Infância Urgente

sexta-feira, 24 de julho de 2009

BREVE ANÁLISE DO ORÇAMENTO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO ESTADO DE SÃO PAULO

Gisele Toassa, para o Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, São Paulo – FEDDCA-SP .
Texto de livre difusão.
Ano de 2009.
Endereço eletrônico do texto:
http://infanciaurgente.blogspot.com/.
Manifeste-se sobre esta análise no blog Infância Urgente.


1. Introdução

A LDO 2008, Art. 2, estabelece como metas e prioridades da ação estatal a “I - redução das desigualdades sociais e melhoria da qualidade de vida da população; II - geração de emprego e renda e preservação dos recursos naturais; III - garantia da segurança pública e promoção dos direitos humanos.” (ESTADO DE SÃO PAULO, 2007a, p.5).
Mas será que essas resoluções têm sido realmente cumpridas? Podemos começar um esboço de resposta a esta indagação pela análise do orçamento estadual dirigido à criança e ao adolescente. E pensar nele como um importante termômetro das políticas de promoção da igualdade e justiça social no Estado...
O orçamento dos Estados é regulado por três leis: PPA (Plano Plurianual – de 4 anos, atualmente: 2008-2011); LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias – Anual) e LOA (Lei Orçamentária Anual, que integra os outros dois documentos, PPA e LDO). Este texto visa a analisar o principal dispositivo orçamentário, cujo papel é integrar e detalhar os outros dois, completando o ciclo orçamentário: a LOA/2008, publicada em dezembro de 2007 (Estado de São Paulo, 2007b). A lei é de importância visceral, embora sua análise conte com uma bibliografia, mesmo eletrônica, surpreendentemente escassa. Mercê do enorme poderio que o tucanato alcançou em nosso Estado?
Ao nosso leitor, precisamos avisar que nenhuma instância pode gastar o que não está previsto no orçamento – ele é apenas autorizativo – exceto remanejando-o entre despesas de um mesmo grupo (por exemplo: um órgão pode remanejar sobras orçamentárias para suprir necessidades insurgentes num mesmo grupo de despesa: de despesas de capital para despesas de capital), portanto, com uma margem de manobra reduzida no interior das próprias Unidades Orçamentárias. Em caso de transferência entre grupos de despesa (de investimentos para despesas correntes), demanda-se solicitação do Governo e sanção da Assembléia Legislativa. É possível, também, a abertura de créditos suplementares pelo Governo até o limite de 17% do fixado inicialmente2, considerando a dotação da “reserva de contingência”. Há também o crédito adicional especial (solicitação de créditos para uma ação inexistente na LOA original), e os créditos extraordinários (solicitados em caso de calamidade sem a necessidade de autorização legislativa prévia, conforme Velasco et al., 2005, p.29).
A LOA não nos mostra as despesas efetivamente realizadas, para o quê temos que acompanhar a execução orçamentária via site da Secretaria da Fazenda: http://www.fazenda.sp.gov.br/contas. Existe também o SIGEO (Sistema Gerencial de Informações da Execução Orçamentária), que proporciona dados detalhados, mas esse apenas é acessado com uso de senha, por funcionários autorizados da administração pública, deputados estaduais e o Tribunal de Contas do Estado, estando disponível para consulta da população em geral na Assembléia Legislativa (Nera, 2007). A Secretaria da Fazenda, o Tribunal de Contas e a Assembléia são considerados responsáveis legais pela fiscalização do orçamento. E, obviamente, nós, cidadãos comuns e movimentos sociais, excluídos e ignorantes acerca da maioria desses trâmites.
A LOA apresenta-nos os diversos órgãos da administração paulista, as fontes de receita, as despesas por categoria econômica (despesas correntes e de capital) e grupo de despesa (pessoal e encargos sociais, juros e encargos da dívida, outras despesas correntes, investimentos, inversões financeiras, amortização da dívida), funções (como saúde, educação, trabalho) e subfunções (assistência hospitalar e ambulatorial, ensino fundamental, ensino médio) em que a despesa se classifica. Tudo é dividido em programas, subdivididos em projetos, ações e atividades.
A primeira parte da lei apresenta uma classificação geral das despesas. A segunda, mais detalhada, o demonstrativo da despesa, com quadros indicadores dos programas (a partir de seu objetivo geral e público-alvo) e as ações que eles contêm (relacionando as ações e seus produtos, sua meta em números, o órgão responsável por sua execução, os recursos para cada ação). Outra seqüência de quadros apresenta funções, subfunções e programas X fonte de recursos. Na terceira parte, apresenta-se o orçamento fiscal de forma mais detalhada pela classificação funcional, programática, grupo de despesa e fontes de recursos. A princípio, dividindo-se entre os órgãos e unidades orçamentárias do Poder Legislativo, e, em seguida, do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Executivo. O mesmo vale para a apresentação do orçamento da Seguridade Social (cujos órgãos e unidades orçamentárias ligam-se apenas ao Executivo). A legislação da receita pública, alguns quadros comparativos de receita e despesa desde 2004, mais o orçamento de investimento das empresas estatais, complementam a LOA.

