Infância Urgente

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Abuso e exploração sexual: Brechas na lei deixam criminosos impunes

Abuso e exploração sexual: Brechas na lei deixam criminosos impunes
Maio de 2008 - n° 83

Existem sete lacunas no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que dificultam a responsabilização de quem comete crimes contra meninos e meninas
Na noite desta quarta-feira (dia 14), a Câmara aprovou um Projeto de Lei que aumenta o rigor contra crimes sexuais e preenche parte dessas brechas. O texto, que estava paralisado há dois anos, vai agora para votação no Senado

Desde que não seja pego em flagrante, um cliente da exploração sexual de crianças e adolescentes tem boas chances de se livrar de uma condenação judicial. O mesmo vale para quem porta material pornográfico envolvendo pessoas com menos de 18 anos. Basta não repassá-lo a ninguém. Situações aparentemente absurdas como estas são possíveis porque existem sete brechas na legislação brasileira que dificultam – ou mesmo impedem – a responsabilização de pessoas que violentam sexualmente meninos e meninas. Fato que a CPMI da Exploração Sexual já havia alardeado quando tornou público seu relatório, em julho de 2004. Na época, os parlamentares apresentaram cinco proposições legislativas para tentar corrigir essa situação. Mas até agora apenas duas viraram lei.

A maior parte dos “buracos” decorre da antiguidade do Código Penal Brasileiro. Datado de 1940, ele foi instituído cinco décadas antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ser aprovado e trazer o conceito de meninos e meninas como sujeitos de direitos. Ademais, o Código está impregnado de valores machistas vigentes na época, o que também prejudica o combate à violência sexual. A necessidade de que a própria vítima ou um familiar faça queixa para que se instaure um processo é um resquício daqueles tempos. No caso de crianças e adolescentes, essa exigência – prevista no artigo 225 da lei – só traz prejuízos. “Hoje, no caso do abuso sexual, como o principal perpetrador é um membro da família, a retirada da queixa é muito freqüente”, diz a advogada Débora Azevedo, consultora legislativa da Câmara dos Deputados que trabalhou na CPMI.

“Para o início das investigações é preciso a representação familiar. Mas o ideal é que esta não existisse, dada a fragilidade da vítima. Se ficar a critério do pai e da mãe, eles podem sofrer influência do abusador”, explica Manoel Onofre, promotor da Infância e da Juventude em Natal. Ele lembra que em alguns casos investigados pela CPMI foi possível notar essa interferência. Nos crimes que envolviam grandes empresários e políticos, familiares retiraram as queixas frente a ameaças ou mesmo “presentes”.

Para evitar situações como essa, os parlamentares da Comissão propuseram o PL 4850 de 2005, que institui a ação penal pública para todos os crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes, impetrada pelo Ministério Público, independente da vontade da família. Pronto para votação no plenário da Câmara desde 25 de abril de 2006, o projeto foi finalmente votado e aprovado no dia 14 de maio último. Como recebeu emendas, o texto agora retorna ao Senado para nova apreciação.

Processo traumatizante
Aliada à barreira da denúncia, está a dificuldade para a produção de provas quando não há testemunhas do crime e a criança é a única fonte de informações. Os trâmites do processo judicial costumam ser extremamente cruéis com as jovens vítimas, principalmente quando correm em Varas Criminais comuns. A necessidade de diversas vezes contar o que sofreu – no Conselho Tutelar, numa delegacia, no serviço médico e mais tarde perante um juiz – traumatiza ainda mais a criança. Não raro, essa revitimização faz com que ela desista e se recuse a continuar, prejudicando o processo. Se a criança é muito nova, também há prejuízos, pois ela ainda não sabe expressar com exatidão o que aconteceu. “Quando a criança é a única testemunha, pelas peculiaridades da sua forma de comunicação, o nosso sistema de coleta de provas ainda não é adequado”, avalia a promotora da Infância do Ministério Público do Distrito Federal, Leslie Marques.

