Infância Urgente

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O ECA é inimigo do professor?

O Estatuto da Criança e do Adolescente acaba de completar 18 anos e, embora seja considerado pelos especialistas como uma das legislações mais avançadas do mundo na área da infância e juventude, ainda é objeto de muitas polêmicas. Entre elas, a idéia de que o ECA seria um inimigo do professor. Por curioso que possa parecer, é expressivo o número de professores nas escolas públicas que atribui ao Estatuto grande parte dos problemas enfrentados na escola: “é culpa do ECA”.

Há algum tempo estive com um grupo de professoras do Ensino Fundamental em uma atividade promovida pelo Conselho Regional de Psicologia (Subsede Bauru) em comemoração ao aniversário do ECA. As professoras demonstravam uma espécie de aversão ao Estatuto. Atribuíam a ele a perda da autoridade docente. Por culpa do ECA, diziam, as crianças e adolescentes não têm mais medo de serem punidos. Com isso, teria se instaurado na escola pública o desrespeito ao professor e a indisciplina generalizada.

Mas o que, afinal, diz o ECA sobre a escola e a relação professor-aluno? O capítulo IV determina, em linhas gerais, que a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa e qualificação para o trabalho. Que devem ser assegurados o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência e a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Que é dever do Estado assegurar o atendimento em creches e pré-escolas a todas as crianças e o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, além do ensino regular noturno adequado às condições do adolescente trabalhador. Além disso, o ECA assegura o direito da criança e do adolescente de serem respeitados por seus educadores; de contestarem critérios avaliativos (podendo recorrer às instâncias escolares superiores); de organização e participação em entidades estudantis.

Qual desses direitos poderia ser apontado como culpado ou responsável pelos problemas de indisciplina na escola? Será o direito do aluno de ser respeitado por seus educadores? Parece-me difícil (se não impossível) imaginar uma relação genuinamente educativa em que o aluno não seja respeitado pelo professor como ser humano em processo de formação.

De fato, o ECA expulsa da escola as punições físicas e as humilhações. Mas é isso que nós, educadores, queremos trazer de volta para a escola? Não parece ser essa a reivindicação.

As professoras com quem tive a oportunidade de discutir essas questões me diziam que elas também têm o direito de ser respeitadas por seus alunos - o que não tem ocorrido na escola. Concordo plenamente. Considero que as condições de trabalho do professor na escola pública são hoje literalmente adoecedoras e que o professor muitas vezes carrega em seus ombros uma carga sobre-humana. Mas penso que precisamos identificar com mais cuidado quem são nossos verdadeiros inimigos.

Que fatores têm determinado esse esgarçar das relações humanas no interior da escola? O que determinou esse processo histórico de desvalorização social do trabalho do professor? Por que a atividade de estudo parece não fazer sentido para os alunos?

Não é fácil responder a essas perguntas, pois há uma série de determinações a serem analisadas. Entre elas as políticas públicas em educação implementadas nas últimas décadas em nosso país; o próprio papel da educação escolar em tempos de capitalismo neoliberal; a falta de perspectivas e impossibilidade do adolescente de vislumbrar um projeto de vida; o ensino escolar não mais associado a promessas de ascensão social e melhorias substantivas na qualidade de vida; a secundarização do papel do professor em nome da idéia que basta ao aluno “aprender a aprender”; o hino à reprodução do cotidiano pela escola e conseqüente esvaziamento do ensino; o enfraquecimento dos sistemas de autoridade tradicionais e a própria crise da tradição. Tudo isso em um contexto de relações humanas cada vez mais permeadas por uma lógica mercantil e individualista e de perpetuação de uma estrutura social injusta e desigual.

Diante desse quadro, o ECA se apresenta como uma legislação que, superando as que a precederam, impinge um caráter educativo e protetivo à relação dos adultos e instituições para com a criança e o adolescente. Nesse sentido, nós, educadores, deveríamos ser os primeiros a defendê-la. O Estatuto não é inimigo do professor. Conhecendo seu significado histórico e seu alcance jurídico e social, poderemos tomá-lo como um aliado em nossa luta pela transformação social. A luta por uma sociedade que tenha a formação e o desenvolvimento humano como prioridades e que dê o devido valor aos profissionais que se dedicam a essa tarefa.


A autora, Juliana C. Pasqualini, é psicóloga e professora, doutoranda em educação escolar pela Unesp - câmpus de Araraquara, membro da Comissão de Criança e Adolescente do Conselho Regional de Psicologia - Subsede Bauru

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