Infância Urgente

quarta-feira, 16 de julho de 2008

ECA passa batido na universidade

ECA passa batido na universidade

Currículos de cursos superiores raramente contemplam de forma consistente o ensino e a discussão da lei, que completa 18 anos amanhã



Na véspera de completar 18 anos e ganhar a maioridade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ainda passa despercebido pelos chamados “formadores de opinião”. Quase duas décadas depois da sua promulgação é raro encontrar cursos superiores com currículos que contemplem o ensino e a discussão do documento, com uma disciplina específica ou mesmo de forma dispersa em outras matérias. Nem mesmo em cursos em que os futuros profissionais vão trabalhar diretamente na área há essa preocupação.

“Poucas instituições de ensino superior dão a capacitação do estatuto de forma consistente”, afirma a pediatra Rachel Niskier, membro do Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. “O que existe é uma abordagem superficial, em que o assunto é tratado em uma ou duas aulas. O estatuto precisaria ser abordado pelas instituições de ensino superior de forma mais séria.”



A falta de conhecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente traz conseqüências graves. É comum, segundo Rachel, por exemplo, que médicos deixem de notificar casos de suspeita ou maus-tratos por não saberem que este é seu dever. “Há ‘n’ motivos para que o profissional de saúde que se deparou com um desses casos não faça a notificação”, explica. “O mais comum é por falta de conhecimento de que esse é um dever legal, previsto pelo estatuto.”

O problema não está apenas nos cursos que formam os profissionais da saúde. “O ECA não é abordado, não faz parte do currículo, nem foi pensado ou estruturado como disciplina fundamental ou obrigatória no curso de Pedagogia”, diz a professora do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Araci Asinelli da Luz. “O currículo está sendo reformulado, a discussão está sendo feita, mas, mesmo assim, não se está pensando em uma disciplina sobre o estatuto.”

As conseqüências, segundo Araci, são graves. “Esses futuros profissionais vão implementar políticas pedagógicas sem conhecer a sua clientela e os direitos dela”, afirma. “Isso acaba por traduzir problemas de relacionamento.” Segundo ela, a situação só não é pior porque há professores da pedagogia que incorporam o tema a suas aulas, mesmo sem estar introduzido oficialmente no currículo.



Direito

Nas Ciências Jurídicas, o ECA também é deixado de lado. Para o promotor de Justiça do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, Murillo José Digiácomo, o ensino jurídico no Brasil é “um desastre total”, quando o assunto é o ECA. Segundo Digiácomo, os bacharéis de Direito têm saído da universidade com pouco ou nenhum conhecimento sobre os direitos das crianças e do adolescente. “É lamentável”, diz. “O princípio da prioridade absoluta previsto no estatuto tem de ser aplicado também na universidade. É uma disciplina básica, principalmente para o promotor e o juiz que vão atuar na área da infância e da adolescência.”

A inexistência de uma disciplina específica, obrigatória ou optativa, que trate do ECA é confirmada pelo o coordenador do curso de Direito da UFPR, Edson Isfer. Nem no novo currículo do curso de Direito da instituição, em discussão, há essa previsão. Segundo ele, os direitos das crianças e dos adolescentes são conteúdos ministrados por várias disciplinas, como Direito Civil, Direito Penal e de Direito Processual. “O grupo de professores que trabalha na reformulação do currículo entende que o ECA tem uma autonomia legislativa, mas não tem uma autonomia didática”, explica. “O estatuto tem conteúdos que podem ser trabalhados dentro de outras disciplinas.”

Digiácomo discorda. “Acho que essa é uma visão equivocada”, opina. “É por isso que o estatuto é aplicado de forma equivocada, pois continuam a vê-lo como um apêndice de outras disciplinas.” Segundo o promotor de Justiça, os direitos da criança e do adolescente têm uma sistemática própria, com uma filosofia, metodologia, prazos e lógicas diferentes. “É necessário, de certa forma, desconstruir o que se aprendeu em outras disciplinas”, argumenta. “Não dá para aplicar princípios de outros ramos do Direito no ECA. Precisa ter uma disciplina obrigatória, com uma carga horária alta e, ainda, nos anos finais do curso.”