Existe uma metodologia que poupa a criança da revitimização ao mesmo tempo em permite a produção de provas. Chamada de “Depoimento sem Dano”, ela já é aplicada em nove cidades gaúchas, incluindo Porto Alegre. Na capital gaúcha, todos os casos de violência infanto-juvenil são atendidos nesse novo método, no qual a criança só é ouvida uma única vez e seu testemunho é gravado em vídeo, para ser anexado ao processo. O depoimento não é tomado em um ambiente opressivo como uma delegacia ou um tribunal, mas em uma sala decorada com temas infantis, com a vítima sendo assistida por profissionais especializados.

A adoção nacional do Depoimento sem Dano é objeto do Projeto de Lei 4126/2004, também da CPMI da Exploração Sexual. A proposição foi aprovada no plenário da Câmara em maio do ano passado e seguiu para o Senado, onde se transformou no PLC 35/2007. Atualmente encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça.

O método é um avanço no combate aos crimes sexuais. Mas, para os especialistas, terá impacto limitado caso não houver o aprimoramento de todas as instâncias pelas quais a criança passa. Se a vítima for levada para uma delegacia não especializada em proteção dos direitos infanto-juvenis – ou mesmo que seja, mas depois seguir para uma vara criminal comum – com certeza terá que depor mais de uma vez e sofrerá revitimização. “Uma das reivindicações da CPMI era a criação de varas especiais para julgamentos de crimes contra a criança. Isso pode ser feito sem mudanças na legislação”, explica a advogada Débora Azevedo. Hoje a maioria das comarcas do interior não têm nem delegacias nem varas especializadas, que estão mais presentes nas capitais e centros metropolitanos.

O tempo como inimigo
Outro empecilho legal no caminho daqueles que buscam responsabilizar os criminosos é a possibilidade do crime prescrever antes da sentença do processo ser proferida. Pelo artigo 109 do Código Penal, mesmo nos delitos mais graves, a prescrição ocorre após 20 anos do ocorrido. Com a morosidade característica dos processos judiciais, o risco de impunidade é grande. O caso da menina Araceli Sanches, que inspirou o 18 de Maio – Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual, é um exemplo emblemático dos efeitos dessa lacuna na lei. A menina foi violentada e morta em 1973 em Vitória. Na época, a influência das famílias dos abusadores, jovens da classe média-alta capixaba, fez com que todos se calassem e o episódio passasse em branco. Hoje, se alguém quisesse reabrir o processo e tentar punir os culpados, não seria possível, pois passaram-se 35 anos e o crime está prescrito.

Extinguir a possibilidade do crime prescrever era outro ponto do PL 4850 de 2005, da CPMI. O texto original do projeto mudava o artigo 109 do Código Penal, acrescentando um parágrafo que determinava a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, classe na qual o abuso e a exploração sexual se enquadram. Mas na discussão do PL na Câmara, esse trecho foi retirado porque houve um entendimento dos parlamentares de que a mudança seria inconstitucional.

Cliente não paga pena
Ironicamente, a maior falha, na avaliação de juristas e defensores dos direitos infanto-juvenis, não está no Código Penal de 1940, mas justamente numa alteração introduzida no ECA pela Lei 9.975, de 2000. Na época passou a integrar o texto do Estatuto o artigo 244-A, que prevê pena de 4 a 10 anos para quem submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual. O verbo empregado, “submeter”, é a fonte das controvérsias, pois faz com que, na interpretação de muitos juizes, o cliente da exploração sexual não seja passível de punição. Isso nos casos de adolescentes maiores de 14 anos. Porque, se a relação for com um garoto ou garota mais jovem, ele seria automaticamente enquadrado no crime de estupro de pessoas vulneráveis.

De acordo com Fabiano Silveira, assessor legislativo do Senado Federal que trabalhou na CPMI, uma das interpretações é de que “submeter” denota freqüência na prática do ato. O que se aplica ao explorador, que escraviza a criança, mas não ao cliente, pois usa de seus serviços eventualmente. “Essa é a interpretação dominante. Mas não é descartável você entender também que a pessoa que contrata o serviço é co-autora do delito, pois o art. 29 do Código Penal diz que é culpado quem concorre para o crime”, explica. Silveira salienta que a legislação já explicita a culpabilidade e as penas para outras figuras que colaboram com a prática, como os donos de hotéis.

