Infância Urgente

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Notícias: Pesquisadora liga impunidade de torturadores às violações do dia-a-dia

Para pesquisadora Glenda Mezarobba, a não punição de torturadores contribui “com o legado de horror (...) presente no nosso dia-a-dia” que atinge os brasileiros não de classe média e das elites.
ANA FLOR
DA REPORTAGEM LOCAL, FSP, 10/11/08
FOLHA - O Brasil conseguiu superar a ditadura militar?
GLENDA MEZAROBBA - Dos quatro deveres do Estado com a sociedade na passagem para a democracia após um período de repressão, o Brasil apenas tem feito reparações às vítimas. Os outros três, estabelecidos internacionalmente, ainda não avançaram. São eles: fazer justiça, processando e punindo responsáveis por crimes contra a humanidade, o direito da sociedade à verdade, com a revelação dos crimes e suas circunstâncias, e renovação de instituições. Mesmo dentro das reparações, o Brasil apenas fez pelo aspecto econômico. Há ainda o plano simbólico, com pedidos oficiais de perdão, constituição de museus e monumentos.
FOLHA - Como a sociedade pode se beneficiar com um acerto de contas?
GLENDA - Ao não julgar e processar os violadores dos direitos humanos, o Brasil perde a oportunidade de sinalizar que na democracia tais crimes não seriam tolerados. Perde a chance de deslegitimar aquela ideologia autoritária e de romper com recriminações de grupos, contra as Forças Armadas, contra os guerrilheiros. O Brasil ainda não se dedicou à questão da justiça, mas não significa que não possa se dedicar. Não há um prazo de validade, especialmente em relação a crimes contra a humanidade como a tortura, que não prescrevem e que não são passíveis de anistia.
FOLHA - Interessa à sociedade saber detalhes do regime militar?
GLENDA - Não saber oficialmente o que ocorreu significa não conhecer a nossa história. É importante que as Forças Armadas revelem tudo o que sabem. A sociedade tem o direito de conhecer sua própria história. É um período negro, mas, mesmo sem falar nos direitos de vítimas e familiares, a sociedade deve conhecer as circunstâncias das mortes e prisões.
FOLHA - Por que seria bom para as Forças Armadas pedir perdão?
GLENDA - Acreditamos que as Forças Armadas são comandadas por indivíduos democráticos, sem ligações com o regime autoritário. A instituição de hoje não tem ligação, queremos acreditar, com as atrocidades que foram cometidas no regime militar. É importante que os mais altos cargos da corporação sinalizem isso. É uma obrigação da instituição reconhecer erros, dizer que não se repetirão. Será muito salutar para sua imagem. Os militares de hoje ainda caminham sobre a linha tênue que divide presente e horrores do passado.
FOLHA - As atrocidades da ditadura e a violência atual têm ligação?
GLENDA - Não sinalizar claramente, na passagem para a democracia, que não se vai mais tolerar a tortura não contribui para seu fim. Pretendemos ser um país democrático, mas não conseguimos interromper práticas da ditadura. [Tortura] É ainda prática da polícia. Lidar com o passado não é masoquismo ou revanchismo, como insistem alguns remanescentes do regime militar. É olhar para o futuro. Não conseguimos lidar com o legado de horror e ele continua presente no nosso dia-a-dia -talvez não para classe média e alta, mas para muitos brasileiros.
FOLHA - A sra. diz que é hora de o Judiciário participar do processo.
GLENDA - O processo de acerto de contas começou com a Lei de Anistia, apesar de o regime militar ter desejado, com ela, encerrar a discussão. O acerto de contas se desenvolve desde então, com três momentos importantes: a Lei de Anistia, a Lei dos Mortos e Desaparecidos de 1995, quando o Estado brasileiro reconhece as mais graves violações dos direitos humanos no período, e a lei que paga reparações, de 2002. Nesse processo, o Executivo e o Legislativo têm sido protagonistas. As Forças Armadas e o Judiciário não desempenharam seu papel, sob a perspectiva dos direitos humanos, de maneira satisfatória. O Judiciário brasileiro, ao contrário de países como Argentina e Chile, ainda não sinalizou que pode ser a esfera onde os direitos das vítimas do regime militar são garantidos. É o momento de o Judiciário rever sua posição de não-participação no acerto de contas. Pode mudar a interpretação da Lei de Anistia.
FOLHA - Qual sua posição sobre a revisão da Lei de Anistia?
GLENDA - A Lei de Anistia foi criada, durante a ditadura, cheia de eufemismos para anistiar crimes cometidos pelos militares. Quem diz que a Lei de Anistia não pode ser revisada não vê que o texto já foi muito modificado. É uma falácia a não-revisão. Todo o artigo segundo foi suprimido, os artigos quarto e quinto também. Ela já foi bastante modificada. Mas não há necessidade de revisar a Lei de Anistia. Há, sim, necessidade de interpretá-la da maneira correta, uma interpretação sob a ótica dos direitos humanos e do direito internacional, que afirma que não há anistia para crimes como tortura.
FOLHA - A senhora critica o que chama de eufemismo no processo de reparação.
GLENDA - O processo reparatório brasileiro teve peculiaridades muito negativas. A legislação criada até agora para tratar das vítimas do regime militar não usa a palavra "vítima". "Direitos humanos" é outra expressão que não está presente na lei, nem "violações aos direitos humanos". "Tortura" só aparecerá em uma lei de 2004. É um equívoco criar uma comissão que vai reparar perseguidos políticos, mas a denomina "Comissão de Anistia", quando anistia, no sentido amplo, significa perdão e esquecimento. Não parece equivocado que, em plena democracia, as vítimas entrem com pedido para serem "anistiados políticos"? E que o "Diário Oficial" da União publique, como publicava durante a ditadura militar, que "fulano é reconhecido como anistiado político"? Já não passou da hora de as coisas terem a designação correta do que foram e são?

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