Infância Urgente

domingo, 5 de outubro de 2008

Sua majestade, o folclore



Tião Rocha usa a amarelinha para elevar a auto-estima dos alunos, o jogo de damas para ensinar as operações matemáticas e outros saberes populares em aulas de cidadania e sexualidade. O educador, que fez da cultura popular seu ofício, afirma que a tecnologia e as tradições comunitárias têm o mesmo valor.

Todo mundo já ouviu falar de reis e rainhas na escola. Eles eram pessoas importantes, tinham nomes pomposos, levavam uma vida cheia de batalhas e glórias e, na maioria das vezes, habitavam algum castelo do outro lado do Atlântico. Também deve ter ouvido falar dos reis de mentirinha, cujo reino está sob o feitiço da bruxa malvada. Nesse mundo do faz de conta, vivem princesas à espera de um príncipe que as liberte da torre enorme ou das garras afiadas do dragão.

Tião Rocha conhecia outra realeza, feita de reis de verdade e que existem até hoje. Só que sua escola é que vivia na "Terra do Nunca". Nunca ninguém lhe deu ouvidos. Bem que ele tentou contar. Mas nunca ninguém acreditou que sua tia fosse rainha e que, todos os anos, de agosto a outubro, ela se vestia de manto, coroa e cetro para que o povo admirasse e rendesse suas homenagens. Tia Gorda, como ele a chamava, era rainha em uma manifestação folclórica de nossa rica tradição cultural. Era a Rainha Perpétua do Congado.

Tudo que sua tentativa de partilhar com a turma o apreço que tinha por Tia Gorda lhe rendeu foi uma ida à sala da diretoria, o título de garoto-problema e a gozação de parte dos colegas. Apesar da frustração, Tião Rocha — hoje folclorista e educador — ainda se dedica a convencer professores que o folclore é uma ótima matéria-prima para as aulas. Ele é autor premiado de propostas pedagógicas baseadas no saber popular e de um livro que orienta como se servir do folclore em projetos escolares.

Na entrevista a seguir, ele explica por que o folclore é mais "uma alternativa" para uma "educação de qualidade para todos". Para ele, se os professores quiserem formar alunos críticos, devem mostrar que os diversos tipos de conhecimento — científico, erudito e tradicional — se complementam. "Se um menino só conhece um tipo de história, só tem um tipo de informação. Ele não é capaz de desenvolver seu lado crítico, pois não escolhe, não decide", afirma.

Em sua família, as tradições folclóricas são muito presentes. Como o folclore marcou a sua vida?
Para mim, ele tem um sentido muito forte. Eu até escrevi um texto [Uma história e muitas vidas] em que conto a história de uma tia que foi rainha do Congado. Foi a partir daí que começou a minha tentativa de compreender o nosso contexto cultural e de me situar nele. Foi por isso que decidi fazer história, lidar com antropologia, virar folclorista. O fio da meada é se localizar, se auto-entender.

No texto, o senhor fala que não encontrou apoio no ambiente escolar para a busca de suas origens. Como explicar a falta de espaço para a cultura popular na maioria das escolas?
Isso acontece porque a visão da escola não é inclusiva; é seletiva e excludente. Quando não trata a cultura popular e o folclore de forma pejorativa, ela os trata como coisas menores, de menor valor. Essa atitude, que tem sido, de maneira geral, a da intelectualidade, a da academia, reflete-se muito na escola. Ela supervaloriza, por exemplo, o conhecimento dito científico, em detrimento do conhecimento popular, como se o científico fosse melhor ou o único que valesse. Por isso que se fala: "O resto é folclore." Quer dizer, o resto é bobagem. E tem também quem pense que o conhecimento científico é superior. É um modelo de exclusão da cultura popular em favor da erudita; do conhecimento tradicional em favor do científico.

O senhor chegou a escrever um livro para orientar os professores sobre o tema. Qual é a abordagem do livro?
Folclore: roteiro e pesquisa foi um livro que escrevi há muitos anos. Ele já teve centenas de edições e, agora, está disponível na Internet na íntegra (http://www.cpcd.org.br/publ-hm.htm). Ele é pequenininho e muito objetivo. O livro estimula o professor a levar o aluno a procurar a cultura popular primeiro dentro de casa, depois na rua e depois no bairro e a considerar todas essas informações como base para um projeto de educação.

