Infância Urgente

sábado, 1 de janeiro de 2011

Violações levaram governo à ONU e macularam para sempre o nome de Hartung na história


José Rabelo



Um dos acontecimentos que mais marcaram o governo Hartung nesses oito anos foram, sem dúvida, as denúncias de violações de direitos nos presídios capixabas que saíram das divisas capixabas, romperam as fronteiras do País, cruzaram o Atlântico e foram parar em Genebra, na ONU (Organização das Nações Unidas).
Hartung foi surpreendido pelas denúncias. O poderoso governante não esperava que as “inofensivas” entidades de direitos humanos capixabas teriam força para levar os casos de violações de direitos nos presídios e nas unidades de internação de adolescentes às cortes internacionais. Prepotente, o governador só percebeu o tamanho da avaria quando o assunto começou a ocupar as primeiras páginas dos principais jornais do País e a repercutir até na imprensa internacional.
As manchetes dos jornais de 15 de março de 2010, uma segunda-feira, anunciavam que as masmorras de Hartung começariam a ser abertas - referindo à reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU que iria tratar das denúncias sobre violações de direitos nos presídios capixabas. O mundo estava prestes a descobrir por que o governo do Espírito Santo, em pleno século XXI, ainda compactuava com histórias de torturas físicas e psicológicas, castigos e suplícios.
Desesperado, o governador fez de tudo para estancar a crise que se anunciava. No domingo (7) anterior, o jornalista Elio Gaspari publicava um contundente artigo (“Folha de São Paulo e “O Globo”) criticando a situação dos presídios capixabas (“As masmorras de Hartung aparecerão na ONU”). O artigo de Gaspari, que enfiava sem cerimônias o dedo na ferida mais aberta do governo Hartung, foi “censurado” no jornal de maior circulação no Estado (“A Tribuna”). Entretanto, os estrategistas do governo encarregados de blindar Hartung dos ataques se esqueceram que hoje as pessoas têm acesso à internet e as bancas da Capital (pelo menos) também vendem jornais de outros estados. Resultado, a emenda saiu pior que o soneto: os leitores do jornal “censurado” se sentiram traídos e a ação da assessoria do governo foi classificada como uma tremenda pixotada.

Quando ainda tentava se aprumar do duro golpe de Gaspari, o “comitê de crise do governo, na segunda (8), foi à lona novamente com o programa jornalístico Repórter Record - que inclusive foi um dos indicados para o Prêmio Esso de Jornalismo 2010. A emissora do bispo Edir Macedo não teve piedade do governador e levou ao ar imagens impressionantes dos presídios capixabas. Desde que o programa foi produzido, no final do ano passado, a assessoria de Hartung que cuida da imprensa “de fora” fez das tripas coração para tentar impedir que a reportagem fosse ao ar. Histórias de bastidores dão conta que a equipe de jornalismo da Record sofreu muita pressão para garantir a veiculação do programa.
De março para cá, Hartung passou a levar “mais a sério” as entidades de direitos humanos, no sentido de vigiá-las, e passou a reforçar a propaganda institucional para tentar apagar a mácula de governante torturador de presos.
Nesses últimos nove meses de governo, Hartung tem usado a imprensa corporativa para divulgar os investimentos na área prisional e tentar apagar o estigma de violador de direitos humanos. Agora ele quer ser reconhecido como o governador empreendedor que mais investiu em presídios nos últimos anos.
Antes da ONU
As denúncias que acabaram levando o governo Hartung à ONU começaram a ganhar força pelo menos um ano antes. Em abril de 2009, o então presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), Sérgio Salomão Shecaira, veio ao Estado para averiguar as denúncias de torturas e esquartejamento de presos que foram feitas pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos. Perplexo com o que viu, Shecaira cobrou providências imediatas das autoridades locais e encaminhou um contundente relatório à Corregedoria Nacional e demais entidades competentes, entre elas o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O relatório de Shecaria foi o primeiro a escancarar, sem nenhum filtro, a realidade das masmorras de Hartung. O histórico documento do presidente do CNPCP serviu de base para a formulação de novas denúncias de violações de direito e trouxe ao Estado sucessivas comitivas nacionais e internacionais que queriam ver para crer se as barbaridades denunciadas por Shecaira eram reais.
No mês seguinte, os membros do Conselho Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente (Conanda) vieram conferir as denúncias de Shecaira referentes às irregularidades também encontradas nas unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, onde, nos últimos meses, três adolescentes haviam sido executados. No mesmo mês de maio, o CNJ enviou para o Estado dois juízes incumbidos de inspecionar os presídios e as unidades de adolescentes. Nos dois casos, os juízes classificaram os espaços como meros locais de confinamento, suplício e sofrimento. Segundo eles, condições que inviabilizam qualquer processo de ressocialização.

