A cultura do medo, que tem como ingredientes a violência e o individualismo, faz com que as novas gerações não circulem mais pela Cidade, constata o sociólogo César Barreira* que defende mais proteção e respeito aos jovens
Qual a sua impressão sobre as pesquisas realizadas pelo LEV que têm como objeto de estudo o universo infanto-juvenil de Fortaleza?
Uma delas, encomendada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) com o objetivo de estudar a impunidade e a morosidade da Justiça com relação a crimes que envolvem crianças e adolescentes, tivemos alguns resultados que nos chamaram à atenção. Um deles, a apuração dos assassinatos de crianças e adolescentes, normalmente, não têm continuidade, exceto quando existe o interesse de alguma pessoa externa à própria família. Outro, apontou que há uma desconfiança da família na Justiça. Ouvimos frases fortes, como: "ele já iria morrer mesmo, o assassinato apenas antecipou". Isso demonstra uma vulnerabilidade a qual estão expostas as pessoas, principalmente, as mais simples. A vulnerabilidade não é só econômica, mas também no lado da violência.
E com relação aos jovens propriamente?
Na pesquisa que realizamos com a juventude, em Fortaleza, foram criados grupos focais reunindo jovens de diversos setores da sociedade. Jovens que estudavam em escolas públicas ou privadas, outros, ligados a alguma atividade religiosa, ao surf, e viciados em droga ou que estavam pagando alguma pena. Procuramos diversificar o universo da pesquisa para tentar entender um pouco a relação que têm com a violência.
O que chamou atenção nesta pesquisa?
Um dado interessante é que eles conhecem o padrão de violência que existe em outras cidades e colocam Fortaleza ainda como uma cidade tranquila em comparação com São Paulo ou Rio de Janeiro. Outro achado preocupante é o aumento da violência dentro da escola. Na década de 1960, para nós que trabalhávamos com a sociologia da educação, a preocupação era com a violência da escola, hoje, se fala em violência na escola.
Como o fenômeno se manifesta na atualidade?
O que mais preocupa é que ela representa uma violência que ocorre fora dos muros da escola, como por exemplo, uma briga de gangue que se transfere para dentro da escola. Então, temos algumas situações de escolas que estão, hoje, praticamente sitiadas, vivendo no limite de prisioneiros. Elas não podem mais realizar festas, temendo a ocorrência de alguma briga de gangues. Alguns professores relataram que foram ameaçados pelos alunos. Há uma certa negação de autoridade por parte do professor. Enquanto não forem resolvidas práticas violentas que acontecem na sociedade como um todo, dificilmente, iremos acabar com essa violência dentro da escola.
Qual o papel da família?
É impressionante o relato de alguns diretores, ao afirmarem que muitos pais se sentem impotentes para educar os filhos e transferem essa responsabilidade total para a escola. Praticamente entregam a criança para a escola. Do ponto de vista sociológico, é importante a gente entender essa dificuldade que os pais têm, hoje, para pôr limites ao filhos. Eles temem ser chamados de autoritários ou que os filhos se rebelem. Na atualidade, existe uma discussão forte em torno do que seria uma educação mais democrática, mas que seja passível de dar limites a essas crianças e adolescentes.
Um dos problemas gerados por essa "vulnerabilidade" é a morte prematura de jovens. Como o senhor analisa esse fenômeno?
Não se pode generalizar. Estamos falando de juventudes. Temos uma juventude de classe alta, que vive uma outra situação bem diferenciada. Temos uma juventude de classe média e, outra, pobre. Essa juventude da classe pobre é a mais vulnerável e a que morre mais também, de certa forma, vítima da violência. A gente poderia fazer uma tipologia desses jovens.
De que forma essas "juventudes" se diferenciam ?
A juventude é vista como agressora, mas acho que deveria se falar dela como vítima. Porque é ela que morre mais, formando um percentual superior do que aquela considerada agressora. A gente teria que discutir se realmente tudo isso que computamos para a juventude, no sentido de que ela é violenta, são mesmo práticas violentas. Por que existem dois dados novos nessa questão.
Quais são?
O uso de drogas que, de certa forma, muda o perfil dessa juventude, principalmente, o crack porque a sua entrada define fundamentalmente uma prática mais violenta da juventude. O outro, a utilização da arma de fogo. Mesmo porque não há nada muito alarmante. O uso de arma de fogo por parte do jovem é muito baixo. Mas, digo sempre quando falo nessa questão, um jovem que anda armado é preocupante, assim como, um jovem que morre. A juventude deveria ser um dos setores mais protegidos. No entanto, temos um número de homicídios muito alto acontecendo na faixa etária entre 14 e 24 anos.
É uma fase crítica...
Trata-se de faixa etária que em princípio estaria terminando o seu curso e entrando no mercado de trabalho. Mas como não entra no mercado de trabalho, fica muito vulnerável para qualquer prática ilícita. São revendedores de drogas, os famosos aviões. É uma forma de conseguir dinheiro fácil e as pesquisas provam ser um dos setores rentáveis, mas o pessoal que entra nessa lógica é também o que morre mais. É interessante ver a relação entre vulnerabilidade, violência e homicídios porque é um ciclo vicioso. Esses jovens entram no mundo adulto muito cedo, e morrem muito cedo também.
O que esses jovens têm de retaguarda ou de proteção?
