Para especialista, Ideb não toca em pontos essenciais da formação do aluno
Por Luiz Henrique Mendes
O Brasil sofre de esquizofrenia em sua política educacional. Os métodos de ensino adotados na educação infantil e no início do ensino fundamental são completamente opostos aos métodos utilizados a partir da sétima série do fundamental e em todo o ensino médio. Essa é a avaliação de Rudá Ricci, diretor-geral do Instituto Cultiva e estudioso do tema. Para ele, a diferença entre os métodos adotados na carreira escolar é uma das principais explicações aos resultados do último Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), divulgados na última semana e que apontam lentidão nos avanços do ensino médio.
ci vê com preocupação a utilização do Ideb como única forma de avaliação educação. "O Brasil precisa dizer o que acredita, porque o MEC está querendo jogar goela abaixo que só existe um jeito de avaliar e quem é especialista nessa área sabe que não é verdade", diz. Rudá Ricci aponta um caos na formação dos docentes e discorda do modo como são estruturados os vestibulares. Para ele, o Brasil está "formando gente cínica, que estuda para a prova, mas não estuda para a vida".
A seguir, os principais trechos da entrevista que Rudá Ricci concedeu ao Blog do Luís Nassif:
Blog do Luís Nassif: De que forma o senhor avalia os resultados apresentados no último Ideb?
RR: Há uma melhora gradativa, ainda que lenta, em relação ao Ideb, principalmente no primeiro seguimento do ensino fundamental. Na medida em que vai se aproximando do ensino médio, os indicadores são piores. Os esforços brasileiros estão se concentrando muito no ensino fundamental, principalmente nas primeiras séries e na medida em que vai avançando na idade vão piorando.
BLN: Por quê? Li um post em seu blog atribuindo o problema a metodologia de ensino adotada.
RR: O problema é que o Brasil é um país esquizofrênico do ponto de vista da política educacional. Não é de agora. Isso é histórico no Brasil. Mas o problema básico é o seguinte: a educação infantil no Brasil é a mais bem qualificada do ponto de vista pedagógico. Ela se baseia em alguns autores clássicos, que é o caso do Piaget e do Henri Wallon, que são pessoas que sempre focaram estudos sobre desenvolvimento peculiar de cada criança. Na medida em que você vai aproximando do ensino médio, em função do vestibular brasileiro, que é um dos piores do mundo, ele focaliza na memorização, não focaliza na qualificação, no raciocínio, no discernimento, na interpretação. Então, na medida em que vai chegando perto do ensino médio, a partir da sétima série em diante, começa-se a ter uma influência muito forte das teorias comportamentais.
BLN: O vestibular é um dos principais responsáveis pelos resultados, então?
RR: A leitura que a gente faz sempre tem que ser ao contrário. Como é que o vestibular é organizado nas grandes universidades brasileiras, inclusive USP, as federais, Unesp, PUC? Cada área de conhecimento tem questões formuladas por departamento. Nesse caso, o chefe do departamento nomeia uma comissão. Essa comissão quase sempre está articulada politicamente a ele. Cada vez mais, as disputas de reitoria e departamento são muito fortes. Então, para isso tem que ter um grupo muito forte de base. Então, o chefe de departamento carrega consigo o grupo político-intelectual acadêmico que ele é vinculado. Esse pessoal tem a oposição dentro do próprio departamento.
Então, você imagina que o grupo de oposição no departamento fica tentando fiscalizar a produção do grupo que foi nomeado para achar erros. Há uma tensão muito grande na elaboração das questões, o que quase sempre impele a comissão de elaboração a fazer questões daquilo que tem mais segurança. E o que é aquilo que tem mais segurança? É a dissertação de mestrado e tese de doutorado. Por isso que nós temos questões no vestibular que não são muitas vezes descabidas.
