Sou historiador, professor universitário e pesquisador do grupo LEI (Laboratório de Estudos sobre a Intolerância) da Universidade de São Paulo. O meu objeto de pesquisa é a Ditadura Militar (1964-1985) e, particularmente, o estudo sobre as repercussões sociais da morte do jornalista Wladimir Herzog em 1975. Assim publiquei em 2006, pela Editora Barcarola, o primeiro estudo exclusivo de História sobre este assunto: "O ocaso da Ditadura, o Caso Herzog".
Assim tenho dado palestras, participado de simpósios sobre este tema. E o que mais me chama a atenção, além dos inúmeros aspectos da importância sobre esta tragédia (o momento da virada democrática contra a ditadura, o discurso unificador dos Direitos Humanos, a formação de redes sociais de resistência, a revalorização da idéia de cidadania, etc.) é a constatação da desinformação nos meus jovens alunos sobre este fato histórico.
Sei que estas ausências não são frutos do desprezo do conhecimento sobre o regime autoritário. Ao contrário, quando o tema é discutido um "rastilho de pólvora" é aceso na consciência de todos e a exposição do assunto prolonga-se por várias horas, além das permitidas pelo regulamento. Isto é muito bom. Porém, existe uma clara explicação para esta inicial desinformação. É esta: existe um processo de ocultamento sobre a ditadura militar.
Exemplos do silencio e da impunidade são o não desvendamento dos "desaparecimentos" de prisioneiros políticos na década de 1970 (até hoje não explicados pelo Estado, como no caso da guerrilha do Araguaia), o incêndio dos arquivos do DOPS/SP nos anos 80; a Lei da Anistia que ainda não inquiriu os agentes do Estado pelos crimes praticados. E até os vários decretos federais ampliando os prazos de segredo dos documentos públicos (reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto), permitindo que necessárias informações sejam mantidas em sigilo "de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado".
E por que isto está acontecendo? Resposta: existe uma "industria" do esquecimento. Ou melhor: está se apagando o passado para que não se revelem continuadas estruturas de poder. Não se esclarecem as fontes de financiamento que apoiaram os órgãos de segurança responsáveis pela tortura. Não se esclarecem continuidades de repressões feitas em nome da lei, no passado e no presente, sobre pessoas tidas como perigosas: pretos, pobres, baderneiros do campo. Não se esclarecem que inúmeras empresas de comunicação, com exceção de algumas (é o caso do Estadão), serviam de "porta-vozes" dos chamados porões da ditadura, maquiando notícias. Não se esclarecem as redes sociais de resistência democráticas --- as de periferia organizadas pela Igreja Católica progressista e as de classe média intelectualizada organizadas em torno das idéias de "frente ampla" contra o regime --- que serviram de aríete para mobilizações populares. As explic ações, infelizmente predominantes, para os conflitos do regime são de uma luta apenas dentro do estado autoritário: de um lado os "mocinhos" da abertura versus os "bandidos" da linha dura. Mais uma vez é como se a sociedade civil não tivesse participação política. Será que apenas os dirigentes fazem a História?
É dentro deste contexto que recebo a noticia que se pretende arquivar a investigação criminal das mortes do jornalista Vladimir Herzog e outros. E qual foi a alegação oficial? A decisão da juíza substituta da Primeira Vara da Justiça Federal, Paula Mantovani Avelino, é que os crimes prescreveram. Mas diante desta "pá de cal" no processo, levanto algumas indagações como cidadão e historiador: por que, depois de mais de 30 anos, ainda não foi criminalmente elucidado este caso? Explicando de outra forma: o meu irmão, Dr. Márcio José de Moraes, foi o juiz que culpou o Estado pela morte do jornalista em dependências do DOI-CODI em 1978, Diga-se de passagem, antes do término do AI-5, com todas as implicações de pressões que poderia sofrer. Na sua sentença responsabiliza o Estado pelo assassinato e pedia a instauração de um processo criminal que inferisse os culpados diretos pela tragédia. Pois bem, o que questiono, diante de um fa to tão importante para a História do Brasil, é o por quê desta morosidade?
Outra pergunta: será mesmo que este crime prescreveu? Ou melhor, crimes de tortura de tortura prescrevem-se? Se assim for, não entendo a razão de se colocar nas barras da justiça os nazistas que tanto mal fizeram no passado. Não entendo a prisão dos generais argentinos e chilenos por seus lamentáveis atos. Não entendo também o sentido do nosso país ter assinado acordos internacionais e que hoje fazem parte do ordenamento jurídico nacional onde a regra é clara: tortura é um ato abominável e não pode ficar impune.
Sei que muitos tentam defender esta ilegitimidade escorando-se na lei da Anistia, editada em 1979, feita em pleno regime ditorial. Colocam que é esta lei que dá substância a estas sentenças do esquecimento. Mas como estudioso da época em questão, afirmo: quando ela foi feita, antes do retorno da democracia, tentou-se --- volto a repetir o termo: tentou-se --- beneficiar os próprios agentes do Estado. Uma auto-anistia. Ora, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a ONU têm vários precedentes de desconsideração de atos desta espécie de auto-anistia. E por quê? O óbvio: é inadmissível e fere o senso de justiça que o algoz possa assegurar a sua impunidade.
Exemplo deste correto entendimento foi que esta mesma auto-anistia foi tentada no Chile que relutou em punir os crimes do governo Pinochet. Conclusão: acabou condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (2006).
Apurar estes crimes não é, e nem pode ser, um ato revanchista. Isto seria estúpido, porque importar-se-ia a mesma mentalidade de ódio contra os "inimigos" da ditadura militar. Mas sim colaborar para a afirmação da justiça social e a supressão de mazelas nacionais como a corrupção e a tortura policial praticada contra os não cidadãos. Reafirmo as palavras do Dr. Márcio, contidas em meu livro:
"Mas o que mais me chama a atenção no Caso Herzog, além do aspecto político de luta contra as ditaduras, é o que consigo ver neste tema. É fundamentalmente a questão carcerária que atualmente não se fala, que pouco repercute, quando nós temos milhares e milhares de Herzogs nas nossas penitenciárias. O preso, independentemente do crime que ele tenha cometido, é torturado diariamente. As torturas que o Herzog sofreu, de certa forma, continuam nos Herzogs anônimos. O que é uma cela mal-cheirosa em que cabem quatro e onde estão trinta ou quarenta presos? É tortura da mais repugnante. É transformar ser humano em animal. Eu vejo que o Caso Herzog teve grande influência nacional...onde as estruturas da ditadura foram desamarradas ali, mas o cerne do submundo prisional - que, naquela época, e ra no DOI-CODI e hoje é na delegacia da esquina - continua, porque a sociedade não quer ver isto.... E isto vem desde antes do Caso Herzog e continuará se a consciência coletiva não for despertada, que esta violência cometida contra os presos também cai sobre nós, ainda mais violenta".
Concluindo: justiça e busca histórica não são possíveis de ser enterradas. Caso contrário, o ser humano não existiria. A Memória é a melhor forma de se lutar contra o poder.
Prof. Doutor Mário Sérgio de Moraes
Pesquisador grupo LEI - USP Faculdade de Comunicações FAAP
Um comentário:
Grande Prof. Mário Sérgio!!! Foi o melhor professor que eu tive na minha vida... Ele não deve saber, mas foi a partir de suas aulas de história que eu passei a tomar gosto pela leitura, pelos estudos, enfim, pelo conhecimento. Saudades... Sua eterna aluna Geórgia Sales (Colégio São Marcos - Mogi das Cruzes - década de 80).
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