Jimena Aranda Oliva, professora da disciplina optativa de Direito da Criança e do Adolescente no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), também defende que a matéria deveria ser obrigatória. “Sem a disciplina, o profissional terá dificuldade de agir adequadamente de acordo com a técnica”, afirma.

O ECA enfrenta situação semelhante nas Ciências Humanas. Para a diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPR, socióloga Maria Tarcisa Bega, não há necessidade de disciplina específica sobre os direitos das crianças e dos adolescentes nos cursos desta área. “O estatuto é importante como referência, não como disciplina específica”, opina. Segundo ela, o assunto é tratado dentro da abordagem sobre cidadania em diversas disciplinas.


Para estudantes, estatuto faz falta na formação

A falta de uma formação específica sobre o ECA é sentida pela maior parte dos estudantes universitários e recém-formados entrevistados pela Gazeta do Povo. A acadêmica de Direito Maiara Carla Ruon, de 20 anos, por exemplo, diz que teve uma abordagem sobre o assunto de forma superficial na faculdade. Ela afirma que só passou a conhecer mais sobre a questão quando foi fazer estágio no Ministério Público, em uma área que trata de crianças e adolescentes. “Os professores falam a respeito, mas não é o suficiente”, opina. “Precisa ter mais.”



De acordo com a jornalista Geviane Diosti, 23, formada há um ano e meio, o ECA só foi tratado uma única vez durante o curso que fez. Foi durante uma palestra da organização não-governamental Ciranda. “É uma grande falha”, avalia. “Falta uma abordagem mais aprofundada e específica sobre o assunto, principalmente, se for levar em conta que os jornalistas atuam como formadores de opinião.”

Já a estudante de Pedagogia Maria do Rocil, de 37 anos, diz acreditar que a abordagem sobre os direitos das crianças e adolescentes na faculdade é boa. “Acho que não precisa uma disciplina específica sobre o ECA”, opina. “Somente isso não resolveria o problema da falta de divulgação sobre o assunto.”

O estudante de Jornalismo Oséias Dutra de Morais Filho, 20, tem opinião semelhante. Para ele não há necessidade de existir uma disciplina especificamente sobre o ECA, mas sobre Direito Humanos e questões sociais. “Creio que essas questões ficam à parte do curso técnico que tende a ser o Jornalismo”, diz.


Iniciativas começam a abrir debate no meio acadêmico

Que o ECA não encontrou seu lugar ao sol nas discussões acadêmicas da graduação é certo. Algumas iniciativas isoladas, entretanto, começam a reverter esse quadro.

O curso de Jornalismo da Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, implantou um projeto que vem sendo copiado por outras universidades Brasil afora. Há cerca de quatro anos, os alunos do curso têm à disposição a disciplina de Crítica da Mídia.



De acordo com o professor responsável pela matéria, Luiz Gonzaga Motta, direitos humanos, desenvolvimento social e os direitos das crianças e dos adolescentes estão no programa. “Os alunos, por exemplo, ficam por quinze dias analisando a cobertura que a mídia dá para assuntos relacionados à criança e adolescente, como o caso Isabela Nardoni”, explica. O objetivo, segundo ele, é que os estudantes, ao sair da faculdade, possam fazer coberturas sobre tais temas de forma mais qualificada.

Com o ECA devagar, quase parando nas discussões acadêmicas da graduação, um empurrãozinho de fora também pode ajudar a acelerar o processo de melhoria na abordagem do assunto pelas universidades. O exame de ordem da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e concursos públicos têm passado a exigir conhecimento sobre o tema. A expectativa é que com isso as faculdades de Direito revejam o seu posicionamento.

Outro exemplo é a Sociedade Brasileira de Pediatria, que exige conhecimento sobre os direitos das crianças e dos adolescentes na prova de título para a especialidade.

Fonte:Gazeta do Povo

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