Infância Urgente

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Agronegócio escraviza milhares de trabalhadores no campo



As culturas da cana, soja e do algodão, a pecuária, as carvoarias e o desmatamento da Floresta Amazônica são as atividades preferidas dos exploradores do trabalho escravo.

Por Lúcia Rodrigues

A impressão que se tem é a de que se está entrando no túnel do tempo e retornando alguns séculos no calendário gregoriano. Aos olhos dos mais desavisados, pode parecer estranho e até mesmo irreal que ainda hoje existam pessoas sendo submetidas à escravidão em nosso país. Mas infelizmente essa gravíssima violação aos direitos humanos é uma dura realidade no Brasil do século 21.

Milhares de pessoas ainda são submetidas a trabalho forçado e a condições degradantes no campo e na cidade. Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2005, estimava em 25 mil o número de trabalhadores mantidos em condições análogas a de escravos no
país. Destes, 80% atuavam na agricultura e 17%, na pecuária.

Os números do organismo internacional, no entanto, parecem estar subdimensionados se levarmos em conta o total de trabalhadores libertados
pelos agentes do governo federal na gestão do presidente Lula. De 2003 a maio de 2010, foram retirados da condição de escravos 31.297
pessoas, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego.

A prática criminosa não está restrita apenas ao Brasil e se espalha pelos continentes. A OIT detectou no mesmo ano, que mais de 12 milhões de trabalhadores eram vítimas da sanha de latifundiários e empresários inescrupulosos pelo mundo.

O fenômeno da globalização nos anos 90 foi decisivo para abrir as fronteiras dos países ao capitalismo em escala mundial. As transações comerciais e financeiras disseminaram ainda mais a busca pelo lucro rápido e exponencial. A maneira encontrada por esses patrões, para reduzir o preço final de seus produtos, se deu pela drástica redução do custo-trabalho.

Os escravagistas do século 21 não prendem mais seus trabalhadores ao tronco e nem infligem chibatadas. A escravidão contemporânea tem suas particularidades, mas nem por isso esses patrões deixam de ser considerados escravocratas. O artigo 149 do Código Penal brasileiro
é absolutamente claro na definição do que seja praticar escravidão nos dias de hoje.

“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”,
afirma o texto penal.

Apesar de soar extemporânea, a prática escravista está arraigada no cotidiano brasileiro mais do que se pode imaginar. “É uma mentalidade da
elite econômica e política do país”, afirma o senador José Nery (PSOL-PA), que preside a Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho
Escravo no Brasil.

Segundo o senador, a bancada ruralista no Congresso Nacional impede há 15 anos a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para coibir a prática criminosa. Neste momento, tramita na Câmara dos Deputados a PEC 438 em defesa da erradicação do trabalho escravo no país. A PEC 438 já foi aprovada em primeira e segunda votação no Senado e em primeira, na Câmara, e aguarda a ida ao plenário para a segunda votação. O dispositivo é necessário para que a matéria possa se transformar em lei.

O sucesso de sua aprovação ainda este ano está ameaçado. “Apresentamos 280 mil assinaturas ao presidente da Câmara dos Deputados (Michel Temer) e a todos os lideres partidários pedindo a urgência na votação da PEC. Mas as lideranças do governo estão criando várias dificuldades. Dizem que não querem discutir e votar matérias polêmicas no período pré-eleitoral. Ora é nossa obrigação aprovar toda e qualquer matéria que diga respeito à dignidade e ao bem-estar das pessoas. Não concordo com esse tipo de atitude que impede a legislação de avançar no combate ao trabalho escravo no Brasil”, ressalta Nery.

O parlamentar quer pelo menos incluir a matéria na pauta de votação da Câmara logo após o término do segundo turno das eleições. “Estamos
tentando arrancar do presidente da Câmara e dos líderes partidários esse compromisso.”

O secretário de políticas sociais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Expedito Solaney, é menos otimista que Nery. O sindicalista
considera que a PEC só será votada na próxima legislatura. “Entre por na pauta e não aprovar é melhor jogar para a frente. É melhor recuar taticamente. O Congresso é muito conservador, a maioria é ruralista”, afirma.

Pelo texto da PEC 438, as propriedades rurais e urbanas que forem flagradas com trabalhadores escravos serão expropriadas para efeito
de reforma agrária no campo e destinadas a programas sociais de moradia popular em áreas urbanas.