2. Método

Com um pouco de paciência e conhecimento dos códigos, conseguimos encontrar toda a previsão de gastos do Estado, embora não necessariamente, como veremos, essa previsão seja claramente definida ou inteiramente executada.
Para começar, precisamos dizer que existem problemas metodológicos para o levantamento dos gastos públicos com qualquer segmento populacional em particular (crianças, idosos etc): embora quase sempre indique o público-alvo das políticas, a LOA não as detalha. É difícil precisar de que modo certas políticas são destinadas a um dado segmento populacional, já que elas podem incidir de forma abrangente na população. De fato, nas previsões de gastos, parte do orçamento é invisível, isto é, refere-se ao abstrato termo “população em geral”: um hospital geral, por exemplo, atende pessoas de todas as idades. Por esta razão, Velasco et al. (2005), no Manual do Orçamento Criança (OCA), recomendam o levantamento de planilhas tanto de ações destinadas à criança e ao adolescente, quanto das que melhoram as condições de vida das suas famílias.
Nossa abordagem considerará tais diferenças, mas palmilhando um caminho distinto da metodologia OCA: desdobramo-la em dois focos: 1) análise da maneira com que os termos relativos às crianças e adolescentes surgem na LOA/2008, complementada pela inclusão de uma das subfunções que têm uma direta relação com crianças e adolescentes ; e 2) análise do orçamento destinado ao ensino fundamental e médio, que, utilizando-se do termo “aluno”, abarca um público-alvo prioritariamente constituído por crianças e adolescentes, comportando a mais expressiva soma de recursos que lhes é dirigida. A partir desse levantamento preliminar, acompanhamos a execução orçamentária de 12 de outubro de 2008 a 15 de fevereiro de 2009 através do site da Secretaria da Fazenda. Em fevereiro, o orçamento de 2008 já havia sido completamente liquidado.
No primeiro foco, utilizamos a ferramenta de busca do programa Adobe Reader 9.0, próprio a analisar arquivos em PDF, já que é neste formato que a LOA está disponível no site da Secretaria do Planejamento (ESTADO DE SÃO PAULO, 2007b). A partir desta ferramenta, os termos que mais surgiram em nossa pesquisa foram justamente “criança” e “adolescente”; palavras que se apresentam ao longo de toda a lei. Eliminamos, contudo, ocorrências desses termos como as da página 540, que indica as leis e outros dispositivos legais pertinentes ao orçamento da Secretaria das Relações Institucionais, mas sem definir a sua dotação orçamentária propriamente dita.
Para o efeito de identificar quais programas/projetos/atividades contém referências a crianças e adolescentes, quando as repetições de termos em diferentes programas surgiram nos diversos itens da LOA, tomamo-las como portadoras de uma complementaridade de informações, que procuraremos sintetizar nas Tabelas 2 a 7. Dadas as limitações de espaço para publicação deste trabalho, contudo, não pudemos incluir as tabelas nesta versão final. Caso nosso leitor deseje recebê-las, contudo, basta contatar a autora do trabalho através do e-mail pessoal especificado nesta primeira página, ou do acesso ao blog: http://www.infanciaurgente.blogspot.com. Procuramos, também, as palavras “infância”, “adolescência”, “recém-nado”, “recém-nascido”, “materno-infantil” e “pré-natal”. Este último termo foi localizado apenas uma vez, entre os programas/atividades que especificaremos no momento oportuno; os demais, nenhuma.
Para o segundo foco da nossa análise, simplesmente levantamos, na segunda parte da lei, os programas/projetos/atividades que contêm os gastos referentes ao ensino fundamental e médio, e complementamos a análise com as outras planilhas da LOA/2008 acerca do mesmo assunto. Em seguida, discutimos esses dados a partir de textos e referências no assunto “orçamento”, realizando operações aritméticas simples, como somatória e percentagem para montar as Tabelas 4 e 7.
Acreditamos que a maior virtude de nossa breve análise seja a de mostrar como as crianças e adolescentes ganham espaço nas políticas na esfera Estadual de São Paulo, e seu principal defeito, a necessidade de ser complementada por uma avaliação mais profunda dos impactos específicos dessas políticas para crianças e adolescentes. Entretanto, torcemos para que, futuramente, exista uma consolidação das práticas de acompanhamento do planejamento e execução orçamentária, e nos antecipamos com esta pequena peça ansiando para contribuir com uma futura avaliação histórica do orçamento dirigido à criança e ao adolescente. Este texto fornece, pois, mais do que uma avaliação quali-quantitativa da presença real do Estado junto à criança e ao adolescente, vislumbres do estilo pelo qual este segmento populacional aparece no orçamento público – fragmentos do modo como a gestão Serra optou por enfocá-lo no contexto de seu estilo político neoliberal. E o que vemos não é nada satisfatório.