As histórias e o imaginário popular são outra forma de resgatar nossa herança cultural. O senhor acha que nossas lendas e "causos" deveriam ser tratados com a mesma importância dada, por exemplo, aos contos de fadas?
Sem dúvida. É como diz Guimarães Rosa. Para o jagunço Riobaldo, uma religião é pouco, ele quer rezar em todas. "Eu quero beber de todas as águas", diz Guimarães. Quanto mais uma criança tiver oportunidade e acesso às coisas mais variadas, mais ela terá condições de fazer escolhas. É o caso, por exemplo, da música. Como você pode pensar em desenvolver um gosto musical apurado na moçada que só escuta um tipo de música: a que a televisão e o rádio tocam?
Quando a escola reproduz essa música, ela está prestando um desserviço. Deixe o rádio tocar as duplas sertanejas, os Chitõezinhos e Xororós da vida. Essa é a função do rádio. Mas se os alunos tiverem acesso também a Vivaldi e à música da Folia de Reis, vão ser muito mais bem informados. A escola pode fazer isso. Só não faz porque, para ela, é melhor terceirizar os problemas e achar que a televisão e o rádio são o grande problema. É o discurso do fracasso. Para mim, o da incompetência. No caso das histórias infantis, é a mesma coisa. É preciso dar acesso a tudo.

O que o senhor quer dizer com "terceirizar os problemas"?
Há um exercício que eu sempre faço com educadores. Eu pergunto para eles: "De quantas maneiras diferentes você pode jogar a bola em um cesto?" Eles respondem um número. Então, pergunto na seqüência: "De quantas maneiras você pode educar uma criança?" Eles dizem cinqüenta, por exemplo. "Das cinqüenta, quantas vocês já experimentaram?", questiono. A resposta, infelizmente, é que eles não experimentam nem dez dessas alternativas pedagógicas.
Então, antes de dizer que a culpa é da televisão, da sociedade, da fome, desses problemas que são reais, é claro, deve-se experimentar as outras 40 alternativas conhecidas para educar as crianças. Se a escola tentar, ela vai ver que as alternativas não se esgotam, que existe a alternativa 51, 52, 53... Só no dia em que se esgotarem as oportunidades de educar seus alunos, é que a escola pode terceirizar a sua função social e dizer que o problema é do desemprego ou da crise.

Uma alternativa pedagógica que o senhor ajudou a desenvolver é o Sementinha, um projeto que cria espaços de aprendizagem embaixo de árvores. Como é esse projeto?
O Sementinha, na realidade, foi resultado de uma pergunta que nós nos fizemos anos atrás: "É possível fazer educação sem escola, no sentido físico?" Já que a lógica era que você só podia fazer educação se houvesse escola — e como não dependia de nós construí-la —, a outra pergunta era: "É possível fazer uma escola embaixo de um pé de manga?"
A experiência teve êxito absoluto. Já foi avaliada, testada e recomendada internacionalmente como modelo de educação porque se descobriu o óbvio: para fazer educação de qualidade, você só precisa de gente de qualidade. São as pessoas que fazem a educação. O resto é alegoria, é adereço. Prédio, carteira, tudo é complemento, e não a essência. O espaço físico é importante, sim, mas não significa que não se possa fazer boa educação sem ele.

Ele é um projeto mais apropriado às regiões onde as tradições são mais vivas, ao contrário das grandes cidades?
Não é necessariamente um projeto para cidades pequenas, de zona rural. Ele pode ser realizado em qualquer lugar. Hoje, ele existe em várias partes do Brasil e do mundo. Começou em Curvelo/MG, foi para o Vale do São Francisco — e lá virou lei —, está também no Vale do Jequitinhonha, em Vitória/ES — no lixão da cidade —, em Porto Seguro/BA, no interior do Maranhão e em Moçambique, na África. Nós vamos implantá-lo agora em Santo André/SP, na região do ABC. É a Pedagogia da Roda. Tudo é discutido e avaliado em roda. Na roda, giram todos os processos de aprendizagem.

O senhor acaba de mencionar o papel crucial do professor na educação, que é mais importante do que os recursos físicos e tecnológicos da escola. Como os educadores devem agir para não tratar os saberes populares de forma diferente do que tratam a ciência?
A primeira coisa é acreditar que a diferença entre saber popular e ciência é uma mentira. O educador tem que agir com ética e relativizar os conhecimentos. Ou seja, mostrar que tanto o conhecimento científico como o tradicional são importantes. A ciência é tão importante quanto a tradição — elas se completam e, às vezes, se negam, se justapõem e tentam ocupar o mesmo espaço.
Em segundo lugar, é preciso trabalhar com todas as possibilidades, quer dizer, dar o mesmo tempo e a mesma oportunidade de contato dos alunos com os vários tipos de conhecimento. O mesmo valor que a escola atribui hoje à tecnologia e ao computador deveria também atribuir às tradições da comunidade. O que enraíza as pessoas são os valores culturais da sociedade, e não a Internet. Ela é importante, mas não é a única coisa que vale.