O arco de alianças eleitoral e da base de sustentação do governo, além de interesses econômicos dos parlamentares, impede que a matéria avance com celeridade em Brasília. Apesar de ninguém defender publicamente o trabalho escravo, na prática ele é tolerado.

O ex-presidente da Câmara, deputado Inocêncio de Oliveira (PR-PE), que teve propriedades flagradas por auditores fiscais do trabalho com a prática da escravidão, não sofreu nenhum tipo de punição até hoje. Oliveira chegou a ocupar algumas vezes o cargo de presidente da República durante o mandato de Itamar Franco.

Mais recentemente o senador João Ribeiro (PR-TO) também foi acusado de se utilizar de trabalho escravo dentro de sua propriedade. O Ministério do Trabalho e Emprego não divulga mais detalhes sobre o andamento do caso, apenas afirma que informações sobre pessoas físicas e jurídicas só podem ser divulgadas após o término do processo administrativo.

O Ministério também mantém uma lista com o nome de quem usa o trabalho escravo no País. A lista suja, como é conhecida a relação de escravagistas, é atualizada semestralmente e pode ser consultada em http://www.mte.gov.br/trab_escravo/lista_suja.pdf

CPT X latifúndio
Para o bispo emérito de Goiás e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás Balduino, o trabalho escravo ainda não foi erradicado do Brasil porque mexe com os interesses dos aliados políticos do governo Lula. O mesmo argumento é utilizado para explicar a não realização da reforma agrária no país.

“Por que não há reforma agrária? Porque mexe na terra dos aliados do governo. É uma lógica fácil de entender. O trabalho escravo cresce com o agronegócio, que é a menina dos olhos da política governamental. Apesar de ter apresentado um plano de erradicação para o trabalho escravo, o governo continua elogiando os usineiros, chamando-os de heróis. A concentração do capital em poucas mãos com o apoio governamental está criando uma desigualdade social brutal. O Brasil é o segundo país do mundo em concentração de terra, em latifúndio. Só perde para o Paraguai”, critica o religioso.

Dom Tomás cita o caso da Cosan, holding do setor sucroalcooleiro, que utiliza trabalho escravo em suas usinas, para demonstrar a falta de compromisso do agronegócio com a dignidade humana.

A Cosan é a maior empresa produtora de açúcar e álcool do mundo. É proprietária das marcas do açúcar União e Da Barra. Em dezembro de
2008, a companhia também passou a controlar a operação de ativos da distribuição de combustíveis da Esso. E assumiu o controle da produção e distribuição dos lubrificantes Mobil. Além dos setores de alimento e combustíveis, a Cosan também atua na área de produção de energia elétrica a partir do bagaço da cana de açúcar.

O exemplo de pujança que a empresa tenta demonstrar mascara uma realidade nada agradável. A Cosan engrossa a lista suja de empresas que utilizam trabalho escravo em suas unidades, divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A companhia ingressou no ranking escravista
no final do ano passado. Seus advogados se apressaram e obtiveram liminar na Justiça para retirá-la da lista suja. O Ministério tenta agora cassar a liminar expedida, para inseri-la novamente na lista dos escravagistas.

Ícone do desrespeito às normas mais elementares da dignidade humana, a Cosan é responsável, em parceria com a ExxonMobil, pelo patrocínio do principal prêmio do jornalismo brasileiro: o Prêmio Esso.

A empresa que pratica escravidão em suas propriedades também tem em seu Conselho de Administração um ex-ministro da Fazenda. Maílson da Nóbrega integra seu conselho administrativo desde dezembro de 2007.

Repressão
Os auditores fiscais do trabalho sentem na pele o peso da repressão dos latifundiários escravistas enfurecidos com aqueles que atravessam seus caminhos. A presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Rosangela Silva Rassy, relembra a chacina de Unaí, município mineiro, onde quatro funcionários do Ministério Trabalho foram assassinados, a mando do prefeito da cidade, Antério Mânica (PSDB), quando inspecionavam terras de sua propriedade, em 28 de janeiro de 2004.

Até o momento ninguém foi julgado. “É um negócio difícil de a gente entender. Ninguém foi punido. Foram nove indiciados, mas só dois estão
presos (os acusados de serem os executores). Os mandantes foram os primeiros a serem soltos, dois empresários: o prefeito e seu irmão. Com
certeza, se valeu do cargo. Inclusive o processo dele corre apartado dos demais, porque se beneficia da imunidade parlamentar”, revela Rosangela.