O professor do ensino médio é super pressionado pelos pais para fazer os seus filhos ingressarem nessas grandes faculdades e universidades e ele recebe esse calhamaço de questões que muda todo ano. Os professores de ensino médio foram cada vez mais se especializando em estudar a lógica dos vestibulares e a desenvolver técnicas de memorização, que a gente acha que é traquejo mas que é tudo menor educação, é só instrução, é só memorização, tanto que algumas pesquisas recentes revelam que os primeiros colocados nos vestibulares mais importantes do Brasil, seis meses depois, se você aplica a mesma prova, eles não conseguem ir tão bem. Quanto mais próximo do vestibular, mais são descarregadas técnicas de memorização e é justamente nessa faixa etária que tem maior evasão escolar.
BLN: E como virar esse jogo?
RR: Bom, a primeira questão seria a gente tentar fazer uma ampla discussão no Brasil sobre qual é a concepção que nós temos. A nossa concepção é focada no resultado como nos EUA, no famoso currículo prescritivo, ou seja, independente das características dos alunos, o que me interessa é eles chegarem ao mesmo ponto, que é a visão taylorista da educação do século XIX.
BLN: Não chegamos a tocar nessa disucusão na Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada este ano?
RR: Sim e não. Essas questões são muito embutidas em questões maiores, mas nunca se discutiu claramente. O problema é que esses sistemas pedagógicos são muito complexos e muito teóricos. A disputa, no Conae, por exemplo, era política. Então, basicamente, o grupo da Receita Federal que queria que entrasse educação fiscal. Aí o pessoal da educação infantil que queria garantir o maior número de vagas. O pessoal ligado a Confederação Nacional dos Trabalhadores de Educação (CNTE) tentando garantir linha de financiamento mais claras, ou seja, as disputas são muito mais globais e macro do que chegando nesse nível de detalhe do ponto de vista pedagógico.
Em Minas, por exemplo, fui convidado para falar em alguns grupos, uma plenária grande da conferência estadual. Quando entrei nessas questões, o grupo não voltava para o plenário. São questões que todos sabem, mas ninguém quer discutir porque se entrar pesado nessa discussão, não tem partido, todos estão errados. Todos pensam do mesmo jeito. Os partidos estão pensando do mesmo jeito, porque com eleição de dois em dois anos não dá para você pensar questões de fundo na educação.
Aí vem o governo Lula com o pragmatismo que lhe é peculiar - a gente imaginava que poderia ser um pouco diferente, por ser de esquerda. Eles, na educação, jogaram pesado com a questão do Ideb. Qual é a idéia? Vamos melhorar de 4,7 para 6. O que está ocorrendo é que nos estados que querem melhorar o ranking, as superintendências ou diretorias regionais de ensino ficam pressionando os diretores para melhorar de qualquer maneira o indicador.. Ninguém pensa no aluno, ninguém pensa na família. A questão é melhorar o indicador.
BLN: Nesse sentido, o senhor é contra estipular metas na educação?
RR: Não sou contra. Eu só acho que a educação não pode se esvaziar daquilo que é peculiar. Educação significa estimulo correto, adequado, aliás, múltiplos estímulos para que a criança consiga se desenvolver do ponto de vista afetivo e do ponto de vista cognitivo. Todos os estudos demonstram que para essa situação do desenvolvimento da inteligência ocorra, existe uma série de fatores que concorrem para isso. Um deles é a família. Você acha que o Ideb está ajudando a pensar a família? Crianças que têm hábito de leitura em casa vem para a escola com hábito da leitura. Alunos que têm pais que não lêem não têm hábito de leitura. Você não pode dar aula de reforço igual. Você tem que criar um ambiente de leitura.
O Ideb não ajuda em nada. Quando chega o boletim do Ideb, é um desespero total do professor e aí vem problemas mais graves. Quais são? O professor recebe lá que sua escola está com 3,7 em língua portuguesa e aí eu pergunto: qual é o tempo que ele tem para melhorar a aula? Ele não tem tempo. Os professores no Brasil de ensino fundamental têm normalmente três jornadas.
BLN: Outra ponta desse processo, então, é colocar o professor numa escola só, melhorar salários?