3. Apresentação Geral


Num Estado cujo PIB, em 2006, somou R$ 802 bilhões (FUNDAÇÃO SEADE, s/d), os 10% mais pobres da população paulista vivem com 1 salário mínimo/mês, enquanto 2,3% dos mais ricos usufruem de mais de 20 salários mínimos/mês. A distribuição de renda em São Paulo é extremamente desigual, como podemos conferir nos dados da mesma Fundação Seade (2006). Os velhos e arrogantes mitos bandeirantes acerca da modernidade e riqueza do Estado parecem ajustar-se harmoniosamente ao fato de que boa parte da população paulista parece ainda desempenhar o antigo papel do indígena a ser morto ou explorado. A mitologia do progresso e a hipervalorização de termos como “inovação” e “modernização” nas políticas desenham uma ideologia tecnicista, agressiva e competitiva por parte do tucanato, tornando a peça orçamentária um documento perpassado pela linguagem do mercado: “modernização”, “eficiência”, “eficácia” e “efetividade” são termos bastante comuns na LOA.
A previsão de arrecadação do Estado de São Paulo, para 2008, era inicialmente de R$ 96.873.844.780 (Orçamento Fiscal e da Seguridade Social), mais R$ 9.264.698.164 em receitas intra-orçamentárias correntes (receitas transferidas entre os próprios órgãos da administração pública; especialmente, fundos previdenciários dos servidores), totalizando uma previsão inicial de R$ 106.138.542.944. As receitas, por fonte, são assim distribuídas:






Figura 1 – Distribuição percentual da receita: orçamento do Estado de São Paulo, exercício de 2008 (a partir da LOA/2008, p.22)


Figura 2: Distribuição percentual da receita: orçamento do Estado de São Paulo, exercício de 2008 (a partir do Partido dos Trabalhadores, 2007, p.A7)

