Maria José Sá
Somente nesse ano, o Ministério Público Estadual já contabiliza 120 denúncias de maus tratos sofridos por crianças e adolescentes em situação de rua, por instituições que deveriam cuidar deles. De acordo com o promotor de justiça Everaldo Sebastião de Souza, coordenador do Centro de Apoio Operacional (CAO) da Infância e Juventude, em Goiânia existem 18 abrigos de menores, conveniados com a Prefeitura. Em todo o Estado, são 70 abrigos. Desse total, 80% possuem irregularidades, sendo que 15 são os campeões de reclamações.
As queixas, formalizadas por Ongs e pessoas anônimas, vão desde castigos moderados até agressões físicas. O MP está investigando todas as denúncias e abrindo processo individual em nome de cada vítima. As instituições acusadas poderão até ser fechadas, dependendo da gravidade da infração. O promotor lamenta o fato das denúncias apuradas até agora serem verdadeiras. "Infelizmente, estamos comprovando que as agressões relatadas pelas crianças e adolescentes correspondem à verdade".
Everaldo Sebastião conta que ele mesmo ficou chocado quando fez uma visita de surpresa a um dos abrigos denunciados, em Goiânia. "Cheguei sem avisar e fui entrando, logo olhei pela janela de uma sala e lá estavam vários meninos de joelhos. Ao ser questionada, a diretora da instituição afirmou que essa é uma prática comum para punir os desobedientes, que chegam a ficar mais de hora ajoelhados."
"Prefiro passar frio e fome na rua"
Na comemoração dos 76 anos de Goiânia, autoridades faziam discursos inflamados, no palanque montado na Avenida 24 de Outubro, frisando que na bela capital não existem problemas sociais. A um quarteirão do palanque, numa esquina da Rua Benjamin Constant, encontramos um menino dormindo sobre um papelão, alheio ao movimento.
Acordamos L.M.S., 16 anos, que não comia nada há dois dias e, em troca de um lanche, nos contou sua história. O jovem relatou que morava no setor Garavelo e, para fugir das agressões da mãe e do padrasto, ele saía da escola e ia para a rua, até que há dois anos rompeu de vez o vínculo com a família e mudou-se definitivamente para a rua, onde se viciou em crack.
L.M. afirma que em Goiânia há mais de 100 meninos e meninas em situação de rua, perambulando pelos bairros da periferia, prostituindo-se, trabalhando para traficantes e praticando furtos e roubos para sustentar o vício do crack. Ele explica que a polícia os expulsou do centro da cidade. Então, eles "se mudaram" para a periferia, onde vivem os traficantes de drogas, para quem "fazem serviço de entrega de mercadoria", em troca de pedras de crack. Quem acredita que em Goiânia não tem crianças em situação de rua, deve abrir os olhos e dar uma volta pelos terminais de ônibus, imediações do Dergo, Terminal Padre Pelágio, bairro Capuava, Campinas e imediações.
Faminto, zonzo pelo efeito das drogas, maltratado, sujo, dentes estragados e com muito frio. Foi assim que encontramos L.M., e é assim que ele diz que prefere ficar, a ter que morar num desses abrigos para meninos em situação de rua. "Já me levaram para um abrigo desse. Até pensei que não ia mais sofrer. Mas, lá um educador batia na gente. Então eu e mais dois irmãos de 9 e 7 anos, que também apanharam, fugimos na mesma noite."
O adolescente continua seu desabafo: "Quando o educador me bateu, senti muito ódio dentro de mim. Na minha casa, minha mãe e meu padrasto me agrediam; na instituição, o educador me bateu; na rua, as pessoas me humilham e a polícia bate. Mas na rua, eu sou livre e fujo de um lugar para outro. Por isso, prefiro passar frio e fome na rua. Tia, me dá um chocolate?"
Cerca de 100 adolescentes vive em cadeias públicas
O promotor Everaldo Souza diz que falta dignidade para as crianças."Criança tem que ser tratada com dignidade. Esse é um direito garantido pelo artigo 227 da Constituição Federal. Essas crianças e adolescentes em situação de rua são vítimas da negligência da família, da exploração, falta de cuidados e abandono.”
Ele cita ainda um problema grave e muitas vezes não divulgado. “Em todo o Estado, temos mais de 100 adolescentes em cadeia pública junto com adultos, por falta de instituições adequadas para cuidar deles. Geralmente o fim desses meninos é a morte, dentro dos próprios presídios. E o poder público ainda tem coragem de ir aos meios de comunicação dizer que o problema não existe. Isso é inconcebível !", indigna-se o promotor.
A presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado de Goiás, Ana Lídia Fleury, ressalta que há em Goiânia mais de cem crianças e adolescentes em situação de rua, por diversos motivos: violência doméstica, família com situação sócio-econômica precária, evasão escolar, dependência química, entre outros.
Ana Lídia, que é psicóloga e mestranda em Serviço Social, enfatiza que "essas crianças e adolescentes geralmente têm muita resistência em aceitar algum tipo de aproximação, mesmo que seja oferecendo ajuda. É necessário ter conhecimento técnico e sensibilidade humana para abordar e acolher essa população que, pelo fato de ser constante alvo de violência, costuma não confiar em ninguém."
O promotor Everaldo Souza diz que a situação dos abrigos é complicada, e por enquanto prefere não revelar nomes: "Na maioria dos casos, nos deparamos com grupos religiosos bem intencionados. Na concepção deles, estão praticando o bem. Porém, acabam piorando a situação por falta de preparo para lidar com crianças e adolescentes agressivos e completamente desestruturados emocionalmente. Esses jovens perderam o vínculo com a família, nas ruas são perseguidos pela polícia, são escravizados pelos traficantes, consomem crack, praticam delitos graves. São vítimas de abusos sexuais e sofrem todo tipo de humilhação e preconceito por parte da sociedade. Como uma instituição quer "consertar" um indivíduo desses agredindo-o mais? Humilhando-o mais? Obrigando-o a seguir uma religião, à força?", questiona.
Segundo o MP, a prefeitura de Goiânia não possui uma política de atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua.
Fonte: Hoje
Um comentário:
Fiquei lisongeada quando uma amiga, que mora em Santa Catarina, me mandou email contando que viu essa matéria nesse blog.
Tenho feito uma série denunciando o descaso da Prefeitura de Goiânia com a assistência social. É muito difícil, mas temos conseguido "incomodar".
Parabéns pelo seu trabalho, vamos nos juntando, para que nosso grito contra o descaso das autoridades brasileiras fique cada vez mais forte.
Obrigada
Maria José Sá
http://mariajosesa.blogspot.com
http://my.opera.com/mariazeze/blog
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