Logo após os crimes de Unaí, as fiscalizações foram suspensas naquela área por medida de segurança. “Ninguém ia lá. Isso é tudo o que o mau
empresário quer. Há uma certeza de impunidade”, enfatiza a sindicalista.

Depois desses assassinatos, o Congresso aprovou o porte de arma para os auditores fiscais do trabalho. Mas para que a lei entre em vigor, precisa ser regulamentada pelo Poder Executivo. “É uma lei inócua, porque até hoje não foi regulamentada.”

Para o delegado da Polícia Federal e chefe da Divisão de Direitos Humanos do órgão, Delano Cerqueira Bunn, os assassinatos praticados em Unaí demonstram que o crime organizado está enraizado no trabalho escravo.

“Estamos mapeando as rotas dessas organizações criminosas que praticam crimes financeiros, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha. A realidade do trabalho escravo está presente em todas as regiões do país, tanto urbano quanto rural. É rentável para o grande empresário e inversamente proporcional a imagem do Brasil no cenário internacional.”

O delegado Delano destaca a força política exercida pelos fazendeiros nessas regiões. “São pessoas influentes que têm poder de mando na política local e nas estruturas de segurança pública.”

Rosangela também critica o número reduzido de auditores do trabalho para a fiscalização de todo o país: 2.899. O sindicato da categoria defende a realização de concursos públicos para resolver o problema. “Hoje existem 750 cargos vagos, porque as pessoas morrem, se aposentam. No mínimo o concurso deveria preencher essas vagas.” O Estado do Pará, que é recordista em trabalho escravo, possui apenas 105 auditores fiscais.

Para o secretário executivo da Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, José Guerra, a pobreza faz com que o trabalhador aceite qualquer coisa e se torne presa fácil de aliciadores.  Esses trabalhadores derrubam matas para fazer pasto, para fazer carvão, cortam de cana, lidam com o gado, arrancam tocos, fazem o trabalho sem qualificação”, diz.

Ele considera que o combate a essa prática depende de “se acabar com a extrema pobreza, qualificar as pessoas, dar educação e reforçar a punição aos empresários – para que não acreditem que vale a pena explorar o trabalho escravo.”


Capital paulista abriga escravidão

Prática criminosa cresce no coração do capitalismo com utilização de mão de obra sulamericana na indústria de confecção.

Se engana quem pensa que o trabalho escravo é uma característica apenas dos rincões mais afastados das áreas urbanas. Apesar de um maior número de trabalhadores escravizados se encontrarem na zona rural, a prática criminosa se propaga também na principal cidade do país.

A indústria da confecção desponta como a principal área de absorção da mão de obra escrava na cidade. A Associação Brasileira da Indústria
Têxtil calcula que a demanda por roupa cresce 3% ao ano. Mas assim como no campo, não há estatísticas oficiais que projetem com segurança o número de pessoas nessas condições, embora se saiba que não são poucas.

A quase totalidade desses trabalhadores vem de regiões empobrecidas da Bolívia e do Paraguai, castigadas no passado recente por décadas de ditadura feroz. “Todos os dias chegam ao Brasil de três a cinco ônibus lotados de pessoas para trabalharem nessas oficinas”, afirma a Defensora
Pública Federal, Daniela Muscari Scacchetti.

A precariedade das condições de vida em seus países de origem e a falta de instrução escolar as torna presas fáceis nas mãos de capitalistas escravagistas. Apesar de os atravessadores serem as figuras mais visíveis aos olhos do trabalhador são os grandes magazines os responsáveis pela
prática criminosa.

A rede de lojas Marisa, por exemplo, já levou 49 autos de infração dos auditores fiscais do trabalho e foi autuada em R$ 600 mil. “Mas a gente acredita que a imensa maioria da produção têxtil paulista, o que costuma ser comercializado por C&A, Renner, Riachuelo, Pernambucanas, griffes como a Collins, é resultado de mão de obra escrava de trabalhadores sulamericanos”, conta o chefe da Seção da Fiscalização do Trabalho da Superintendência Regional de São Paulo, Renato Bignami.

Além de jornadas extenuantes de trabalho, precarização das condições de trabalho e do cerceamento à liberdade, com ameaças a vida do trabalhador e de seus familiares no país de origem, o valor pago ao trabalhador é irrisório. Para fazer uma camiseta, recebe em torno de R$ 0,40 a R$ 0,50. Um casaco mais elaborado que leva até três horas para ficar pronto pode render no máximo R$ 1,50. A mesma peça é vendida na loja de departamento por R$ 300.