A receita de tributos pagos pelo cidadão ao Governo Estadual está alocada nos quatro primeiros itens da legenda, na Figura 1. Destes, o item recursos “vinculados estaduais” é o mais difícil de determinar, pois contém tanto repasses constitucionais obrigatórios quanto recursos de outra ordem (por exemplo: a arrecadação local do Tribunal de Justiça com diligências judiciais, como disposto na página 134 da LOA/2008). Ao contrário do que o nome sugere, o bolo orçamentário gasto pelo Estado de São Paulo com os repasses exigidos por vinculações constitucionais obrigatórias, tais como a parcela municipal do IPVA, quando analisamos o todo da lei, não está alocado no item “recursos vinculados estaduais”, mas sim na fonte 1 “Tesouro do Estado” (ver Tabela 1).
Os recursos dessa fonte são orçados para fins ecléticos, como, por exemplo, “Crédito para expansão no agronegócio”, “Investimentos em reaparelhamento policial”, “Transferências a entidades”, “Conservação da malha rodoviária” e, como afirmamos, transferências vinculadas obrigatórias. Quase todo o dinheiro destes heterogêneos recursos aloca-se na Administração Geral do Estado, referindo-se às transferências de tributos para os municípios, dinheiro que, na despesa, aparece como um “inchaço” do item “Outras despesas correntes”. O valor corresponde a cerca de 19% dos 97 bilhões inicialmente orçados e, sobre eles, não há influência direta do Governo Estadual.
Podemos constatar, na Figura 2, a baixa participação dos gastos diretos com pessoal (39%), muito abaixo do percentual exigido na Lei de Responsabilidade Fiscal (60%). Boa parte do valor classificado como “Outras despesas correntes” destina-se a despesas de custeio (gastos gerais para manutenção: material de consumo, serviços de terceiros e gastos com obras de conservação e adaptação de bens imóveis), bem como transferências. O elevado montante encaixa-se na tendência geral da administração pública brasileira: os gastos do Poder Executivo dos Estados com custeio quintuplicou nos últimos 10 anos, enquanto as despesas com investimentos sofreram acentuado declínio na administração direta dos Estados (MANFRINI, 09/01/2009). Uma demonstração que, segundo acreditamos, tem relação direta com a absorção neoliberal da linguagem do mercado e seu modelo de gestão mais querido do momento: o toyotismo ou modelo japonês (baseado em OLIVEIRA, 2004).
O orçamento pago a Terceiros (Pessoa Física e Jurídica) soma R$ 9.711.745.258, perto de 10% do valor total do orçamento, mostrando uma terceirização maciça da mão-de-obra, em detrimento da contratação de funcionários por concurso público. Os órgãos da administração estadual direta e indireta têm adotado o critério sistemático de terceirizar as chamadas “atividades-meio”, ou seja, aquelas que não constituiriam a essência da ação pública (vigilância, limpeza etc) tendo criado inclusive um sistema de cadastro de terceirizados, o Cadterc . Mas, na esteira do Fórum Estadual de Defesa da Escola Pública (FEDEP, 2003) nós fazemos a crítica dessa política, da precarização do trabalho que acarreta, tanto no setor público quanto privado.
As “Outras despesas correntes”, quando visualizadas em relação com o Sumário de Despesa (LOA/2008, p.35), na qual se especifica um gasto de aproximadamente 53 bilhões de reais (sobre o valor bruto de 106 bilhões), mostram a importância do Estado na própria economia paulista: só em aplicações diretas orçadas são R$ 16.468.553.612. Se muitos fazem a infundada crítica da alta carga tributária brasileira , há que se reconhecer que tal carga, em nosso Estado, retorna em cerca de 50% para financiar a própria economia num sistema que, até onde sabemos, é de competição privado moderno, pois todo tipo de material e serviço comum tem sido negociado por pregão eletrônico. É como tributar a cadeia produtiva para depois reaplicar o dinheiro tributado em funções e serviços considerados públicos, mas realizados em parte dessa própria cadeia apta para tanto .
As fontes de receita mostram um estado pouco dependente de recursos federais (vinculados, majoritariamente, à saúde e à educação, embora também se destinem a outras áreas), os quais somam apenas 5% da receita total: um valor menor, no total do orçamento, que o da receita gerada pelas próprias instituições estaduais (6%). Todo o resto é composto por taxas, contribuições e impostos ao Estado.
Para melhor situarmos o drama do orçamento destinado à criança e adolescente em nosso Estado, mencione-se o Anuário Estatístico do Estado de São Paulo (FUNDAÇÃO SEADE, 2003), que contabiliza uma população de 13.282.721 pessoas até 19 anos, num total de 38.718.301 habitantes. O Estado, embora com a tendência ao envelhecimento, compunha-se, em 2003, por uma população ainda jovem. Entre 1993 e 2004, foi visível o aumento da presença da população juvenil, em especial entre 15 e 24 anos de idade (FUNDAÇÃO SEADE, 2006). É com os olhos nestes dados que precisamos considerar as virtudes e defeitos, as carências e os excessos postos pelas políticas estaduais em São Paulo.


