Veículo: Revista Fórum – Edição 76
Data: Julho 2009
Estado: SP
Por Marília Melhado
Era sexta-feira quando o catador de papel Alexsandro Júnior voltou para casa e não encontrou as filhas Sandy e Olga. Ele havia saído por alguns minutos para comprar o café da manhã da família. Depois de momentos de desespero, o catador soube por vizinhos que o Conselho Tutelar as retirou de casa. A esposa de Alexsandro não estava em casa para contestar a ação dos agentes – Marli acompanhava o filho Júnior a uma consulta médica no Hospital Santa Marcelina.
Júnior tinha acabado de receber alta quando a presidente do Conselho Tutelar, Márcia Major, também retirou sua guarda do casal de catadores. “Eles tomaram o meu filho dizendo que ele estava com sarna e que não cuidávamos bem dele”, lembra a mãe. Marli estava grávida na época e ainda ouviu de Major que assim que o filho nascesse também perderia a guarda do bebê.
Foram meses de luta para ter Sandy, Olga e Júnior de volta. Marli e Alexsandro visitavam regularmente as filhas na casa da criança – abrigo exclusivo de meninas –, mas não o filho mais velho, já que não sabiam onde ele estava abrigado. A família tinha apenas uma vaga informação de que Junior estaria sob os cuidados de uma “família hospedeira”. Numa das visitas às filhas, a presidente do Conselho recomendou ao casal que terminasse a reforma da casa e, assim, poderiam conseguir os filhos de volta. “Foi um sacrifício para terminar a casa e conseguimos. Mas, quando voltamos ao Conselho, eles nos disseram para mobiliar tudo. Comprar cama e armário.” Passados mais alguns meses, a casa tinha móveis, mas mesmo assim os filhos não voltaram.
Por causa da ausência de uma Defensoria Pública em Itaquaquecetuba, o advogado Izídio Ferreira de Freitas Silva foi nomeado pela seccional da Ordem dos Advogados do Brasil para defender a família. Depois de algumas audiências e um ano de separação, as meninas Sandy e Olga voltaram para casa. Mas Júnior não. Na defesa, o advogado argumentou que pobreza não pode ser determinante para perda do poder familiar dos catadores – norma prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A família ganhou o julgamento do caso das meninas, elas voltaram a morar com os pais. Mas, no caso de Júnior, nenhuma audiência aconteceu até hoje – e já se passaram dois anos de espera.
O advogado acredita que o caso do menino é mais complicado. “Creio que o processo possa estar atrasado porque parece que a família substituta já entrou com um pedido de adoção e o garoto foi totalmente segregado do convívio dos pais biológicos”, sustenta Freitas Silva. “O mais absurdo é que o menino tem direito de receber visita dos pais biológicos e nem isso está sendo cumprido. O Estado não pode ir contra os direitos da criança”, defende o advogado.
Uma gestão questionada
Desde 2007, quando um novo grupo de conselheiros tutelares assumiu o órgão, denúncias de irregularidades da gestão da presidente Marcia Major vieram à tona. Ao todo, 42 famílias pedem seus filhos de volta, mas apenas 17 têm processos correndo na Justiça. Emanuel Ingrao e Alice da Conceição trabalharam no Conselho entre 1998 e 2004 e foram reeleitos em 2007, quando descobriram os problemas na conduta do grupo que ficou à frente do órgão entre 2004 e 2007. Ingrao e Conceição contam que, entre os anos de 1998 e 2004, apenas cinco famílias perderam definitivamente o poder familiar, em oposição a 42 na gestão de Major.
Estas famílias alegam que as ações foram feitas de modo arbitrário e diversas mães acreditam que tiveram seus filhos tomados de maneira vexatória – principalmente por desconhecerem seus direitos de defesa.
Ana Iracema Forte Rodrigues é uma delas. Em fevereiro de 2007, Ana Iracema tinha acabado de dar à luz a filha Mariana quando uma assistente social do Hospital Santa Marcelina questionou-lhe se teria condições de criar a filha. “Disse que não, mas queria ficar com a menina.” Ana Iracema nunca mais viu a filha. Dois dias depois, um conselheiro tutelar a levou para um cartório. “Me fizeram assinar um papel. Pedi para ler, mas não deixaram. Lembro que disse: ‘dá minha filha de volta’ e o conselheiro só me respondeu que ia pensar no meu caso”, lembra Ana Iracema.