A expropriação da mais valia do trabalhador é avassaladora. Quando flagradas praticando a escravização, essas empresas alegam que não têm
controle sobre o fluxo de produção. Afirmam que o trabalho é terceirizado e que desconhecem as condições em que ocorre. “Nossa tese é de que no mínimo (a empresa) é solidária, quando não diretamente responsável. Mas essa é uma discussão jurídica quase eterna e nova. A legislação não é
absolutamente clara, nos casos de terceirização e subcontratação a lei é quase ausente”, enfatiza Renato.

A precariedade das instalações de trabalho dessas oficinas remonta ao início do século passado. Há ambientes improvisados onde funciona a oficina e existe o espaço da cama. O risco de acidentes é iminente. As condições de segurança e saúde são péssimas. As oficinas de costura
têm o risco adicional de sofrer um incêndio, por causa de muita fiação exposta e pouca ventilação. Descumprem completamente as normas
do Ministério do Trabalho. O mais recente incêndio ocorreu, em fevereiro deste ano, em Bangladesh. Os 21 trabalhadores mortos produziam para a sueca H&M.

As crianças também sofrem muito nessas condições de precariedade total. Geralmente ficam presas dentro de quartos sem lazer e educação, enquanto os pais trabalham nas máquinas. Quando conseguem escapar, se arriscam por entre as polias das máquinas. Se fazem alguma travessura são punidas muitas vezes pelo dono da oficina.

“No caso das lojas Marisa tinha uma mãe com um bebê no colo costurando e dando de mamar ao mesmo tempo. Outro caso envolvendo o magazine era o de uma menininha com cabelo comprido perto da polia (da máquina) que poderia puxá-lo (causando um grave acidente)”, relata o chefe da fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho de São Paulo.

A denúncia que resultou na autuação da Marisa partiu do Sindicato das Costureiras. A fiscalização foi até ao local e encontrou a produção
destinada para a loja de departamentos com as etiquetas. “A sociedade precisa saber disso”, destaca a defensora Daniela ao se referir a publicização dos nomes das empresas que se valem do trabalho escravo.

Torneira fechada
Para o coordenador da Repórter Brasil, ONG de defesa dos direitos humanos, Leonardo Sakamoto, uma forma eficaz de combate ao trabalho escravo é informar o consumidor sobre a origem do produto. “O governo tem de garantir a rastreabilidade do produto. Sem a rastreabilidade da cadeia produtiva a campanha é útil, mas pouco eficaz”, diz.

A lista suja do Ministério do Trabalho com o nome das empresas envolvidas em trabalho escravo é hoje uma das principais medidas de
combate à prática, porque traz desconforto e preocupação aos maus patrões. Eles perdem financiamento e contratos.

Os cerca de 200 signatários do pacto pela erradicação do trabalho escravo no país, assinado em 2005, cortam a compra dos produtos dessas empresas escravistas.

Exemplo disso foi a atitude dos hipermercados ao cancelaram a compra de açúcar União e Da Barra, da Cosan, no início do ano porque a empresa utiliza trabalho escravo em suas plantas. Leonardo destaca que desde 2004 os bancos públicos federais não financiam empresas que usam trabalho escravo.

Mas nem todas as empresas estão dispostas a aderir ao pacto da civilidade. “A Teka, Karsten, Hering, Marisol, que têm trabalho escravo em sua cadeia produtiva, não assinaram (o documento).” A Gerdau e todas as montadoras também não assinaram o pacto. “Há trabalho escravo na cadeia do aço”, enfatiza o coordenador da Repórter Brasil.

O chefe da Seção de Fiscalização do Trabalho destaca que na área de construção civil também vem sendo detectada a presença de trabalhadores
em regime análogo ao escravo. “Já ouvi colegas comentando que empreiteiras que estavam trabalhando no PAC tinham trabalho escravo.”

A sociedade também precisa fazer a sua parte para eliminar essa chaga. Parcela de responsabilidade pela perpetuação dessa prática também pode
ser debitada na conta dos consumidores. Muitas vezes a própria demanda da população acaba por conduzir a esse tipo de situação. Renato explica que a moda exibida nas novelas acaba pressionando por uma produção rápida e barata.

“Sai na novela uma roupa indiana, no dia seguinte a consumidora ou o consumidor quer uma, igual. A demanda por esse tipo de roupa faz com que o empresário corra para produzir o mais rápido possível. E produção rápida só é conseguida com precarização da mão de obra. Não tem outro modelo por enquanto”, conclui.

Lúcia Rodrigues é jornalista

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