4. O primeiro foco de análise


A partir da metodologia especificada, no nosso primeiro foco de análise, foram selecionados 13 programas/projetos ou atividades governamentais, que apresentaremos numa seqüência das Tabelas 2, 3 e 4 (ver Anexo), as quais contêm: 1) as observações sobre as políticas, retiradas do próprio texto da LOA; 2) os gastos de acordo com o grupo de despesa; 3) a relação entre a dotação orçamentária inicial e o liquidado até 15/02/2009.
A receita ultrapassou, de muito, o previsto: R$ 120.730.374.521, valor próximo de R$ 110 bilhões, se descontadas as receitas intra-orçamentárias. É de praxe haver alta da execução orçamentária no mês de dezembro. O ritmo da execução, contudo, foi regular no todo do orçamento: até outubro, 92% da receita arrecadada tinha sido liquidada. Entretanto, os 13 programas/projetos/atividades do nosso primeiro foco de análise tiveram média aquém dessa liquidação, variando em torno dos 45% até o referido mês, embora todos recebessem, predominantemente, um aporte de recursos do Tesouro do Estado (ver Tabela 3). Além disso, não houve nenhuma suplementação orçamentária, à exceção do “1203 - Formação Artística”. Os programas/projetos/atividades que ficaram no 1º foco de nossa análise tiveram, em média, apenas 80% de seu orçamento liquidado em 2008.
Nas Tabelas 3 e 6, sobressaem três aspectos: o baixo índice de investimentos, a baixa participação de gastos com pessoal e o acúmulo da despesa no grupo “Outras despesas correntes”. É razoável afirmarmos, pois, que a terceirização maciça também atinge esses programas/atividades. Um olhar de sobrevôo mostra-nos a tendência a lidar com as crianças e adolescentes das classes populares ou a partir de um pífio assistencialismo, ou do encarceramento (como constatamos no relato do Sistema Conselhos & Ordem dos Advogados do Brasil, 2006, pp.17-26), pois a internação via Fundação Casa contém os programas mais dispendiosos do primeiro foco de nossa análise.
Notamos, ainda, uma franca ausência de políticas dirigidas especificamente ao lazer/cultura na infância e adolescência. Existem apenas as “Fábricas de Cultura”, mantidas majoritariamente com recursos federais e baixíssimo orçamento liquidado até fevereiro de 2009 (11%). Além de a Fundação Casa receber o maior montante de recursos, liquida-o através de uma modalidade bastante flexível de relacionamento entre setor privado e administração pública: os convênios. Estes postulam uma coincidência de objetivos público/privados. No convênio, por exemplo, não há previsão de preço ou remuneração e sim mútua colaboração, sem exigência de procedimento licitatório (tal como regulam o Artigo 23 da Constituição Federal e o Artigo 116 da Lei Federal n. 8.666/93).
Uma outra ação não aparece na execução orçamentária: o Viva Leite. Em seu lugar, com o código 1308 do Programa “Segurança Alimentar”, consta o título “Alimentação e nutrição”. Sua execução orçamentária final foi bastante baixa (20% da dotação inicial). Não localizamos a execução de nenhuma atividade com o código anteriormente atribuído ao Viva Leite, fosse na função agricultura, fosse na função Assistência Social. O Viva Leite foi vetado na LDO/2009, embora conste no PPA/2008-2011, no interior do Programa Segurança Alimentar. O que houve? Várias hipóteses são possíveis: tratando-se de um programa administrado pela Secretaria da Agricultura, e cujo fim era também o fomento à produção de leite, foi julgado agora desinteressante para o financiamento desse segmento produtivo? Ou o seu slogan estava ligado ao do ex-governador Alckmin, do mesmo partido do atual, José Serra, mas seu inimigo político à época da elaboração do orçamento?
Apenas uma das atividades, a “Casa de Solidariedade”, menciona um “atendimento completo” a crianças. Mas só a 660 crianças e/ou adolescentes e com baixa dotação orçamentária. O programa “Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente” teve uma execução de apenas R$ 4,9 milhões, patamar extremamente baixo, dada a enorme soma do orçamento estadual (ver Tabela 4), precarizando consideravelmente a implantação dessas ações.
Também, apenas um dos programas, o Família Cidadã, menciona as crianças e adolescentes com foco nas famílias. Trata-se do único que se dá numa integração intersetorial, envolvendo a Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho e a de Assistência Social. Mas, além de contar com poucos recursos, sua execução orçamentária ficou em apenas 80% da dotação prevista.