O advogado que, segundo Ana Iracema, cuida do caso, disse à reportagem que não é o responsável pelo processo e tampouco soube dizer quem o defende. Mas, depois de uma breve conversa sobre as arbitrariedades do Conselho na cidade, o advogado contou que a guarda da então recém-nascida Mariana foi julgada e concedida definitivamente para uma família da cidade de Mogi das Cruzes.
A gestão do Conselho Tutelar e, principalmente, o aval da promotora da vara da infância e juventude de Itaquaquecetuba foram questionados por uma junta de advogados da seccional da OAB, e os casos foram encaminhados para análise da Corregedoria Geral do Ministério Público (CGMP). Mesmo com diversos indícios de irregularidades, a CGMP arquivou o processo. Fórum tentou entrar em contato com a promotora de Itaquaquecetuba, Simone de Divittis Perez, e com a assessoria de imprensa da CGMP. Divittis estava em período de licença-maternidade e não pôde falar. Já a assessoria do CGMP retornou depois de duas semanas e encaminhou uma cópia do parecer do órgão sobre a conduta da promotoria da infância de Itaquaquecetuba.
Segundo o parecer, em todos os casos de retirada do pátrio poder as famílias tiveram direito à defesa. O documento ainda afirma que “a prova documental de cada processo [de retirada de filhos do convívio familiar] é farta quanto às péssimas condições em que viviam as crianças a justificar a perda do poder familiar”. Márcia Major, apontada como a principal responsável pelas arbitrariedades por todas as famílias ouvidas pela reportagem, não quis ser entrevistada, e se limitou a dizer que “as famílias estão mentindo e a mídia só está interessada em sensacionalismo”.
Para o presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, Vagner da Costa, a promotora da infância não cumpriu os trâmites necessários para endossar as ações do Conselho Tutelar. “Em muitos casos, as famílias dizem que o filho foi retirado sem motivos, ou então alegando maus-tratos. Mas, nos casos de maus tratos é preciso instaurar um inquérito, ter algum processo que comprove as acusações, mas não houve nada disso. Portanto, no mínimo houve uma inércia do Ministério Publico por não fazer esses processos contra às famílias que teriam cometido maus-tratos ou qualquer outro crime”, argumenta Costa. “Não há provas que justifiquem a retirada do poder familiar”, conclui. Costa ainda avalia que o CGMP não apurou as irregularidades com rigor. “Existe um corporativismo muito grande e infelizmente nenhum processo de réu pobre chega até o Supremo”, lamenta o presidente da seccional da OAB.
O defensor público Flávio Frasseto, coordenador do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública do estado de São Paulo, diz não ter acompanhado o caso de perto, mas pelas informações disponíveis pode-se dizer que houve irregularidades. “Na capital, casos semelhantes acontecem aos montes, mas de forma pulverizada. Em Itaquaquecetuba houve uma mobilização e, se não fosse isso, talvez estivesse oculto como em São Paulo.” Para ele, há uma falha não somente do Conselho Tutelar, mas também da própria Justiça. “Poderia haver um mecanismo de reavaliação rápida dessa decisão por meio de um simples despacho do juiz. Mas quase em todos os casos, diria que 98%, o juiz ratifica a decisão do Conselho.”
Alguns casos de retirada de poder familiar das famílias pobres de Itaquaquecetuba já completaram dois anos. Todas as mães ouvidas pela reportagem temem nunca mais ver os filhos perdidos. “Meu filho deve estar achando que eu não o amo e não quis ficar com ele. Isso é muito duro para uma mãe”, diz Marli.
O defensor público Flávio Frasseto, coordenador do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública do estado de São Paulo, diz não ter acompanhado o caso de perto, mas pelas informações disponíveis pode-se dizer que houve irregularidades. “Na capital, casos semelhantes acontecem aos montes, mas de forma pulverizada. Em Itaquaquecetuba houve uma mobilização e, se não fosse isso, talvez estivesse oculto como em São Paulo.” Para ele, há uma falha não somente do Conselho Tutelar, mas também da própria Justiça. “Poderia haver um mecanismo de reavaliação rápida dessa decisão por meio de um simples despacho do juiz. Mas quase em todos os casos, diria que 98%, o juiz ratifica a decisão do Conselho
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