RR: Exatamente. A primeira questão que eu estava querendo discutir é a concepção que nós temos. Nós queremos focar no resultado ou nós queremos focar na aprendizagem, porque resultado eu posso memorizar. Agora, aprendizagem eu preciso estudar o que é que o menino está tendo dificuldade e para eu estudar o que o menino tem de dificuldade eu preciso de mais tempo para o professor analisar, inclusive se formar, porque ele não sabe fazer essa avaliação diagnóstica. O Brasil precisa dizer o que acredita, porque o MEC está querendo jogar goela abaixo que só existe um jeito de avaliar. É mentira e quem é especialista nessa área sabe muito bem que não é verdade. Segundo lugar, para o professor ter mais capacidade de intervenção nesse processo, para melhorar mesmo o processo educacional, ele tem de ter dedicação exclusiva, igual professor de universidade. Ele não tem que só dar aula. Em um momento ele dá aula, no outro momento ele estuda as situações dos alunos e tenta avaliar soluções específicas.
Como é que a gente vai transformar a educação como se fosse a produção de um prédio? Educação é relação social, tem a ver com psicologia, estudos da neurologia. Nós não somos robôs, mas como fica muito mais fácil e politicamente tem certo acordão do PT com o PSDB que o melhor é você trabalhar em cima de indicador de avaliação externa diante de um ranking, então se esquece toda essa condição de trabalho que o professor tem em sala de aula.
O que eu estou querendo te dizer? Que a culpa sempre vai ser do professor. Sempre nós vamos falar 'a secretaria está fazendo', 'o MEC está fazendo', mas o professor, infelizmente, no Brasil, é uma porcaria. Aí o que é que vem? Tem pessoas como João Batista de Oliveira que querem implantar premiação para o professor que melhorar o Ideb, como se a culpa da melhoria ou não fosse do professor, mas é uma conjunção de fatores.
BLN: Mas o Ideb, em algum sentido, tem validade?
RR: Ele tem. Eu prefiro ter qualquer tipo de avaliação do que nenhuma. Qual é a principal avaliação, qual é o principal dado que a gente tem, que é positivo do Ideb? É que ele tira uma foto do momento. Ao saber o que o Ideb acha que é correto em matemática, em português, o que é o ideal, eu pelo menos tiro uma foto de cada estado, de cada município, de cada escola e por turmas. Eu sei o que está ocorrendo. Qual é o problema? É que eu não sei o porquê está ocorrendo aquilo. O problema é que educação não é foto, é filme.
BLN: O índice é quantitativo
RR: Ele é só quantitativo. Eu fico sabendo há anos que 30% dos nossos alunos não sabem interpretar e eu não sei o porquê. Ninguém me diz que o problema é hábito, que o problema pode ser dislexia. Ninguém fala. Se você perguntar para alguém do MEC, eles não sabem te dizer.
BLN: E como fazer outro tipo de avaliação?
RR: Se nós avançarmos para articular além desse tipo de instrumento de avaliação quantitativa, se a gente incluir instrumentos qualitativos, principalmente se nós tivermos a coragem de articular além do que ocorre no interior da sala de aula. Se eu conseguir articular com os outros elementos que contribuem com os alunos. Quais são? O que ocorre no intervalo de aula, quais são os projetos que os projetos desenvolvem com relação com as outras disciplinas, como é o ambiente daquele aluno na comunidade onde ele vive e na família. Se a gente conseguir a pesquisa quantitativa e classificatória com outros indicadores de caráter qualitativo e que consiga avaliar o processo de desenvolvimento da criança e do adolescente, eu não só terei a foto do que está ocorrendo, mas os motivos do porque aquele aluno chegou naquilo. Uma das coisas a gente sabe com essas pesquisas quantitativas é que quanto mais baixa a renda das famílias e menor o nível de instrução dos pais, pior é o desempenho dos alunos. Aí o que é que a gente faz? Aula de reforço. O que tem a ver uma coisa com outra?
BLN: A questão é a família?
RR: Claro, então eu tinha de ter programa integrados junto com a Assistência Social para trabalhar junto com a família. Lembra que o Cristovam Buarque queria fazer isso com Bolsa Educação? Agora, a gente coloca de maneira divorciada. Se eu não tiver condições sociais razoáveis para o aluno, se os pais estiverem brigando o tempo inteiro, a influência sobre o desempenho do aluno é imensa.
BLN: Os professores têm consciência disso? A formação dos professores tem dado esse escopo teórico para eles?
RR: Não, nada. Formação de professor no Brasil é um caos. Está caindo o número de estudantes universitários que estão optando por carreiras que habilitam para ser professor. O que está ocorrendo? Os cursos universitários focados na licenciatura odeiam pedagogia. Todos e os estágios são absolutamente desconsiderados. Há uma guerra interna.
Uma das questões mais fundamentais para o professor na carreira é ele saber avaliar. Professor da universidade não sabe avaliar e se ele não sabe avaliar, ele não sabe ensinar como é que avalia. Você tem vários instrumentos de avaliação. Não tem um só. No Brasil a gente só usa um, que é a chamada prova objetiva, que é aquela que você já tem a resposta antes. Então, o que estou querendo pegar de você com esse tipo de prova? Eu quero pegar se você memorizou. Mas e organização de idéias, interpretação de texto? Essa prova não pega. Então você vê que no Brasil a gente só pega avaliação de um aspecto que hoje a gente avalia que não deve significar mais do que 20% do total dos pontos de uma avaliação. Por quê? Porque uma verdade científica hoje não dura em média mais do que cinco anos.
Então, você jogar todo peso para avaliar se a pessoa está memorizando, sabendo que daqui a cinco anos grande parte do que ela memorizou não tem mais interesse, é um equívoco. Em qualquer curso que você dá de educação, a hora que você começa a falar para os professores, "vocês se envolvem em algum tipo de avaliação de prova operatória?", eles nem sabem o que é isso.
BLN: O que seria uma prova operatória?
RR: Prova operatória é o Enem, por exemplo. É quando você tem mais de uma variável que você utiliza e joga para o aluno a partir de uma situação-problema de tal maneira que você não sabe qual a resposta que o aluno vai dar. O que é que capta, portanto, a prova operatória? Ela capta organização de idéias e operacionalização dos conhecimentos. Um pouco memorização, mas nem tanto. Originalmente, quem elaborou o Enem foi um professor de matemática da USP chamado Nilson José Machado. O cara é genial. Ele se apoiou numa teoria de Harvard, que são as inteligências múltiplas. O Enem foi uma elaboração muitíssimo sofisticada no Brasil.
Então, tem que melhorar a qualificação? Claro, porque o professor perdeu os instrumentos básicos da profissão como é o caso de avaliação. Mas se eu der avaliação melhora? Não, porque o professor entra na sala de aula e não tem condições de aplicar o que ele estuda. A sala de aula é uma baderna, ele dá várias aulas durante o dia, absolutamente esgotado. Então, nós temos que mudar a condição de trabalho. E aí, mudando a condição de trabalho, dá então para desenvolver? Mais ou menos. O problema é que com os indicadores que nós temos ele é mais forçado a fazer reforço de aula com aluno do que resolver o problema efetivo do aluno. Então, é um ciclo que eu queria fechar.
BLN: Para a gente completar esse ciclo, vai precisar de recurso.
RR: Sim, precisa. De fato, para a gente dar um salto de qualidade, se a gente for fazer uma avaliação, nós teríamos que aumentar 50% a 70% dos investimentos que a gente tem atualmente. Mas o problema é que se a gente aumenta recurso para fazer o que se faz hoje, o resultado vai continuar pífio. O meu problema é de concepção. Nós estamos esvaziando o conteúdo educacional e caminhando para um conteúdo instrucional, não educacional. Não é para criar autonomia, é para criar resultado. Então, tira autonomia do diretor escolar, tira autonomia do professor e, como resultado, acaba tirando autonomia dos alunos. Aí, qual é o problema? O Brasil vai ser quinta potência na próxima década e nós não estamos formando líder. Nós estamos formando gente que é heterônomo, ele pensa pela cabeça do outro. Nós estamos formando gente cínica, que estuda para a prova, mas não estuda para a vida.
Fonte: Blog do Nassif
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