Campos de concentração
À época, indignado com a passividade do governo do Estado frente a uma situação tão grave, Shecaira desabafou: “Poucas vezes na história seres humanos foram submetidos a tanto desrespeito”. Para encontrar precedentes semelhantes na galeria de horrores na história recente da humanidade, Shecaira comparou o sistema carcerário do Espírito Santo aos campos de concentração nazistas que exterminavam judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
O flagrante desrespeito aos direitos humanos e o tratamento desprezível que as autoridades locais deram ao problema não ofereceram alternativa ao presidente do CNPCP, que sugeriu ao então ministro da Justiça, Tarso Genro, ainda em abril, a intervenção federal no Espírito Santo.
O pedido de Shecaira gerou um desconforto muito grande para o governador Paulo Hartung, que articulou uma saída política para o imbróglio. As manobras de Hartung conseguiram neutralizar o relatório de Shecaira, que sugeria a intervenção no Estado. Até hoje, o documento continua engavetado na escrivaninha do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, à espera de um parecer.
Contrariado com a maneira condescendente com a qual o governo federal tratou as denúncias nos presídios capixabas, o professor Shecaira preferiu deixar a presidência do CNPCP. “Infelizmente, o Ministério da Justiça não me deu o respaldo esperado para resolver os problemas no sistema carcerário do Espírito Santo. Não me restou alternativa, a não ser sair”, lamentava-se Shecaira, em agosto de 2009, após deixar o Conselho.
‘Outra ficção’

Para tentar minar a repercussão das violações levadas à ONU, Hartung chegou a declarar, em agosto deste ano, que as denúncias eram “outra ficção”. A afirmação comprova que Hartung nunca levou a sério as torturas, os esquartejamentos e outras barbaridades que foram praticadas dentro do sistema prisional capixaba durante a sua gestão.
Ao fazer a descomedida declaração, o governador insinuou que o dossiê apresentado à comunidade internacional pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) e pelas ONGs Conectas e Justiça Global, não passa de um relatório secundário de pouca (ou nenhuma) importância.
Não só isso. Ao desqualificar denúncias tão graves, o governador rasgou a Constituição Federal e os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Mais que isso, a declaração foi um afronte impiedoso às mães, às esposas e aos filhos de diversos detentos que foram cruelmente assassinados dentro dos presídios do Estado ou que deixaram as masmorras amparados em muletas e cadeiras de rodas. Homens que vão carregar para os restos de suas vidas as sequelas desse brutal sistema que leva a assinatura do governador Paulo Hartung
Dos contêineres às masmorras hi-tech 

O uso de contêineres como solução barata e rápida para gerar vagas no sistema prisional foi outra decisão que revelou que o governo Hartung não tinha nenhum compromisso com os direitos humanos.
Alegando que o caixa estava vazio, o governador passou a usar as masmorras de lata para depositar homens, mulheres e adolescentes.

