Joana D`Arc Fernandes Ferraz
(Doutora em Ciências Sociais. Profª Adjunta da UFF. Membro da Diretoria do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ)
Talvez pareça um exagero e uma desproporção relacionar a forma como os governos estadual, federal e as forças armadas construíram o discurso e a ação militar nas favelas do Rio de Janeiro nos últimos dias com o discurso neofascista.
Com a desculpa de “conter a onda de violência que se arrastou pela cidade” e de “combater o tráfico de drogas”, as forças poderosas, com o apoio da grande mídia, forjaram uma “guerra” contra a população moradora nas favelas, que culminou no Complexo do Alemão.
O resultado desta mega operação não nos pareceu um sucesso. Mesmo as pessoas que defendem ardentemente a necessidade de intervenção da força militar na favela, como uma necessidade de “limpeza” da cidade, emudecem quando algumas questões são colocadas. Em primeiro lugar, o resultado, em termos quantitativos, foi bem abaixo do esperado. Quantos bandidos foram presos nesta mega operação? Como funciona o tráfico de drogas? Qual a contabilidade do tráfico? Encontraram muitas drogas, mas sabemos que para a mega empresa do tráfico o que foi encontrado é muito pouco.
Todos nós sabemos que o tráfico de drogas não é coisa de favelado. Se fosse já teria acabado há muito tempo. Então, quem controla o tráfico? Nenhum nome apareceu. Outra questão intrigante é que as forças policiais e militares, segundo informações que temos, somente atuaram em áreas não controladas pelas milícias. As áreas de controle das milícias foram poupadas.
No entanto, outras questões parecem nos tocar com mais profundidade. A forma como as favelas foram invadidas, a violação de domicílio, o desrespeito com a população local, o medo e a insegurança que foram construídos, a identificação do morador como um bandido. Tudo isso foi divulgado, até mesmo pela grande mídia. Mas as pessoas preferem não ver. Fechar os olhos deve ser mais confortável. As ofensas aos moradores, as denúncias de tortura, os roubos às residências, nada disso também ficou escondido da grande mídia. Até mesmo o estado assumiu publicamente que iria apurar todas as denúncias.
A marca neofascista reside justamente neste ponto. Não se trata mais de atacar as instituições democráticas como o antigo fascismo ditava. Mas é exatamente em nome da democracia, da “limpeza” e da higienização da diferença, do poder do Estado acima dos grupos sociais, da ordem, ainda que baseada no terror, do “mal necessário”, da metáfora bélica, da militarização e, acima de tudo, no apoio irrestrito da população e da grande mídia a esta política é que estamos assistindo a armação do cenário neofascista.
Outra marca neofascista é a clareza em relação à adesão ao capitalismo. Se antes, no fascismo, ainda existia um discurso “nacional socialista”, principalmente para a adesão dos trabalhadores. Hoje, o discurso do favelado empreendedor, dono do seu próprio negócio, determinado, com capacidade de liderança, é largamente divulgado pela maioria das ONGS nas favelas e substitui com muita atualidade e propriedade ilimitada, que somente o capitalismo é capaz de fazer, o antigo discurso que camuflava o apoio ao capitalismo. (Esse renovar-se constante do discurso capitalista é algo que deve ser devidamente estudado.) Aliam-se a este cenário neofascista a bandeira da responsabilidade social, da sustentabilidade local e o discurso da proteção ao meio ambiente.
O pano de fundo desta articulação neofascista é a parceria público-privado. Até mesmo a proteção à vida foi terceirizada. O Programa de Proteção às Crianças e aos Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) foi terceirizado para ONGs em todos os lugares do país onde este programa existe. Da mesma forma, a privatização dos espaços públicos tomou os campos de futebol das favelas. Hoje, para se jogar uma bolinha em algumas favelas é preciso pagar o aluguel do campo.
Assim, o principal argumento fascista, cuja força discursiva é assombrosa, “a verdade é tudo aquilo que o mais forte consegue impor”, paira sobre todos nós. A grande nação, que será palco de grandes eventos esportivos mundo, trará para as nossas arquibancadas os Jogos Mundiais Militares, em 2011; a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016. A grande nação, cuja força econômica se faz presente, de forma semi-imperialista, em várias partes do mundo, em especial na América Latina, através da Petrobrás, de outras empresas e do carisma de lideranças como o Lula, precisa explicar para o mundo como ainda mantém um número grande de analfabetos. Precisa explicar para o mundo a indigência de grande parcela da população. Precisa explicar para o mundo por que ainda não conseguiu resolver problemas básicos como o déficit de habitação, a reforma agrária entre outros.
Não será no exercício da violência sobre os pobres que todos esses males serão resolvidos. Como não foi, no exercício da violência sobre os judeus... Como também não foi no exercício da violência sobre os que ousaram lutar pela reforma agrária, pela reforma educacional, pela reforma fiscal e contra a ditadura que os males de nossa nação foram resolvidos. Colocar a culpa nos grupos sociais mais fracos, encontrar um bode expiatório, construir um inimigo interno todas essas formas de opressão já conhecemos e dispensamos.
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