Nos olhares dos familiares a revolta, a dor enjaulada pelo tempo. No Tribunal a sensação de que a justiça só será feita com a organização popular
Nos olhares dos familiares a revolta, a dor enjaulada pelo tempo. No Tribunal a sensação de que a justiça só será feita com a organização popular
28/07/2009
Renato Santana,
de Santos (SP)
Marcos Rebello Filho tinha 26 anos quando foi assassinado com nove tiros de calibre 40 na noite do dia 14 de maio de 2006. Três tiros foram na cabeça. A ideia era surfar na manhã seguinte, razão pela qual foi ao encontro de um amigo, também morto, na Vila São Jorge, bairro da Zona Noroeste, periferia de Santos. Estava de férias. Ia usar uma de suas cinco pranchas, única herança para sua filha pequena. Um outro rapaz estava junto dos dois amigos. Correu ao receber os primeiros tiros. Terminou numa cadeira de rodas. Marcos também tentou correr. Atropeçou em um buraco. Estava no chão quando tomou os tiros. Enquanto recolhia as cápsulas, um dos assassinos levantou a toca ninja que usava, deixando à mostra a barba cerrada e parte do rosto. Policial da área, segundo testemunhas. Sem aviso, surge uma ambulância. Os corpos, sem vida, foram encaminhados ao Pronto Socorro. Nada de perícia. Era perto da meia-noite.
Dia 25 de julho de 2009. Igreja Margarida Maria, bairro da Areia Branca, Zona Noroeste, três anos depois. Tarde chuvosa. As rimas do hip-hop serviram de prece a Marcos e aos jovens assassinados por grupos de extermínio no Brasil, no primeiro encontro regional da Baixada Santista do Tribunal Popular – O Estado brasileiro no banco dos réus. Com o lema “Pela vida, por uma outra segurança”, a atividade contou com a participação de 150 pessoas, entre integrantes de diversos segmentos dos movimentos sociais, comunidades periféricas, além de mães e familiares de vítimas da violência.
Caso de Ednalva Santos, mãe de Marcos, e João Inocêncio, que carregou no colo o filho Mateus Andrade de Freitas, de 21 anos, depois do jovem ter sido morto com vários tiros, um deles na nuca, ao lado do amigo de 17 anos, Ricardo Porto Noronha. Dezenas de outras mães, pais, irmãos e amigos de pessoas assassinadas sumariamente depois dos ataques do PCC, em maio de 2006. Crimes sem investigação, sem culpados. Nos olhares dos familiares a revolta, a dor enjaulada pelo tempo. No Tribunal a sensação de que a justiça só será feita com a organização popular.
E esse é o objetivo principal do Tribunal: fazer justiça. Tanto que os depoimentos de assassinatos e execuções espalhados pelo país serão sistematizados nos encontros e organizados em um dossiê a ser entregue ao Ministério da Justiça, Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e Presidência da República. No próximo dia 8 de agosto acontecem as etapas estaduais do Tribunal e nos dias 13, 14, 15 e 16 ocorre a etapa nacional, na Bahia. A ideia é que este dossiê seja levado às mãos do presidente da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan.
Reabertura dos processos
“Boa tarde! Queria desejar boa tarde aos nossos inimigos que vieram. Nós sabemos que eles estão aqui”, denunciou Débora Maria da Silva da Amparo (Associação de Mães e Familiares de vítimas da Violência na Baixada Santista). “Arquivaram as mortes de nossos filhos alegando que era por conta de dívida com o tráfico e brigas entre facções. Mentira! O PCC tinha como alvo o Estado e não a comunidade. Nossos filhos foram assassinados e nós sabemos por quem!”, completou.
A história de Débora nos movimento sociais começa com a morte do filho em maio de 2006. O rapaz era gari. Varreu uma rua pela manhã e morreu nela de noite. Homens encapuzados, tiros na cabeça. O padrão. Daí os indícios de que são grupos de extermínio atuando com a participação direta de policiais. “Na comunidade nós sabemos até quem são os policiais, mas não há provas. Por isso é necessária uma investigação e o desarquivamento dos processos”, explica Débora.
Para o advogado da Defensoria Pública de Santos e São Vicente Antônio Maffezoli o argumento tem toda procedência. “Estamos ajudando as famílias preparando um processo com os crimes arquivados. Não houve intenção do Estado de investigar os casos”. Maffezoli aponta que todos os indícios levam a crer na polícia como responsável pelos assassinatos. “Além dos relatos temos a maneira como os jovens foram mortos. Tiros pelas costas, na cabeça e na nuca em ações idênticas em várias regiões diferentes”.
A intenção é que este processo seja encaminhado a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA. “Já tentamos fazer com que o Estado investigue, mas não teve jeito. Desse modo a Comissão avalia o processo e chama o governo brasileiro para negociar a abertura das investigações. Do contrário, o processo será denunciado para a Corte Interamericana dos Direitos Humanos e o Estado brasileiro pode ser condenado”, esclarece.
Corte de classe
Punição dos culpados, assumir a culpa, determinar indenizações e desculpa formal são alguns tipos de condenação. O Tribunal Popular quer muito mais. “É necessário mudar a política de segurança do país porque os grupos de extermínio ainda operam nas periferias e nada é investigado”, defende Débora. Para representantes do Educafro os assassinatos têm também um corte de classe. As mortes ocorreram e ocorrem majoritariamente nas regiões com baixo índice de desenvolvimento.
Segundo dados da Unicef, no Brasil há 60 milhões de pessoas abaixo dos 18 anos e 31% delas são de famílias pobres, além do que os jovens negros possuem 50% a mais de chances de morrer do que os jovens brancos. O IBGE dá conta de que 2 milhões de domicílios estão nas favelas. Já o Pnad aponta que 25% da população acima dos 15 anos é analfabeta. Em 2006, ano dos atentados do PCC, 67,5% dos jovens acima dos 15 anos estavam desempregados.
Sindicalistas estiveram presentes no Tribunal Popular com a campanha Contra a Criminalização dos Movimentos Sociais, encorpando as manifestações contra todos os tipos de violências praticadas pelo Estado.
Fonte: BDF
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