Depois que os contêineres viraram escândalo nacional, Hartung passou a procurar culpados para se esquivar da responsabilidade. Disse que a ideia dos contêineres partiu do então secretário de Segurança Evaldo Martinelli. Alegou ainda que essa medida emergencial só foi tomada porque o governo federal não repassou recursos para o sistema prisional capixaba. Depois, para sepultar de vez o assunto contêiner, destacou que o seu governo estava fazendo os presídios mais modernos do Brasil.
Os argumentos apresentados pelo governador para justificar a adoção dos contêineres são todos falsos. Hartung tratou o assunto contêiner como uma medida adotada no início do seu primeiro mandato (2003), quando o caixa estava vazio. Na verdade, os contêineres passaram a ser instalados em maio de 2005, portanto, às vésperas do seu segundo mandato, quando o caixa do governo já estava bem reforçado.
Segundo, se Evaldo Martinelli foi mandado a Santa Catarina para conhecer as prisões-contêineres, o fez com o consentimento do governador. Foram comprados inicialmente 93 contêineres ao custo de R$ 5,2 milhões, ou seja, R$ 55,9 mil a unidade. O governo gostou tanto da solução barata de depositar presos em contêiner que decidiu replicá-la para todos os segmentos prisionais do Estado, inclusive às unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei.
O último argumento de Hartung - que transfere a responsabilidade pela adoção das celas metálicas ao governo federal, ao justificar que não recebeu repasse - também é descabido. Em abril de 2009, quando as denúncias do então presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) Sérgio Salomão Shecaira chegaram a Brasília, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, ofereceu ajuda ao governador Hartung. Contrariado com a escandalosa situação dos presídios capixabas, que a essa altura já ecoava mundo afora, Genro cobrou mais empenho do governador para resolver o problema. O ministro precisou lembrá-lo que, desde 2003, o governo federal havia assinado 14 convênios e repassado cerca de R$ 26 milhões para ser investido no sistema prisional capixaba.
Somente no final de agosto deste ano, por determinação do Conselho Nacional de Justiça, é que as prisões contêineres foram desativadas. Na “nova era” de construção de presídios-hi-tech, para substituir os contêineres, surgiram os CDPs (Centros de Detenção Provisória).
Acuado pela comunidade internacional, por parte da imprensa, pelas entidades de direitos humanos locais, nacionais e até internacionais, e pelos conselhos nacionais, como o próprio CNJ e o CNPCP, Hartung procurou um meio de transformar os impopulares gastos com construção de presídios em um bom negócio.
Nos últimos dois anos, Hartung passou a ser conhecido como o governador construtor de presídios. Para por o plano em prática, Hartung passou a contratar praticamente duas empresas sempre sem licitação, a DM Construtora e Obras e Verdi Construções, ambas do Paraná. Ao todo, segundo o governo, foram gastos mais de R$ 420 milhões para construir 23 unidades.
Os novos CDPs, conhecidos também como “Centros de Depositar Pessoas”, são considerados pelos seus defensores como a última palavra em sistema prisional. Pela a apresentação de uma unidade recém-inaugurada pelo secretário da Justiça Ângelo Roncalli – que permanece no novo governo de Casagrande na mesma Secretaria, mas com outro nome -, é possível perceber que a visão de presídios como depósitos humanos prevalece. “A nova unidade conta com projeto arquitetônico diferenciado. A estrutura do prédio de detenção foi erguida com fibras de polipropileno e fibra de vidro e em concreto de alto desempenho, o que exige baixo custo de manutenção. As paredes em monoblocos dispensam o uso de vergalhões que, em unidades prisionais comuns, muitas vezes podem virar armas. O sistema de monitoramento também é mais seguro, uma vez que os agentes penitenciários não precisam entrar em contato direto com os internos. Os agentes circulam por uma passarela, instalada no pavimento superior, o que permite ampla visão das galerias”, descreve.

Segundo Roncalli, além do investimento na qualidade da estrutura física das unidades, também serão adotados procedimentos que garantam o rigor disciplinar na unidade. “Vamos seguir aqui o modelo de gestão que vem sendo implantado nas demais unidades prisionais do Estado”.
Na prática, os novos CDPs viraram um excelente negócio para empresários e oportunistas do governo que se aproveitam dos contratos milionários e sem licitação para enriquecer. A preocupação, como o próprio Roncalli explica, é assegurar a tecnologia hi-tech que trata os presos como uma espécie de mercadoria e continua a violar os direitos humanos.
Ainda essa semana, o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Bruno Alves Toledo, criticou o modelo de ressocialização que vem sendo adotado pelo governo do Estado. “Em julho, convocamos todas as pessoas envolvidas na ressocialização no Estado e descobrimos que todos os programas não atingem mais de 15% da massa carcerária, que é de cerca de 12 mil presos”.
Ele destacou também que a discussão sobre sistema prisional não se restringe à parte física dos presídios, como propõe Roncalli, mas a outras questões, mais amplas. “A questão da violência, da impunidade e a morosidade. A partir de janeiro, teremos estruturas muito boas, mas continuamos com violência enorme e com uma Defensoria Pública com pouquíssimos profissionais”, afirmou.
O presidente do CEDH também lembrou que o regime disciplinar em funcionamento nas unidades é equivocado porque dá o mesmo tratamento aos diferentes tipos de detentos, estejam eles em regime semiaberto, fechado ou provisório (aguardando julgamento). “No centro de detenção provisória a pessoa só pode receber visitas quinzenais e só com um vidro no meio e todas ficam 46 horas dentro da cela para terem banho de sol de duas horas.”
Ultrapassado
O modelo de CDP adotado pelo Espírito Santo que, na visão provinciana do governador é a última palavra em unidade prisional, está sendo desativado nos países desenvolvidos. A exemplo das penitenciárias americanas construídas na década de 70, os presos confinados nos CDPs praticamente não saem das celas de 2m X 3m, conforme denunciou o presidente do CEDH. As marmitex são entregues por um buraco na porta da cela para evitar que o preso tenha qualquer contato com o detento. Dentro das celas os presos se alimentam, dormem e fazem suas necessidades fisiológicas.
E comum faltar água nos novos CDPs, que são abastecidos por caminhões pipas, porque os lugares retirados não contam com abastecimento da Cesan. Quando isso ocorre, o cheiro nas celas fica insuportável, porque o mesmo lugar que serve de “refeitório” serve também de banheiro.
Nos Estados Unidos o mesmo modelo adotado no Estado, que lá é conhecido como prisões Super Max, foi duramente criticado pela ONU em 1996, que considerou o modelo "desumano e degradante".
CDP de Serra
Logo que o CDP de Serra foi inaugurado, em outubro de 2009, a reportagem de Século Diário acompanhou a inspeção dos representantes do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) à unidade.