5. O segundo foco de análise


No segundo foco, o de Ensino Fundamental e Médio, selecionamos 10 programas, que desdobramos em 53 projetos ou atividades (ver Tabelas 5, 6 e 7). O orçamento da educação não difere muito do primeiro foco de nossa análise: segundo a Liderança do PT (2007, pp.B1-B7), apesar do crescimento nominal de 12% da previsão de arrecadação de 2007 para 2008, o crescimento do orçamento foi de 10,42%. O índice dos investimentos previstos para tal área era de apenas 1,08%.
A fraseologia do PPA (Estado de São Paulo, 2008b) é vaga e abstrata no que se refere à educação, comprometendo-se com metas de melhora de 10% dos índices de desempenho dos Ensinos Fundamental e Médio nas avaliações nacionais e estaduais e a alfabetização de todos os alunos de oito anos de idade.
Note-se que o programa mais associado a investimentos – o de Expansão, Melhoria e Reforma da Rede Física Escolar – teve cerca de 30% do seu orçamento liquidado até novembro/2008, sendo, majoritariamente, de responsabilidade da esfera estadual de governo. Entretanto, houve uma súbita elevação da liquidação orçamentária neste programa, que foi de cerca de 30% para 450% da dotação prevista, entre outubro e dezembro. Pesou aí o ano eleitoral? Precisamos fiscalizar a qualidade, regularidade e continuidade da implantação desse programa.
A municipalização do ensino fundamental, mormente das classes de 1ª a 4ª séries, continua acelerada, com execução orçamentária de 93%. Evadiu-se da execução do orçamento a “Inclusão de Jovens e Adultos no Ensino Médio – EJA”, cuja meta consistia na continuidade da escolarização de 405.000 jovens. Outras ações receberam mais que o dobro, até mesmo o sêxtuplo de recursos previstos (caso da “Remuneração e Encargos dos Servidores – Ensino Fundamental – FUNDEB” e da “Provisão de Materiais de Apoio Pedagógico”); outros, somas expressivas (caso da “Contribuição do Estado à Educação Básica, Decorrente de Legislação do FUNDEB”). A execução orçamentária com o ensino fundamental e médio, no seu todo, ultrapassa em cerca de R$ 2.800.000.000 a dotação inicial, tendo, segundo cremos, origem nos excessos de arrecadação em 2008, pois a soma se aproxima do percentual constitucional obrigatório destes excessos, os quais a esfera estadual deve gastar, constitucionalmente, com educação (25%).
Em alguns casos, a execução orçamentária concentrou-se amplamente em dezembro: caso da “5743 – Ler e Escrever” (apenas 5% do orçamento executado até novembro, e 61% da dotação inicial executada em dezembro – com recursos provenientes do Governo Federal), ação que visa a corrigir problemas de alfabetização perpetuados no decorrer do Ensino Fundamental.
Confirmando um processo que já vinha sendo observado em anos anteriores, a Liderança do PT (2007, p.B3) nota uma redução da dotação orçamentária com a formação continuada dos profissionais de educação em mais de R$ 34.000.000 com relação a 2007. A execução orçamentária, cujos recursos originam-se da esfera federal e estadual, estava bastante prejudicada até novembro/2008: cerca de 48% para todo o programa “0808 – Formação Continuada de Educadores na Educação Básica”, com um maior prejuízo da capacitação para o ensino médio (apenas 10% do orçamento liquidado), não obstante conste, no PPA 2008-2011, que a Formação Continuada de Gestores e Professores seja uma das diretrizes para as políticas educacionais (Estado de São Paulo, 2007, p.47).
O meio de formação priorizado nessa política é virtual, via “Rede do Saber”, em claro detrimento da formação presencial: vem caindo sensivelmente a concessão de bolsas aos profissionais de educação (que baixou de R$ 12.375.620,00 em 2007 para a execução, em 2008, de cerca de R$ 9.000.000, apenas 53% da dotação inicial). A execução orçamentária acabou por corrigir parcialmente a baixa previsão de gastos, destinando mais de quatro vezes os recursos previstos inicialmente para o programa 0808 (ver Tabela 7), quase tudo executado no mês de dezembro, sendo que R$ 65 dos R$ 87.000.000 foram gastos com “Outros serviços e encargos – pessoa jurídica”. Quem ministrou a formação para os educadores? Com que regularidade e participação dos mesmos no seu planejamento foi realizada essa formação? Novamente, sublinhamos a necessidade de fiscalizar a qualidade dessas políticas implantadas com uma suplementação orçamentária tão alta e execução tão tardia.
A alimentação e o transporte escolares estão quase que inteiramente sob encargo do Governo Federal, tendo existido uma drástica diminuição da participação do Estadual com relação ao orçamento de 2007 (Liderança do PT, 2007, p.B5). Apenas 23% da dotação inicial para a capacitação na área de alimentação escolar foi executada, e precisamos ainda avaliar qual a participação das duas esferas de governo, fato de grande importância, pois as merendeiras não provêm de concurso público específico para a função. Critique-se, ainda, o baixo patamar nutritivo ambicionado para a alimentação escolar, de apenas 15% das necessidades diárias das crianças – a sovina fração do dia correspondente ao seu tempo de permanência na escola.
Um detalhe: conforme o FEDEP (2003), gastos com aquisição de merenda propriamente ditos não podem ser alocados na função “Educação” – e, no entanto, aí estão, como podemos conferir tanto na LOA quanto no site da Secretaria da Fazenda (http://www.fazenda.sp.gov.br/cge2/frptger0.asp). Cabe fiscalizar, ainda, a possível inclusão das despesas com servidores inativos que, segundo o FEDEP (2003, p.30-31), não poderiam ser classificadas como despesas educacionais pela legislação vigente.
O programa “Parceria Escola, Comunidade e Sociedade Civil” mostra plena continuidade da atividade “Apoio Técnico Pedagógico para Implementação das Parcerias”, que aumentou sua meta na LDO/2009 e teve efetiva execução de 91%, sugerindo que essas parcerias continuam com ativa expansão. A atividade “Dinheiro Direto na Escola – PDDE”, com recursos integralmente oriundos do Governo Federal e execução de R$ 24.622.071,00 em 2007, que aparece na LOA/2008 com dotação semelhante, não se mostrou ativa na despesa orçamentária, no site da Secretaria da Fazenda, entre outubro/2008 e janeiro/2009. Surgiu, contudo, em fevereiro, com execução próxima de 100%. Como se trata de um programa que confere relativa autonomia às unidades de ensino – que não são Unidades Orçamentárias, mas dependem das respectivas Divisões de Ensino – acreditamos que seja bastante importante acompanhá-lo e avaliar seus resultados.
A “Escola de Tempo Integral” desapareceu tanto da LDO/2009 quanto do PPA 2008-2011. A “Comunicação de Ações do Governo”, alocada na função Educação, teve todo o seu orçamento executado, configurando o perfil atualmente existente na gestão Serra: o orçamento 2009 mostra que os recursos destinados à publicidade dobraram com relação a 2008, alcançando o incrível patamar de R$ 313.000.000 (O GLOBO, 08/12/2008), volume de gastos que, excluindo-se a Fundação Casa, é maior que o de todas as outras ações dirigidas à criança e ao adolescente em nosso primeiro foco de análise. Assimetria curiosa se deu entre a “Implementação de Projetos Descentralizados nas Unidades de Ensino” e sua avaliação: a primeira ação teve 40% do orçamento executado no ensino fundamental e mais de 100% no ensino médio, mas a presumivelmente correspondente “Avaliação de Projetos Educacionais”, desapareceu da liquidação orçamentária.
Merece maiores esclarecimentos a própria meta ali disposta, de avaliação de apenas cinco projetos, pois eles apresentam-se em número de 1.393 na LOA/2008. Deslocou-se o código original para a ação “Suporte à Implementação Curricular” (no ensino médio e fundamental). Trata-se de uma ação que agregou os projetos previstos? Houve aumento do patamar de avaliação em dezembro? Aguardava-se o fim do ano para realizar as avaliações? E quanto à ação Desenvolvimento Curricular do Ensino Médio e Fundamental, cuja liquidação foi, em cada nível de ensino, de respectivamente 118 e 31%? Qual a razão desta diferença? Sabemos, pela LOA/2008, que a meta dessas atividades é meramente quantitativa: destina-se à aprovação de, respectivamente, 79,6 e 93% dos alunos nestes níveis de ensino, o que nos parece um tanto irônico num Estado célebre pela implantação generalizada da progressão automática. Parece que o objetivo já foi atingido sem a necessidade da política.
A concepção tecnicista do governo tucano expressa-se na quadruplicação da dotação orçamentária para a informatização escolar em 2008 (Liderança do PT, 2007, pp.B3-B4). Entretanto, uma das ações, a “Infovia-Escola”, com 80% de recursos do Tesouro e 20% do Governo Federal, desapareceu sem deixar rastros, embora se re-apresente na LDO/2009 e também no PPA/2008-2011. No que se refere à “Escola da Família”, sofreu fracionamento e queda abrupta: o orçamento liquidado em 2007 foi de R$ 109.498.393,00; o de 2008, de R$ 37.856.741,10 até novembro. Enquanto isso, a “Escola Aberta”, com liquidação orçamentária de R$ 36.445.246,38, apresenta o código 5146, anteriormente atribuído à “Escola da Família”. A “Escola da Família” consta da LDO/2009, não na condição de Programa, mas de Atividade, com meta idêntica a 2008. São enormes a assimetria entre planejamento e execução, ainda que seja no intervalo dos apenas doze meses constituídos pelo ano de 2008.


