muda o comportamento, mas não se pode afirmar que vá ficar mais quieta, ou mais agressiva. Uma criança quietinha, retraída, pode se tornar mais agitada, ou até mais retraída ainda. É preciso observar a mudança de comportamento. E outro possível sinal é quando a criança que vinha estudando bem começa a apresentar dificuldades, sem nenhum motivo claro”, reforça.
A bacharel em Psicologia também confirma ser um “mito” a ideia de que o adolescente vítima de violência reproduza a mesma atitude na idade adulta. “Pesquisas apontam que os agressores, na maioria dos casos, não sofreram violência quando eram crianças. Em alguns casos sim, mas não é regra.” Em qualquer situação, o acompanhamento especializado pode reduzir os efeitos negativos da exposição à violência. E quanto mais cedo melhor. “Desde pequena a criança é influenciada, porque além dos danos físicos, há o dano psicológico que vem junto com todo tipo de violência.”
Mariana Simonetti integra o Núcleo de Estudos Sócio-Culturais da Infância e Adolescência, da UFRN, e acompanhou programas como o “18 de Maio”, do Ministério Público; e o “Escola que Protege”, voltado para ajudar professores a identificar os sinais de violência sofridos pelas crianças. “Infelizmente a gente não observa muito os professores buscando ajuda para alunos vítimas de violência”, lamenta.
Uma das maiores barreiras à descoberta dos casos é o chamado “pacto de silêncio”, formalizado dentro das casas, por ordem dos agressores, que geralmente são os pais. “Por isso todos os responsáveis, professores, profissionais de saúde, vizinhos, têm o dever de denuncia qualquer suspeita, não necessariamente precisa ser comprovada”, ressalta. A denúncia pode ser feita pelo telefone 100, ou através dos conselhos tutelares.
Fonte:Tribuna do Norte
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