O setor da criança e do adolescente deveria ser o mais protegido: pelos pais, pela escola e pelo Estado através dos seus programas de políticas públicas. Hoje, temos um dado muito preocupante, as duas grandes instituições responsáveis por todo processo de sociabilidade e socialização da criança, a escola e a família, estão muito sujeitas a qualquer prática de violência. A família e a escola estão muito vulneráveis e deixaram de ser locais de segurança ou sagrados. Existe uma violência na escola e no interior da família. Nas classes mais pobres podem ser relacionadas determinadas práticas violentas que são cometidas por pessoas da própria família, como o estupro cometido normalmente pelo padrasto, padrinho ou tio.
E qual o papel da polícia?
Defendo que a polícia deveria se preparar cada vez mais para trabalhar com a violência da juventude. Não sou muito a favor de dizer que, hoje, a juventude é mais violenta. Não, hoje, a juventude vive num mundo diferente de vulnerabilidade por parte da família e da escola na qual a droga está mais presente. Mas fica até difícil classificar toda prática da juventude como sendo violenta.
Como o senhor avalia essas práticas violentas da juventude?
A violência é algo construído. Por isso, é preciso discutir um pouco como definir essa prática violenta dos jovens para que possamos ter elementos para classificar a juventude atual como violenta. Atualmente, temos uma situação muito mais preocupante, que é uma sociedade punitiva que está querendo sempre mais punição. Penso que a gente deveria ter mais proteção, em vez de estar simplesmente criminalizando o jovem. Se a gente tivesse um programa de proteção por parte do Estado e das escolas, provavelmente, teríamos a diminuição da violência. Mas as pessoas pedem sempre mais punição, como a diminuição da maioridade penal. Não sou a favor de passar a mão na cabeça do jovem e dizer que está tudo bem. É motivo de preocupação. Mas é muito mais preocupante a vitimização dos jovens do que propriamente ele como agressor. Claro que temos que saber como lidar com esse agressor, que pede uma preparação muito mais no plano social por parte da polícia.
Como trabalhar com os jovens o consumo, uma condição da sociedade contemporânea?
Os meios de comunicação enfatizam muito, através da publicidade, a obtenção de determinados bens pelos jovens. Vamos ter uma outra discussão, a do jovem como vítima dessa falta de socialização uma vez que existem locais onde os jovens não circulam mais devido ao medo. Quem tem filho sabe disso. A roupa que ele vai ao shopping não é a mesma que usa para ir a festa, nem a que vai à rua. Ele faz toda uma seleção, dependendo do local que vai. O medo que as pessoas têm de andar em turma porque pode ser classificada como gangue é muito forte. Estamos tendo hoje, e isso é preocupante, toda uma geração que está sendo educada no interior dessa cultura do medo. Isso leva a criar e fortalecer barreiras sociais e o outro passa a ser uma pessoa que pode lhe proporcionar violência.
A cultura do medo faz com que a cidade isole as pessoas ...
Nesta pesquisa, percebemos que o jovem constrói, praticamente, linhas imaginárias por onde não pode passar. Por exemplo, os jovens de classe média e de classe média alta que moram na Aldeota ou no Meireles, não circulam em outros bairros com medo da violência. Os jovens das periferias de Fortaleza também não circulam muito em outros bairros devido ao medo. Existe uma classificação que eles mesmos fazem de determinados bairros que, às vezes, não conhecem. Na pesquisa, a gente perguntava a um jovem do Pirambu, qual era o bairro mais violento de Fortaleza, ele respondia ser Messejana, mesmo sem conhecer o local e vice-versa. Então existe toda uma construção imaginária e meio simbólica desses lugares violentos, passando a ter o bairro violento, a rua violenta e o bar violento, sendo uma construção que decorre do mundo adulto. Eles não circulam e não conhecem mais Fortaleza, em função do medo. O medo é uma situação muito preocupante, assim como a violência porque ela cria o medo, e o medo, a violência sendo necessário romper com esse ciclo vicioso.
Como chegar a um meio termo já que uma sociedade sem conflitos é uma utopia?
Primeiro, poderíamos ter essa negação de que o jovem é violento. É interessante romper com determinados estereótipos, então, para mim, a gente deveria trabalhar, repito, mais com proteção do que com punição. O jovem é muito mais carente de proteção. Segundo, reforçar fortemente programas do governo que trabalham com arte, cultura, esporte e lazer. E, terceiro, trabalhar mais no sentido de reforçar a tolerância, no sentido de respeito ao outro que é diferente de você. Na pesquisa que estamos realizando com os jovens, no momento, a palavra mais usada por eles é respeito. O que mais querem é ser respeitados pelos pais, pelos professores e pelos policiais. Existe um dado importante, o respeito à diferença. Às vezes, nós adultos somos muito intolerantes com relação aos jovens. Temos toda uma cultura que reforça o individualismo. Hoje, não se pode passar a mão na cabeça de uma criança temendo a pedofilia. É preciso deixar que as pessoas convivam bem. A pedofilia sempre existiu, hoje, é mais correto denunciar. Em vez de preparar o jovem para essa nova realidade, ele é retirado da situação.
É possível mapear o crime em Fortaleza ou ele está dissemina do na Cidade?
Ele está disseminado, mas há também uma questão que diferencia com relação a determinadas áreas. Os delitos que são cometidos na Aldeota envolvendo jovens que não necessariamente moram lá, é muito em função de obter bens. O assalto predomina muito nessas áreas. Quando se vai para as áreas mais pobres, a predominância é da violência mais física. As brigas de gangues normalmente vão ocorrer nessas zonas mais vulneráveis. Nos bairros do Pirambu, Bom Jardim, Messejana e no Tancredo Neves são disputas de gangues caracterizadas por violências físicas entre eles.
* César Barreira é coordenador do Laboratório de Estudo da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Fonte:Diário do Nordeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário