Infância Urgente

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

NEM TODOS OS ADOLESCENTES SÃO IGUAIS PERANTE A LEI



“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade... Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante...”.

É assim que reza o Art. 5º da Constituição Federal de 1988. Mas não é isso que acontece no Estado do Espírito Santo, sobretudo quando se trata dos adolescentes autores de atos infracionais privados de liberdade. O tratamento é diferenciado. Por um desígnio misterioso do destino que ninguém consegue desvendar, a maioria é condenada ao “inferno” e uma minoria recebe um “tratamento especial”. 

A porta de entrada para o “inferno” é a Delegacia do Adolescente em Conflito com a Lei  (DEACLE) em Maruipe onde, num espaço com capacidade para 60 pessoas, amontoam-se mais de cem adolescentes. Estes ocupam celas insalubres, fétidas, sem ventilação e iluminação que, durante a noite, são invadidas por ratos. Atividades pedagógicas nem pensar. Não há espaço nem pessoal para isso. Tudo aquilo que de bom acontece é pela boa vontade dos funcionários que se desdobram para humanizar o ambiente que é insalubre também para eles. Nenhum sindicato que preze pelas condições de trabalho de seus associados deveria permitir que se trabalhasse naquelas condições.  As instalações são tão precárias que o próprio Ministério Público “saiu fora”. Está atendendo no centro de Vitória. Até ninho de ratos foi encontrado no computador na sala da Promotoria. O Centro Integrado para o Atendimento Socioeducativo desintegrou-se e com ele rasgou-se a Constituição Federal. Para quem é do ramo, tudo isso não é novidade. O problema arrasta-se há anos. Há um projeto para um novo CIASE, mas ainda não saiu do papel. O Art. 5º da Constituição Federal... o rato comeu.

Se a carceragem da DEACLE é a antecâmara do Inferno, a UNIS de Cariacica é o próprio inferno. É verdade que parte da “masmorra da idade média” foi derrubada e as alas A e B foram reformadas, mas as orientações do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducatico (SINASE) passaram de longe. Apesar da maquiagem das alas A e B que parece ter custado um milhão de reais, a cara daquelas unidades é de “calabouço”. A impressão que o prédio passa é de “empodrecimento”. É difícil acreditar no valor da vida num ambiente que só inspira deterioração.

Os Despertares 1, 2 e 3, construídos recentemente sobre os escombros da antiga unidade, estão já sucateados. Não é pela incompetência de quem trabalha aí. É fácil falar. Há muita gente boa que dá o sangue para aquilo dar certo. É pela superlotação; pelas rivalidades entre as gangues; pela teimosia da Presidência do IASES que não assumiu a decisão da penúltima Conferência Estadual, de caráter deliberativo, que estabelecia um prazo de um ano para a completa demolição daquela unidade; por ter continuado com a estrutura de um “complexo penitenciário” com 400 adolescentes no lugar de ter optado por pequenas unidades descentralizadas com no máximo 60 adolescentes como manda o SINASE; pela mentalidade menorista que manda prender e segurar na “cadeia” mesmo sabendo que as condições de internação são ilegais; por misturar adolescentes de compleição física, idade e ato infracional diferentes por falta de espaço; por ter que misturar adolescentes de 12 e 13 anos com jovens de mais de 18 anos que provêem do sistema penitenciário para o cumprimento de pendências da época da adolescência...  Por causa de todos estes desafios fica até difícil usufruir na sua totalidade do espaço socioeducativo recentemente inaugurado para a execução de atividades pedagógicas. 

Tudo isso estamos careca de saber. Inclusive é objeto de denúncias internacionais. Quem quiser se dar conta é só pedir para entrar. É interessante reparar que a imprensa pode entrar nas unidades “modelo”. Nestas o uso da máquina fotográfica está amplamente franqueado. Mas de fotografar na UNIS ou em Maruipe nem pensar. Nem o Conselho Estadual tem este direito. A ordem é impedir que se mostre coisa ruim. É a lei do marketing. O jeito é convencer, através de imagens devidamente escolhidas, que tudo funciona  a mil maravilhas. Mostra-se o adolescente recebendo certificado num curso realizado na unidade, mas não se diz que o mesmo não tem lugar na UNIS  e vive o tempo todo perambulando pelo pátio para não ser assassinado pelos colegas. Na terça feira passada, dia 16 de novembro, o clima era de barril de pólvora. Desafio qualquer um a conversar com os funcionários e os adolescentes para ver o que está acontecendo de verdade.

O pior de tudo isso é constatar que, enquanto um grupo de coitados de funcionários se matam para segurar a barra no “complexo penitenciário da UNIS de Cariacica” e centenas de adolescentes permanecem amontoados em estruturas insalubres, o próprio IASES (o Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo), responsável pela UNIS, garante, através de parceria com Organizações Sociais, uma estrutura e um tratamento diferenciados somente a 80 adolescentes. Estas diferenças de tratamento já duram há dois anos. É verdade que com as novas unidades de Linhares e Cachoeiro há a esperança que um tratamento melhor possa ser estendido a muitos outros adolescentes, mas a unidade de Linhares, apesar de ter sido inaugurada no dia 08 de junho deste ano, continua ainda vazia mesmo sabendo que há centenas de adolescentes vivendo em condições  desumanas. 

Porque estas diferenças? Não representam uma quebra do princípio da isonomia legal?  Porque o IASES financia uma unidade que garante aos adolescentes o direito de almoçar a mesa e não faz a mesma coisa em suas unidades? Porque o IASES financia uma unidade para que haja terapias alternativas como acupuntura e não oferece este mesmo serviço em suas unidades? Porque o IASES apresenta como unidade modelo uma que tem 60 vagas e continua construindo unidades com 150 vagas (90 para a UNIS e 60 para  a UNIP)? Porque o IASES financia estruturas com celas individuais e ela continua construindo unidades com celas com quatro vagas? Porque o IASES financia uma unidade com amplos espaços, áreas verdes e  jardins e concentra 16 blocos (A, B e C; Despertar 1, 2 e 3; Ressignificar; UFI; UNIP 1 com quatro módulos  e UNIP 2 com quatro módulos) e mais de 400 adolescentes no mesmo espaço em  Cariacica? Porque alguns adolescentes na fase final da medida de internação podem morar numa casa de alto padrão enquanto os da UNIS apodrecem até o último dia nas celas da UNIS? É verdade que um adolescente atendido por uma Organização Social custa mais daquele atendido diretamente pelo IASES? Porque os juízes  e promotores não se dão conta destas diferenças de tratamento? Pode uma mãe exigir na justiça o direito pra o filho ser transferido para a unidade modelo? Quando a política executada em parceria com as Organizações Sociais vai se tornar universal? É fácil fazer comparações e cobrar dos funcionários da UNIS que dêem conta do serviço, mas porque o IASES não garante a eles as mesmas condições de trabalho dos funcionários da O.S.? Porque a O.S. trabalha com um grupo máximo de 60 adolescentes na unidade de internação e os funcionários da UNIS devem lidar com centenas de adolescentes ao mesmo tempo?  Porque a O.S. pode escolher os adolescentes e a UNIS é obrigada a acolher todo mundo? Pode uma O.S. determinar por própria conta quem vai ser seu público alvo? Onde fica neste caso a função do poder judiciário? É verdade que a O.S. pode devolver para a UNIS os adolescentes que não se enquadram em sua proposta? Se isso for verdade quem determina  a transferência? Qual é a oportunidade oferecida aos funcionários da UNIS em caso de adolescentes que não se enquadram na proposta de trabalho? Para onde eles podem mandá-los? Muito se fala em resultados, há um estudo que efetivamente demonstre o sucesso destas parcerias? Na UNIS quando há fugas ou outras irregularidades são abertas sindicâncias. O que acontece nas O.S. nestes casos? Como acontece a fiscalização de eventuais irregularidades como aquelas relatadas pelos adolescentes a representantes da Justiça Global e da Conectas durante a última visita? 

Estas são só algumas das perguntas que me incomodam e que encaminho a Organização dos Estados Americanos para que sejam anexadas à ação contra o Estado brasileiro sobre as condições em que são mantidos os adolescentes privados de liberdade por considerar esta diferença de tratamento uma violação do Art. 5º da Constituição Federal.  Até conseguir a resposta aos meus questionamentos, renovo a minha opção pelos mais pobres. Por isso permanecerei ao lado dos adolescentes da UNIS até que o último tenha saído daí e conseguido um espaço adequado para sua recuperação e seu desenvolvimento integral. Aproveito da oportunidade para manifestar apóio aos funcionários da UNIS que, apesar de tudo, decidiram permanecer e se sacrificar para o sucesso daquele trabalho. É pena que muitos, mesmo tendo autoridade para exigir mudanças e o dever de garantir a universalização do acesso aos direitos, optaram por abandonar os adolescentes da UNIS naquelas condições.  

Padre Xavier Paolillo
Pastoral do Menor Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo
.


Nenhum comentário: