O Brasil está sendo, nos últimos dois anos, palco de “comemorações” oficiais de datas que marcariam um processo histórico de avanço na construção de um “Estado de direito”. 200 anos da chegada da família real portuguesa e de uma suposta “modernidade” (que incluiu, como uma das primeiras medidas tomadas, a criação das polícias civil e militar); 120 anos da “abolição” formal da escravidão e da criação da república; 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (da qual o Estado brasileiro foi um dos primeiros signatários); 30 anos da “Lei da Anistia” e 20 anos da “Constituição Cidadã”, que significariam a superação do tenebroso período de violações de direitos e arbitrariedades aberto pelo golpe militar e civil de 1964.
Se analisarmos cada uma dessas datas, à luz da realidade social e política atual, só podemos concluir que pouco ou nada temos a comemorar. Até hoje os povos indígenas e afro-descendentes não foram alvo de verdadeiras políticas de reparação por séculos de escravidão, pilhagem e genocídio, e seguem sendo oprimidos e brutalizados, constituindo a imensa maioria dos pobres do país, dos sem-terra, sem-teto, moradores das favelas e periferias.
Repetidos relatórios internacionais colocam o Brasil como um dos países onde tipos graves de violações de direitos humanos (torturas, execuções sumárias, desaparecimentos forçados, etc) mais repetem-se e agravam-se, e são agentes do Estado (policiais, militares, etc) em grande parte dos casos os violadores.
Ao contrário do que vem sendo conquistado com muita luta e coragem em outros países da America Latina, no Brasil até hoje nenhum militar ou policial envolvido em crimes contra a humanidade durante a ditadura foi sequer julgado. Essa impunidade de criminosos do Estado do passado contribui para que os violadores de hoje sintam-se à vontade para continuar torturando e matando.
Sabemos que nada disso acontece por acaso. A violência de Estado e as contínuas violações de direitos são as formas historicamente escolhidas pelas elites brasileiras para manter uma situação de profunda e indigna desigualdade social e racial. Entretanto, a manutenção dessa desigualdade, que tem raízes no passado colonial e escravista, explode hoje em tensões sociais cada vez maiores e uma crise urbana sem precedentes.
A elite brasileira, aferrada aos seus privilégios indecentes, tem se utilizado, cada vez mais, do discurso da segurança pública para justificar a continuidade e aumento das violações de direitos. Ações bélicas e de extermínio nas favelas e periferias do país, aumento vertiginoso da população encarcerada (em prisões que são condenadas como umas das piores do mundo), intolerância e perseguição face a moradores de rua e trabalhadores informais, tudo isso tem se agravado nas últimas décadas e transformado a realidade da população pobre num verdadeiro inferno.
Na ausência de uma verdadeira discussão democrática sobre segurança pública, movimentos sociais, vítimas da violência e organizações defensoras dos direitos humanos, têm debatido há anos alternativas, e conseguido muitas vezes aprovar importantes diretrizes e disposições bem específicas, inclusive nas Conferências de Direitos Humanos oficiais, mas praticamente nada é levado em consideração pelo Estado, e por isso não sai do papel. Não obstante, podemos dizer hoje que importantes setores organizados da sociedade civil já têm consolidada uma outra concepção de segurança, fundada na defesa dos direitos humanos, e em particular no direito à vida, e compreendida dentro de um projeto maior de transformação profunda da sociedade.
Sem levar em consideração todo esse acúmulo de lutas e discussões, o atual governo federal, nos últimos dois anos, tomou iniciativas no sentido de por em discussão a questão da segurança pública, embora muito tardiamente, visto que esse debate foi abortado no início do primeiro mandato de Lula (devido a acordos político-eleitorais). Apesar dessas iniciativas recentes, a direção de todo o processo indica uma disposição em não mudar nada realmente. Em 2007 o governo anunciou e passou a implementar o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), e em 2008 convocou a 1a Conferência Nacional de Segurança (Conseg). O próprio “texto base” do Ministério da Justiça para a Conseg define o Pronasci como o “novo paradigma” que devem orientar as discussões e decisões da Conseg. Ou seja, as organizações da sociedade terão que limitar a discussão ao que já foi definido pelo poder público num plano de abrangência nacional já em execução, o que significa muito pouco sujeito a alterações, ou mesmo a ser rejeitado como um todo, como seria de se esperar numa conferência legítima e democrática.
Como se não bastasse isso, o regimento interno da Conferência, estabelece critérios que tornam necessariamente minoritária a participação dos delegados não vinculados diretamente ao Estado. Dos 2095 delegados previstos, apenas 40% serão constituídos de “representantes da Sociedade Civil eleitos nas etapas municipais e estaduais”; 60% serão divididos igualmente entre “representantes dos Trabalhadores da área de Segurança Pública eleitos em Etapas Estaduais e Municipais” (isto é, policiais, agentes penitenciários, etc) e “representantes do Poder Público (municipais, estaduais e federal) indicados”. Isso é uma distorção completa do conceito de conferências, visto que estas deveriam permitir que as proposições da sociedade sejam discutidas e aprovadas.
Como o Pronasci tem privilegiado, ao nível nacional, projetos e iniciativas mais voltadas para a lógica punitiva e repressiva (armamento, construção de prisões, etc), além do próprio governo federal ter contigenciado seus recursos recentemente (o que evidencia a falta de compromisso até mesmo com as migalhas oferecidas), não temos porque esperar que da Conseg saia algo a não ser uma tentativa de legitimação dessa concepção perversa de segurança que o Estado implementa há décadas. Nós mesmos temos levantar nossa voz e nos organizarmos para resistir.
No ano passado, setores da sociedade que têm sofrido essa situação e se dedicado a lutar contra ela organizaram o Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus, que desmascarou as comemorações oficiais citadas, e que se mantém hoje como uma rede nacional de denúncias e mobilizações. Por iniciativa dessa rede, estamos hoje chamando e convocando o Primeiro Encontro Nacional Popular pela Vida e por Uma Outra Segurança Pública, que terá seus encontros preparatórios estaduais em vários estados, e se realizará de 13 a 16 de agosto em Salvador (Bahia). O Encontro no Rio será nos dias 1 e 2 de agosto.
O objetivo do Encontro Popular é reafirmar as concepções e propostas já acumuladas pelo movimento popular e articular melhor nossa resistência ao nível estadual e nacional, apontando para ações concretas a serem realizadas nos próximos anos. Somente a luta organizada da sociedade, e principalmente dos setores que sofrem diretamente essa situação de violência, medo e opressão, será capaz de nos conduzir às verdadeiras transformações que precisamos.
Participe do Encontro Nacional Popular pela Vida e por Uma Outra Segurança Pública, mobilize sua comunidade e seu movimento!
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
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