O folclore tem um caráter lúdico muito forte. Quem pratica danças tradicionais é até mesmo chamado de brincante. Muitas escolas têm descoberto o valor da brincadeira em seu projeto pedagógico. O senhor acha que essa é uma boa porta de entrada do folclore na sala de aula?
Eu acho o seguinte: o prazer é a melhor forma de levar as pessoas a aprender. É claro que, com brincadeiras, com alegria, aprende-se de forma mais gostosa do que com as maneiras tradicionais. E a escola deveria deixar de ser um lugar carrancudo — um serviço militar obrigatório a partir dos sete anos — e adotar a postura de espaço onde se aprende brincando permanentemente.
Isso tanto a tecnologia quanto a cultura popular podem permitir. O que acontece é que a tradição popular tem uma quantidade muito maior de coisas naturalmente lúdicas, como brincadeiras, jogos e danças. Ela é muito mais lúdica, por exemplo, do que o estudo de física quântica, química orgânica ou trigonometria. Isso não significa que não se pode ensinar a matemática de Pitágoras de uma maneira prazerosa. No entanto, cabe ao professor saber que, se ele usa o folclore na escola só por causa do aspecto lúdico, o folclore vira a brincadeira pela brincadeira. Se for para brincar por brincar, é melhor brincar em casa, e não na escola. Na escola, é preciso brincar muito, mas para aprender. Senão, não vale a pena.

O senhor se dedica ao projeto Bornal de Jogos, que mostra como o conhecimento tradicional pode ajudar a ensinar matemática e ciências, e não só história e português, matérias em que, à primeira vista, é mais fácil inserir elementos da cultura popular. Que atividade do Bornal de Jogos o senhor citaria para mostrar que a cultura popular é eficiente no ensino de todos os conteúdos curriculares?
No Bornal, há uma série de 90 jogos que foram testados, avaliados e sistematizados. Esses jogos são chamados de "tecnologia educacional". Nós demos início à experiência e, em determinado momento, encontramos um garoto de 11 anos que estava na primeira série e era repetente, persistente e renitente. Ele estava insistindo para aprender matemática e não conseguia, não aprendia as quatro operações básicas. Só que ele jogava damas e ganhava de todo mundo!
A nossa dúvida era: "Se joga dama e outros jogos, ele tem noção espacial, mas porque não desenvolve a noção de aritmética?" Pegamos, então, um tabuleiro e, em vez das casinhas, colocamos números de forma aleatória e, na dama e no peão, os sinais de soma, primeiramente, e depois o de subtração e o de multiplicação. Num instante, ele resolveu a vida dele. Ele aprendeu porque só podia comer a peça do outro se fizesse os cálculos.
Depois, nós começamos a utilizar outros jogos, como cinco-marias, amarelinha e pular corda, para trabalhar uma série de novos conceitos de matemática, geografia e, em alguns casos, de cidadania, ética e sexualidade que os alunos precisavam aprender.

Então, a proposta não é simplesmente ensinar as tradições e manifestações folclóricas, mas ligá-las a um conhecimento mais amplo. De que outras formas a escola pode fazer essa ponte entre o local e o universal?
Eu nunca tive a preocupação de ensinar folclore por folclore ou ficar demarcando o que é folclore e o que não é. Acho que essa deve ser uma preocupação de especialistas, de acadêmicos. Quem quiser que faça tese sobre isso. Para nós, interessa saber, por exemplo, como a amarelinha pode ser um fator gerador de auto-estima, como algumas atividades tradicionais podem gerar socialização e aprendizagem, como se pode discutir a inserção dos jovens como cidadãos do mundo partindo do artesanato.

E como se percebe que se é cidadão do mundo partindo do artesanato?
Mostrando que a cerâmica do Vale do Jequitinhonha é tão importante quanto as cerâmicas feitas na Grécia Antiga. Quer dizer, já havia grandes artesãos naquela época porque o que o homem vem fazendo, ao longo da história, é criar formas, e essas formas demarcam uma época. Esse é um jeito de inserir esse cidadão do Vale do Jequitinhonha no mundo contemporâneo. Eu falo de cultura popular o tempo todo para professores sem precisar dizer que estou falando de folclore. A cultura popular é importante para o aprendizado humano, e não apenas de um grupo específico, porque ela foi trazida pelo homem, herdada por ele e tornando-o melhor.

Além de auxiliar no aprendizado de certas matérias e conceitos, que tipo de ensinamento mais amplo o folclore é capaz de transmitir aos alunos?
A nossa responsabilidade é criar oportunidades para que os jovens possam desenvolver o sentido da liberdade. Só é livre quem faz escolhas. Uma pessoa que só escuta um tipo de música não é livre. É um joguete manipulado por interesses. Se um menino só conhece um tipo de história, só tem um tipo de informação. Ele não é capaz de desenvolver seu lado crítico, pois não escolhe, não decide. Ele é levado pela corrente. Eu acho que a cultura popular e o folclore são uma alternativa, ao lado da ciência, da tecnologia e das criações eruditas, de capital e material disponível para a educação de qualidade de todo o mundo. Mas os educadores precisam assumir isso e, se assumirem, as escolas vão ser bem diferentes.

Fonte:http://www.educacional.com.br/entrevistas/entrevista0071.asp

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