O promotor de Natal, Manoel Onofre, destaca outra interpretação do verbo “submeter”, que favorece a impunidade do cliente: a de que o ato necessariamente tem que envolver coação da criança sob ameaça. “Numa interpretação superficial, parece que só está sendo explorada a criança que é obrigada. Mas há formas de exploração muito sutis, por meio de presentes e outros subterfúgios”. Como exemplo Onofre cita um caso que causou muito rumor na capital do Rio Grande do Norte no fim do ano passado. Um turista holandês abordou um adolescente de 15 anos numa praia da cidade, com uma conversa em tom amistoso e, mais tarde, presentes. O jovem foi submetido à exploração sexual. Mas como não se fez uso da força, o entendimento dos juízes foi de que o adolescente agiu por livre e espontânea vontade. O processo ainda não foi encerrado, mas as perspectivas são de que o explorador seja absolvido.

Para não deixar dúvidas sobre a culpabilidade do cliente da exploração sexual, o PL 4850 de 2005 inclui esse delito no artigo 228 do Código Penal, com pena de 3 a 8 anos de reclusão.

Guardar não é pedofilia
Os avanços tecnológicos contribuíram para defasar a legislação penal na área dos crimes sexuais. Quando o ECA foi aprovado em 1990, os legisladores nem sonhavam que um dia existiria a pedofilia via Internet. Eles correram para suprir essa lacuna e, em outubro de 2003, o Senado aprovou lei que muda o artigo 241 do Estatuto. Pelo novo texto, é punido com 2 a 6 anos de prisão quem “Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente”. Contudo, os parlamentares esqueceram de colocar a palavra “manter”, “guardar” ou “portar”. Como resultado, quem guarda imagens dessa natureza em mídia virtual não é passível de punição, desde que fique provado que essa pessoa não repassou o material a terceiros de qualquer forma. Fato que prejudica o trabalho de instituições como a Polícia Federal.

Especialistas consideram que punir os portadores de pornografia infanto-juvenil é parte importante do combate aos crimes contra crianças e adolescentes. “Se existe quem produz fotos e vídeos com crianças é porque há demanda. Tirar a liberdade do cliente portar o material é uma forma de solapar esse mercado”, argumenta a socióloga Marlene Vaz, que há mais de 30 anos pesquisa o fenômeno da violência sexual. Ela salienta que o ato de guardar imagens pode evoluir para a prática de buscar crianças e cometer abusos.

O Projeto de Lei 4851/05, proposto pela CPMI da Exploração Sexual, corrige essa deficiência, prevendo punição de dois a seis anos para os portadores. Aprovada na Câmara dos Deputados, a matéria seguiu para o Senado Federal em maio de 2007, onde recebeu o n° PLS 254/2004. Mas está parada desde então.

Outras ausências na legislação
Há dois tipos de crimes sexuais que não estão no Código Penal e que o PL 4850 de 2005, que agora aguarda aprovação no Senado, também busca incluir na legislação. Um deles é a “satisfação da lascívia mediante a presença de criança ou adolescente”. Ou seja, fazer com que uma criança presencie cenas de sexo entre pessoas adultas. A lacuna seria preenchida pela inclusão do artigo 218-B no Código, que estipula pena de 2 a 5 anos de reclusão.

A outra conduta criminosa é o favorecimento da exploração sexual de vulneráveis (menores de 14 anos). A prática já é prevista no artigo 244-A do ECA. Contudo, sua ausência no Código Penal atrapalha a punição de pessoas que, de forma indireta, contribuem para o crime. “A insuficiência da lei faz com que ela não abarque diversas figuras que poderiam atuar como mediadoras, como empresas turísticas e taxistas”, explica o promotor da Infância Manoel Onofre. Pelo Projeto de Lei da CPMI, aprovado na Câmara, seria criado no Código o artigo 218-C, suprindo essa deficiência. A pena prevista é de 4 a 10 anos de reclusão.

FONTE:WWW.ANDI.ORG.BR

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