Asociedade que protege abusadores e exploradores esconde as vítimas em abrigos — lugares sem placa na porta, afastados do centro das cidades, com horários rígidos e entrada controlada por vigias. Estão mais para colégios internos do que para
casas de família. Mas é ali que as crianças e adolescentes crescem até que a Justiça decida o destino deles. Almoçam em refeitórios coletivos, ficam sem festas de aniversário e esperam os passeios ou licenças especiais para conhecer um pouco do mundo que os cerca.
Na periferia de Manaus, está a Casa Mamãe Margarida. São dois sobrados cor-de-rosa, cercados por muros altos e grades de ferro. Um deles aloja 40 meninas com idades entre seis e 18 anos. Quase todas são vítimas de violência sexual. No outro sobrado,
a instituição realiza atividades pedagógicas para outras 300 garotas em situação de risco.
Apesar da atenção às crianças e adolescentes, a Casa Mamãe Margarida não substitui o fundamental:o convívio familiar.“Abrigo não é bom para ninguém.Por pior que seja a situação das famílias, as meninas sentem falta dos irmãos, dos amigos”, lamenta a irmã Liliana Maria Lindoso, uma das fundadoras da casa assistencial.Para os casos de violência sexual,o ECA prevê duas alternativas anteriores ao abrigamento:a retirada do agressor de casa ou a colocação da criança em uma família substituta. Mas,com 22 anos de experiência no atendimento às vítimas, irmã Liliana diz que essas determinações raramente são seguidas.“No lugar de onde vêm, essas meninas são consideradas garotas-problema, ninguém as quer. Um absurdo, porque elas é que são as vítimas.”
Por causa dessas distorções,o abrigo passa a ser regra, e não exceção. Lá, meninos e meninas vivem em um espaço despersonalizado,com normas de convivência coletiva. Manter a identidade e conquistar autonomia são desafios diários. “Eu não
agüento isso aqui. É chato demais”,diz Bia, 13 anos, que passou boa parte da infância perambulando pelas ruas e praças de Manaus. As meninas que sofreram
exploração sexual infantil têm mais dificuldade para se adaptar às regras.
Outro problema nos abrigos é a institucionalização das crianças e adolescentes. A tarefa de restabelecer laços em uma família atingida pela violência quase nunca é cumprida. Na entidade Raio de Luz, em Belém do Pará,das 40 meninas abrigadas, três
poderiam ser adotadas. “O ECA aposta na reinserção familiar,mas elas vieram de famílias doentes. É muito difícil conseguir que elas voltem para casa em segurança”, desabafa Nahum Freitas, diretor da instituição.
No abrigo paraense, as regras são cumpridas com atenção. Há uma rotina de horários para acordar, almoçar, brincar e tomar banho. No dia em que a reportagem esteve no local, as meninas haviam ido ao dentista e todas estavam com os cabelos presos com os mesmos elásticos coloridos. Na hora do almoço,comiam sem fazer algazarra.Nos quartos, sobre as camas,dezenas de bichos de pelúcia enfileirados davam a impressão
de jamais terem sido usados para brincadeiras.
Oásis no sertão do desamparo
A falta de instituições para abrigar crianças e adolescentes que sofreram violência sexual é um problema em todos os estados brasileiros. Na Paraíba, o Ministério Público e a Justiça não encontram destino para as vítimas. Além de João Pessoa, o
abrigo mais próximo fica em Guarabira, a 100 quilômetros da capital. Lá funciona a Comunidade Talita, instituição coordenada pelo padre italiano Luigi Pescarmona. O local é espaçoso e organizado, tem piscina, área de lazer e vegetação exuberante.
As meninas de 10 a 17 anos chamam o padre de pai. Todas vão à escola e fazem cursos profissionalizantes.
O oásis do padre Luigi é para poucas. Apenas 22 garotas moram no abrigo, que não é exclusivo para vítimas de abuso ou exploração e recebe crianças e adolescentes de vários municípios do estado. “Tem meninas de Mamanguape, Rio Tinto, Mari,Alagoinha, Cuitegi, Capim e Sapé. O telefone aqui não pára de tocar. Ligam juízes, promotores,
mas infelizmente não temos estrutura para receber mais gente”,explica Maria Josiane Alves,funcionária do abrigo e chamada de “madrinha” pelas meninas.
Se abrisse as portas para demandas de todo o estado, o abrigo estaria lotado e perderia a qualidade do atendimento. Renata, de 15 anos, está há sete meses na Comunidade Talita.Antes de chegar ao abrigo, fazia programas e cometia pequenos
furtos para comprar drogas. Por determinação judicial, saiu de casa provisoriamente. Hoje, Renata está adaptada à Comunidade Talita, mas deveria visitar a mãe periodicamente e retomar o convívio familiar. O problema é que a casa da menina fica em Mulungu, município a 300km de Guarabira. Como a cidadezinha natal de Renata não tem nenhum abrigo próximo, ela foi levada para a Comunidade Talita. “Já fui
visitar a minha mãe algumas vezes,mas desanimo porque é muito longe. Prefiro ficar no
abrigo”, conta Renata.
Diante da dificuldade de reintegrar-se às famílias ou de superar os obstáculos para adoção,as vítimas de violência sexual ficam esquecidas nos abrigos.Uma das meninas da entidade Raio de Luz, em Belém do Pará,já está lá há mais de cinco anos.“Por causa da idade, elas já nem poderiam mais ficar aqui. A gente abre exceção porque não há opções de lugar para essas crianças”,afirma o diretor Nahum Freitas. Ele cita o caso de Paula,uma menina de 15 anos que vive ali há seis anos e que, durante
esse período, nunca recebeu visita de parentes. “Outro dia, ela queria se matar. Dizia que ninguém no mundo se importava com ela. O que eu posso fazer?
Me preocupo em dar autonomia,porque a família, ela já perdeu”,afirma
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