6. Ensaiando uma conclusão...


Não estamos defendendo nenhuma política que tenha contado com altos ou baixos índices de execução orçamentária: sua formulação, execução e prestação de contas merecem ácidas críticas. Acreditamos, entretanto, que as mudanças, muitas vezes tão abruptas, no decorrer do exercício orçamentário sejam extremamente nocivas para a implementação e controle das políticas públicas: flutuam de acordo com a conjuntura política, confundem seus operadores, os seus fiscais e prejudicam os direitos daqueles que, de algum modo, delas se beneficiam, criando interações kafkianas entre o cidadão e o Poder Público. Nossa análise acabou demonstrando que as características mais marcantes do orçamento público estadual de São Paulo, no que se refere às políticas para crianças e adolescentes, são a arbitrariedade, o encarceramento dos adolescentes através da internação na Fundação Casa e a carência de programas intersetoriais dirigidos à saúde, cultura e lazer. Qual o sentido do planejamento orçamentário se ele é mudado continuamente, inclusive no título atribuído às ações? Estão o marketing e o oportunismo político, à frente da cidadania? Por que alguns programas são executados, e outros não? De que modo isso se relaciona a uma avaliação das políticas? Todas as ações alocadas na função “educação” estão sujeitas à avaliação? De que modo as reivindicações populares se integram no planejamento orçamentário, considerando o perfil submisso, governista, de muitos Conselhos de Direitos?
Consideremos que políticas de curta duração não têm eficácia na promoção de direitos da infanto-adolescência: a proteção social especial e o ensino regular, por exemplo, demandam investimentos constantes e de larga escala, pois envolvem a formação de pessoal e mudanças culturais na forma como concebemos a infância e adolescência e com elas nos relacionamos, distantes que estamos das amplas, diversificadas e democráticas disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente.
No que se refere à educação, Saviani (1999, p.128-129) acerta ao considerar que apenas a prioridade da educação pública pode corrigir sua vergonhosa dívida. A começar pelo analfabetismo, estimado em 30% da população brasileira. Canadá, Noruega, Suécia investem respectivamente 7,5, 7,6, 8,7 e 8,8% do seu PIB em educação, mesmo contando com sistemas educacionais sólidos, populações em geral menores e um PIB proporcionalmente maior que o nosso (segundo o IBGE, no Brasil, em 1993, os gastos com educação corresponderam a 3,7% do PIB). Saviani defende que apenas atingindo ao menos o financiamento de 8% do PIB a educação no país pode, realmente, sofrer um choque qualitativo – em contraponto, o Plano Nacional de Educação, governista, aproximou-se de 6,5% em gastos com educação, mas incluindo, aí, os gastos privados (Davies, 2001). O Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade Brasileira (1997, p.51) – estipula os gastos em 10% do PIB. Precisamos nos organizar e exercer pressão popular para atingir esta proposta.
Saviani enfatiza, também, a necessidade de os governos estaduais construírem um amplo sistema de Ensino Fundamental coordenado nacionalmente, ao invés da crescente tendência à sua transferência para os municípios. Idéia que, ainda não consensual, demanda discussão popular.
Para finalizar: reiteramos nosso desejo de que este documento possa ser um passo para a fiscalização da despesa pública dirigida à criança e ao adolescente no Estado de São Paulo, cujo controle por parte da sociedade dita “civil” não vem sendo realizada com a devida seriedade – mercê do atrelamento de muitas entidades aos escassos programas e convênios existentes, e/ou da hegemonia que colocou cerca de 80% dos deputados da Assembléia Legislativa nas mãos do governador José Serra. É nossa tarefa enfrentar este fato e questionar essa quase-unanimidade que se sustenta há tantos anos, não pela luta e a crítica da consciência popular, mas pela força do conservadorismo, da propaganda, da repressão policial e de outras características culturais de nosso Estado que configuram uma conjuntura política mais parecida com Império que com República.

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