Infância Urgente

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

''Só o pobre fica preso no flagrante''

Em livro, jurista diz por que crimes do colarinho branco ficam impunes e liga tráfico à deterioração do sistema penal

Eduardo Kattah
Incomodado com o que considera contradições e falhas do sistema penal brasileiro, o promotor do Juizado Especial de Contagem (MG), Marcelo Cunha de Araújo, de 34 anos, apontou, em linguagem não jurídica, os motivos que levam à impunidade no País, no livro Só É Preso Quem Quer - Impunidade e Ineficiência do Sistema Criminal Brasileiro (Editora Brasport), lançado há pouco.

Como um sistema que não pune cria superpopulação carcerária?

Porque ela é composta por uma população escolhida. Os presos têm o mesmo perfil: jovens de 18 a 25 anos que cometeram algum crime violento ou tráfico de drogas. E só. O direito penal funciona como instrumento de repressão de pessoas que nunca tiveram acesso a nada do Estado. Na minha pesquisa, selecionei um grupo específico, de pessoas que foram pegas por uso de entorpecentes. Vários setores da sociedade usam entorpecentes. Analisei mil processos. Desses, por volta de 92% ganham abaixo de dois salários mínimos. E por volta de 85% das drogas apreendidas correspondem a maconha. Quase todo o resto é crack. Tem um pouco de apreensão de cocaína, mas não tem apreensão de ecstasy, de LSD. Drogas para um público de maior poder aquisitivo.

O sistema continua favorecendo a impunidade?

No Direito existe uma teoria muito forte no Brasil, o "garantismo". Significa que se é a favor da preservação das garantias individuais do cidadão, não em detrimento, mas em primeiro lugar em relação às garantias processuais do Estado. Só que o "garantismo" no Brasil é caricatural. É feito de uma forma que gera impunidade só para uma classe.

Qual deve ser o foco de atuação?

O foco do Direito Penal não é parar de punir estuprador, homicida. Esses crimes violentos precisam ser combatidos, sim. Agora, se não se escolhe um meio específico de Direito Penal para combater crime do colarinho branco você nunca chega numa justiça social. As pessoas que têm o poder de mudar essas normas não têm o mínimo interesse porque serão as primeiras a ser atingidas.

Os juristas também não querem mudanças?

Os juristas e advogados ganham muito dinheiro com isso. Existe todo um discurso não dito para manter as coisas como estão. Os advogados não são antiéticos por usar de todos os meios para manter seus clientes soltos. Tenho amigos que ganham muito para defender causas de repercussão nacional. Essa pessoa vai defender o discurso de mudança? Não.

A impunidade está em grande parte no que o senhor chama de reserva de direito para as pessoas que têm maior poder aquisitivo?

O Supremo (Tribunal Federal) fala que todos os réus têm direito de ficar em liberdade até que os recursos sejam julgados. Essas regras facilitam com que o rico se dê bem. O dispositivo no Código Penal sobre o flagrante não abrange crime do colarinho branco. Então, para começar, só o pobre fica preso no flagrante.

Então o título do livro não deveria ser Só É Preso Quem Não Tem Dinheiro?

Isso surgiu de uma brincadeira. Sempre disse aos alunos: "Só é preso quem quer". Se você não for pego em flagrante, se não deixar seu caso cair na mídia, tiver emprego e residência fixos, nunca vai preso. Pode cometer qualquer crime.

É por isso que o senhor critica a liberdade ao acusado que se apresenta espontaneamente?

Critico a inexistência, no Brasil, da prisão por autoria e materialidade. Você está preso não porque está próximo do momento do crime, porque o juiz mandou. É porque existem sérios indícios de que foi você quem cometeu o crime. O flagrante existe quando o investigado acabou de cometer o crime ou é pego logo após o delito. Se você se apresenta espontaneamente na delegacia, a jurisprudência entende que não há risco de fuga e não é caso de flagrante. É um absurdo. Se a pessoa saiu da situação de flagrante, não vai presa.

A situação não está avançando?

Está piorando. Até a explosão do crack - o tráfico foi um dos grandes movimentos que aumentaram a superpopulação carcerária -, na década de 80, os juízes tinham plenas condições de aplicar um direito penal mais severo. Não existia superpopulação carcerária. Depois houve um sucateamento do processo penal. Soluções alternativas começaram a ser requisitadas dos operadores do direito. A prisão passou a ser algo estritamente necessário.

Quais os crimes mais impunes?

Os do colarinho branco. Em segundo lugar os crimes de trânsito. A pessoa mata três no trânsito e vai prestar serviços à comunidade.

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