Eduardo Sales de Lima
da Redação
Brasil de Fato: A esquerda poderia se utilizar da atual crise econômica para reorganizar os trabalhadores enquanto classe social, motivando-os a desenvolver consciência de classe, para, assim, construir um tipo de movimento político estrutural ligado ao Estado, à semelhança do que ocorre na Venezuela e na Bolívia. A avaliação é do cientista político canadense Leo Panitch, um dos principais estudiosos contemporâneos da teoria marxista.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Panich afirma que, na conjuntura política atual, "a esquerda percebe que os protestos não são suficientes, que é preciso construir um tipo de movimento político estrutural ligado ao Estado, que tente entrar no Estado e
transformá-lo".
Brasil de Fato - Como a atual crise econômica, acompanhada de outras,como a alimentar e energética, pode servir como uma oportunidade para o fortalecimento da esquerda?
Leo Panicth – Entramos em uma nova conjuntura, na qual a esquerda latino-americana está, mais uma vez, liderando. No começo dos anos 2000, todos os protestos anti-globalização nos fóruns sociais mundiais, com o centro em Porto Alegre (RS), foram muito significativos. Eu acreditava que eles ajudariam a minar a ideologia do neoliberalismo, que vive em crise atualmente; sem falar na crise do preço dos alimentos, da crise energética. Mas, objetivamente, o neoliberalismo é descontínuo. O capital continua muito forte, até mesmo na crise. Mas ninguém acredita mais nessa ideologia, tão longamente admirada, da mínima intervenção do Estado, da concepção de
que as relações comerciais podem auto-regular o mercado. Mas qual é a nova conjuntura da correlação de forças que foi transformada? Uma conjuntura na qual a esquerda percebe que os protestos não são suficientes, que é preciso construir um tipo de movimento político estrutural ligado ao Estado, que tente entrar no Estado e transformá-lo. Quem tem feito a diferença nesse novo caminho da esquerda da América é (Hugo) Chávez, especialmente a partir de 2002.
Somado a ele, Evo Morales, que ajudou a construir um partido político a partir de um movimento social, e conseguiu se eleger. Mesmo no Paraguai é possível ver mudanças. O elevado índice de abstenção na última eleição presidencial mexicana também significou muito. O povo sente que tem que entrar no Estado. Fora da América, existem movimentos similares na Alemanha, que tem um novo partido de esquerda, formado a partir do velho partido da Alemanha oriental e que se separou dos social-democratas, o Die Linkie (Esquerda, traduzido do alemão).
BF: A participação dos conselhos comunais na Venezuela podem servir como
exemplo de participação popular no Estado?
São importantes no sentido de demonstrar o desenvolvimento de capacidades populares, construindo unidade a partir desses conselhos. Existem conselhos comunais colocando demandas para Chávez, e até mesmo apoiando o presidente. Mas não temos a informação do tipo de classe, da identidade de classe das pessoas que participam deles. Esse é um
grande problema na Venezuela.
BF:O governo Lula tem uma clara influência de segmentos da direita no país. Os movimentos sociais têm responsabilidade pelo fato de o governo não ter se aproximado da esquerda, principalmente agora, em seu segundo mandato?
Sim. Ele se tornou muito rapidamente um típico governo parlamentarista social-democrata. Uma grande tragédia. Os movimentos sociais botaram bastante confiança no Partido dos Trabalhadores (PT) e em Lula. Todo aquele encontro em Porto Alegre (RS) ocorreu com o auxílio dos movimentos sociais que protestavam contra a globalização capitalista, mas não era possível fazer isso eternamente. Eles aprenderam que até
Lula já faz parte do processo de globalização.
BF:Com a perda de credibilidade do neoliberalismo abre-se uma nova oportunidade para a esquerda mobilizar suas forças populares?
No Manifesto da Partido Comunista, Karl Marx e Friederich Engels disseram que o primeiro passo de um partido é organizar o proletário dentro de uma classe e formar uma corrente organizada, consciente, ativa, um grupo social. Não é ir para governo e nem propor políticas a ele. E isso é constantemente desconstruído na sociedade capitalista, porque as pessoas são consideradas cidadãos, consumidores. Elas o são
também, mas isso quebra a unidade que eles poderiam formar como classe trabalhadora. É o que o PT fez na década de 1980, o que a CUT fez nos anos 1980, o que os movimentos camponeses fizeram. Foi conversar individualmente com cada trabalhador e determinar uma mentalidade de classe, e isso se constrói dentro um processo cultural, não é feito
por meio do "politiquês"; isso é cultural.Isso é feito por meio da música, do teatro. A classe trabalhadora que o PT e CUT organizaram nos anos 1980 é desorganizada em 1990. Mesmo eles tendo conseguido voto para o Lula. Eles foram desorganizados porque as pessoas votaram individualmente no Lula. Não é uma coisa fácil, mas a tarefa dos novos
movimentos políticos deve ser reorganizar a classe trabalhadora.
BF: Em um plano utópico, como um governo realmente de esquerda agiria na administração do Estado?