Novo em folhas, à época, o CDP estava limpo e organizado com a ajuda da tecnologia - conforme demonstrou o diretor aos visitantes na sala de controle. A moderna unidade, a exemplo das antigas masmorras de Novo Horizonte ou da Casa de Custódia de Viana, também não oferece nenhum programa de ressocialização aos detentos. De acordo com as normas da Sejus, entre outras restrições, os internos são obrigados a andar sempre em fila de cabeça baixa e com as mãos para trás (na verdade, algemados); os cabelos são cortados com máquina 3; as correspondências que chegam aos presos são analisadas primeiramente pelo Serviço Social da unidade; as visitas são recebidas no parlatório [cabines que separam o preso do familiar por uma película de policarbonato (espécie de acrílico), e que só permite o contato por meio de um interfone; não há contato físico com familiares e muito menos visitas íntimas; o contato com os advogados também é pelo parlatório; os presos só podem receber visitas após 30 dias; as visitas duram 20 minutos.
Condenados
Embora a unidade tenha sido criada para receber apenas presos provisórios, como o próprio nome propõe (Centro de Detenção Provisória), é comum as unidades abrigarem presos condenados. Advogados criminalistas que circulam pelos CDPs afirmam que há diversos presos condenados nas unidades provisórias.
Em termos assépticos, não dá para negar que os CDPs, se comparados às antigas masmorras, dão a impressão, aos mais desavisados, de evolução. Conversando com os presos, no entanto, eles demonstram insatisfação com as novas instalações milionárias. “A pior coisa aqui é a visita, que praticamente não tem. Acho que a minha família nem sabe que estou aqui”, disse um dos internos. Outro contou que recebeu a visita da mulher, mas reclamou da falta de contato físico. “Esse negócio de botar um vidro no meio e a gente ter que conversar por telefone é para preso perigoso. Rodei por tráfico e ainda não fui julgado, acho que não tinha precisão de me colocar num presídio de segurança máxima”, disse o preso se referindo às regras rígidas do CDP que são semelhantes às de um presídio de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).
“Olha, senhor, eu preferia Novo Horizonte. Aquilo era um inferno, mas pelo menos tinha visita e malote”, disse o outro preso. “O senhor acha que a gente vai sair daqui melhor?”, questionou o mesmo jovem que disse ter apenas 19 anos.
“Talvez, com o tempo, vocês percebam que esse também não é o melhor caminho para a ressocialização”, disse na ocasião da visita ao CDP da Serra a secretária do CDDPH, Juliana Gomes ao diretor da unidade. Sem querer polemizar ou por não reunir conhecimento para debater a questão pelo viés “filosófico” das prisões que se preocupam apenas em vigiar e punir, o diretor preferiu fugir da resposta: “Pode até ser... Na verdade, eles reclamam porque aqui não podem receber malotes e ter visitas íntimas. Como aqui não entra nada e muitos são dependentes de drogas, eles entram em crise de abstinência e ficam revoltados”, resumiu.

A procuradora Ivana Farina, do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União e representante do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que também participou da inspeção de 2009, disse que de 2006 para cá [2009] – ano em que integrou outra comissão do CDDPH ao Estado – as violações aos direitos continuam no Espírito Santo. “A única novidade que percebi foram as construções desses CDPs, como este que visitamos na Serra. Embora limpos, os CDPs também não cumprem a Lei de Execuções Penais (LEP)”. A procuradora também fez críticas ao modelo disciplinar proposto no CDP. “Esse modelo, embora ofereça alguns avanços no que se refere às instalações físicas, vai acabar gerando mais agressividade nos internos, porque não há proposta de ressocialização”.

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