Infância Urgente

domingo, 29 de agosto de 2010

Eis o Toque de recolher

Toque de recolher não evita tráfico em Fernandópolis

O consumo de drogas em Fernandópolis acontecia a céu aberto. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente diz que o toque de recolher esconde os problemas em vez de resolvê-los.



A polícia desencadeia uma megaoperação contra as drogas em uma cidade do interior paulista que ficou famosa por adotar o toque de recolher. Menores na rua, só até às 23h.

Fernandópolis fica no noroeste do estado de São Paulo, a 560 quilômetros da capital. E o consumo de drogas na cidade acontecia a céu aberto, pelas ruas da cidade.

Em imagens exclusivas do Fantástico, viciados explicam: “O melhor pó da cidade é esse daí. É o melhor pó da cidade.”

“Tem de 30 (reais) e tem de 50 (reais). De 30, é bom. Não vem muito, mas é bom. A de 50 também é da hora.”

Nossa equipe está agora em outra rua. É mais de meia-noite. Um grupo de quatro jovens se aproxima de um carro. Uma das moças divide a cocaína no capô do veículo e, em seguida, todos usam a droga. Em um minuto, eles vão embora, como se nada tivesse acontecido. Logo depois, em outro carro, mais um grupo usa cocaína.

Fernandópolis tem 60 mil habitantes - cerca de 10 mil com menos de 18 anos. Na tentativa de controlar o comportamento dos jovens, a Justiça impôs uma regra na cidade a partir de 2005.

Em Fernandópolis, existe o chamado toque de recolher. Jovem com menos de 18 anos não pode sair de casa depois das 23h. Ficar na rua depois desse horário, só acompanhado com os pais ou responsáveis.

Nossa equipe gravou os flagrantes mostrados em vídeo nos dias 30 e 31 de julho e 1º de agosto.

Quando anoitece, muitos jovens começam a se reunir na principal avenida da cidade. Motoqueiros se exibem. Depois das 23h, muitos menores ainda estão no local.

Foi bem perto da avenida, em ruas com menos movimento, que o Fantástico registrou os flagrantes da venda e do uso de drogas. Com uma câmera escondida, nosso produtor conversou com vários jovens.

Um deles conta: “O bagulho é no óleo mesmo. Desce com gosto de óleo diesel na garganta. O bagulho desce em cima”.

Os rapazes dizem usar drogas com frequência. Acreditam que a cocaína é pura. “Se for misturar, perde a clientela e ainda passa por errado. Porque aqui já não vem muito bom. Se misturar, você perde o pó. Perde o cliente, perde o pó, perde tudo”, explica um deles.

Aparece um homem de blusa vermelha. Ele é um traficante de 19 anos. Diz que morava em Santo André, na Grande São Paulo, e oferece cocaína: “Tem um negócio ali no meu capacete. Vou trazer pra você ver aqui. Espera aí”.

Dois minutos depois, o criminoso traz um papelote da droga. “Pode passar o dedo no bagulho, no ‘plastiquinho’ ali. Se puser na boca, você vai sentir, você vai saber, mano”, diz o jovem. Na sequência, o traficante e um dos rapazes consomem a cocaína.
Há quatro meses, policiais militares de Fernandópolis mapearam os pontos de tráfico e passaram as informações para os promotores que combatem o crime organizado. Em busca de provas, os agentes instalaram câmeras em vários pontos da cidade. Alguns flagrantes acontecem a poucos metros de distância. E nos grupos, há adolescentes que aparentem ter 15, 16 anos.

“Conforme o usuário já identifica o traficante, encomenda a porção, o traficante vai até o local da sua guarda e retira somente a porção. Muitas vezes, até em terrenos baldios. Fato que dificulta e muito uma abordagem policial, porque no máximo esse indivíduo vai ser enquadrado criminalmente como usuário, não como traficante”, explica o promotor de Justiça João Santa Terra Júnior.

Um carro foi usado na investigação e deixado em um ponto estratégico. Não demora muito e em volta dele se forma uma fila pra cheirar cocaína.

O Ministério Público tem uma explicação para esse tipo de cena: havia uma espécie de sociedade na compra da droga.

“Vários usuários, em razão do valor, se reuniam para comprar um papelote e no momento do consumo, o próprio traficante servia as porções de droga sobre o capô do veículo”, conta o promotor.

Segundo as investigações, dez menores foram identificados nas imagens gravadas pelos agentes do Ministério Público. Oito deles apresentam problemas graves.

“São adolescentes que já estavam com um comprometimento muito forte nesse ambiente de drogas e criminalidade. Alguns deles, inclusive, que voltaram de clínicas de recuperação, depois de nove meses, e nós fomos identificar aquele menino, de novo, naquela situação”, lamenta o juiz Evandro Pelarin.

Foi este juiz da Vara da Infância e da Juventude quem determinou o toque de recolher em Fernandópolis. Ele diz que o tráfico de drogas motivou a criação dessa medida, cinco anos atrás.

“É isso que fundamenta a nossa decisão para também recomendar que os jovens não fiquem nas ruas, que os pais não deixem os jovens nas ruas altas horas da noite.”, explica Evandro.

O diretor da Polícia Civil da região de São José do Rio Preto, responsável pelo Departamento de Combate às Drogas de Fernandópolis, estava em um churrasco neste sábado (28) e não quis gravar entrevista.

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente é contra o toque de recolher. Afirma que a medida fere o direito à liberdade e esconde os problemas em vez de resolvê-los.

“Não é a partir da repressão que nós vamos mudar a nossa realidade, mas é com diálogo e garantia de políticas públicas. Direito à educação, esporte, a saúde, à cultura, ao lazer, à liberdade de ir e vir e a convivência familiar e comunitária”, diz o presidente do Conselho Nacional pelo Direito da Criança e do Adolescente Fábio Feitosa.
Na sexta-feira (27) e no sábado (28), nossa equipe voltou a Fernandópolis, para acompanhar uma megaoperação contra as drogas.

Era meia-noite. Policiais militares e os promotores que combatem o crime organizado cercam Fernandópolis em busca dos traficantes. Agora, ninguém entra e ninguém sai da principal avenida da cidade. Mais de 130 pessoas foram abordadas. Um helicóptero ajudou nas buscas.

Dois menores que aparecem nas imagens consumindo drogas foram internados em um centro para jovens infratores. Depois da megaoperação, o Conselho Tutelar de Fernandópolis ficou lotado. Os adolescentes tiveram que explicar por que estavam fora de casa até tarde da noite.

Uma mulher dá uma bronca na filha na frente de todo mundo. “Seu pai não queria que eu viesse buscar você. O pai disse que era para deixar você aqui. Agora você sabe, né? Castigo. Vai para a escola e para casa, só isso”, briga a mãe.

Doze acusados de tráfico foram presos, todos são maiores de idade. Entre eles, está o rapaz flagrado pela nossa equipe oferecendo cocaína. Ele pode ficar até 12 anos na cadeia.

“Quem sabe agora sirva de exemplo a hora que um pai falar não faz isso ou aquilo, a ouvir mais, porque quando a gente dá um conselho para um filho, é para o bem deles”, explica Oslander Feltrin, pai de um adolescente.
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1616198-15605,00.html

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