O tipo de Estado inovador precisa acontecer quando um governo de esquerda estiver nele, eleito, tendo como principal trabalho usar sua legitimidade para ajudar as pessoas que não estão organizadas fora do Estado, a se organizarem e conquistarem mais força, na luta contra o capital e até mesmo nas suas lutas contra o Estado. Alguns quadros do
PT têm essa concepção, mas eles não tiveram a coragem para fazer isso dentro do Estado. Se você dá condições às pessoas de protestar, mesmo que seja contra o governo, isso não se configura como clientelismo porque o Estado não está pondo dinheiro dentro do bolso privado, mas ajudando a organizar uma força social. Claro, a burguesia chamará isso
de clientelismo. A segunda coisa mais importante: é impossível chamar uma sociedade de democrática se você tem somente o direito de votar nas eleições. Nós não temos o direito de decidir sobre que é investido e o que é produzido. Isto é não-democrático. E um terceiro ponto: Quando um neoliberal diz "Nós precisamos de menos Estado", ele
frequentemente é apoiado pelos pobres. Por que? É preciso que o Estado seja menos burocrático, o Estado está distante dos pobres. Se você fosse uma mãe solteira, que dependesse de um auxílio do governo, você acha que você não ficaria com medo do Estado?
BF: O mundo está presenciando a decadência do domínio econômico dos Estados Unidos?
O capital transpassa o Estado e foge do controle do mesmo. Os Estados têm sido os reforços da globalização capitalista. Quem fez o Nafta? As corporações ou os Estados? Os Estados assinam os acordos das atas. O capital não pode fazer nada sem o Estado. Os Estados Unidos, especialmente a partir de 1945, se tornou o centro da elaboração do
capitalismo global. Depois de 1945, ele construiu impérios que foram definidos após a Segunda Guerra Mundial. O domínio dos EUA sobre a reconstrução dos países foi um modo de se constituir em império. Depois daqueles sub-impérios terem se exaurido dentro de suas guerras, os Estados Unidos adquiriram uma responsabilidade como se fosse inata. "Eu serei um Estado internacional". Os Estados Unidos têm agido como tomando a responsabilidade de banco do capitalismo mundial, por meio da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Banco Mundial.
Isso causa conflito porque é ainda também o Estado de formação social americano. Isto tudo gera uma tensão entre o que a burguesia americana quer e o que o mercado global capitalista quer. O poder dos Estados Unidos está mais penetrado nos maiores países capitalistas do que em seu próprio país. Por meio da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), por meio dos maiores investimentos estrangeiros diretos. Assim avança o capitalismo de Estado. Devemos parar de pensar que, quando falamos em imperialismo, o Japão ou a União Européia irão desafiar os Estados Unidos. Eles são parte de um complexo no qual estão comprometidos com os estadunidenses na direção
do capitalismo global.
BF:Qual a influência da China nessa conjuntura?
Apesar do seu incrível crescimento, a China ainda é um "player" muito pequeno. Seu investimento na África chega a 5% do total das inversões internacionais no continente. Em 50 anos, a China preocupará mais os Estados Unidos.Veremos. O desenvolvimento do capitalismo chinês está acontecendo de acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), baseado da penetração do capital ocidental no país. Sem precedentes na história chinesa, testemunhamos o que tem sido a maior penetração de investimentos no país.
BF:O que as eleições estadunidenses podem trazer em relação a uma nova
atitude da esquerda mundial? A esquerda tem como se aproveitar de uma
vitória do candidato democrata Barack Hussein Obama?
Primeiro de tudo, o fato de se eleger um negro nas eleições presidenciais dos Estados Unidos é simbolicamente muito importante. Também, na atual conjuntura, eleger alguém que é contra a guerra no Iraque é muito importante também. Entretanto, é importante dizer que as políticas de Obama não são diferentes na essência em relação à linha principal das dos democratas que, nos últimos anos, têm sido bastante pragmáticos, se comprometendo com todas as medidas das forças do capitalismo. Seu programa não é radical, ele não rompe com o neoliberalismo; ele certamente não romperá com as regras do império como diretor do capitalismo global. Não devemos ter ilusões em relação
a ele, mas devemos lembrar que, quando John Kennedy foi eleito, em 1960, ele era muito radical e não fez muito, mas uma nova energia foi transmitida, um novo nível de expectativa foi dado aos jovens e negros dos Estados Unidos. Gerou coragem e inspiração para começar a luta por direitos dentro do país. Se eles o elegerem terão inspiração em
organizar-se, e pressioná-lo. Como foi feito em vários movimentos de direitos humanos e nos movimentos de mulheres nos anos 1960. Essa é minha esperança. Mas também espero que haja o mesmo efeito ao redor mundo e que as forças progressistas sintam-se capazes de fazer mais, mesmo que Obama os desaponte, não trilhe ao lado deles. Essa é minha
esperança.
Quem é - Leo Panicht é Professor de Política Econômica do Canada Research e da Universidade de York, na Inglaterra. Considerado uma das
principais referências na discussão da teoria marxista. Tem 61 anos e
também é editor da revista Socialist Register. A primeira vez que
visitou o Brasil foi em 1982.
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