Infância Urgente

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Exploração sexual de menores raramente resulta em processos, e as sentenças só chegam para 3% dos casos

RIO, FORTALEZA e MANAUS - Um homem de 70 anos aborda uma adolescente de 17 nas imediações do Estádio Castelão, onde será disputada a Copa de 2014, em Fortaleza. São 10h42m de uma quarta-feira de muito sol. Pelo buraco de um muro, os dois entram num terreno baldio, na movimentada Avenida Padaria Espiritual. É ali que ele desembolsa R$ 2 para tocar na garota.

O Código Penal ganhou redação mais rigorosa no ano passado e diz claramente: pagar para fazer sexo ou praticar ato libidinoso com menores de 18 anos é crime de favorecimento à prostituição de vulnerável. A pena, prevista no artigo 218-B, vai de quatro a dez anos de prisão.

" Para nossa tristeza, nem sempre o resultado é a condenação, porque as vítimas não comparecem em juízo e, quando comparecem, é para contradizer o que disseram na polícia "

Já era assim desde 1990, quando foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas divergências jurídicas sobre o texto levaram o Congresso a mexer no Código Penal, explicitando que a punição vale para cafetões, clientes e donos de motéis. Nas cidades brasileiras, porém, cenas de prostituição infanto-juvenil se repetem e pouca gente vai parar na cadeia.

Um levantamento do GLOBO em três capitais - Rio, Fortaleza e Manaus - revela que apenas 16 processos foram abertos no primeiro semestre deste ano: dez em Fortaleza, três no Rio e três em Manaus. As três cidades estão entre aquelas em que mais há denúncias de casos de exploração sexual de menores no Disque 100, o serviço telefônico da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

O número de condenações na Justiça é ainda menor: em Fortaleza, foram duas. Em Manaus, nenhuma. No Rio, o dado não está disponível, mas um balanço parcial do Tribunal de Justiça (TJ) indica que pelo menos duas sentenças foram proferidas.

Embora faltem estatísticas, é fácil concluir que o número de condenações é um retrato da impunidade. De janeiro a junho, o Disque 100 registrou 161 relatos de exploração sexual nas três capitais: 65 no Rio, 60 em Fortaleza e 36 em Manaus.

Os 16 processos abertos no mesmo período, portanto, equivalem a 10% dos casos denunciados. As sentenças, a 3%. Mesmo que metade das denúncias fosse falsa, o que não é o caso, embora existam relatos fictícios, o percentual de processos ficaria em 20% e o de julgamentos, em 6%.

Juiz critica a falta de dados

O caminho até a condenação tem a forma de um funil. Em Fortaleza, enquanto o Disque 100 recebeu 60 denúncias, a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente instaurou 21 inquéritos e o Ministério Público propôs 11 ações penais. A 12 Vara Criminal de Fortaleza, que só julga crimes contra crianças e adolescentes, sentenciou só duas pessoas.

- Para nossa tristeza, nem sempre o resultado é a condenação, porque as vítimas não comparecem em juízo e, quando comparecem, é para contradizer o que disseram na polícia. Exploradores as procuram e dão agrados às famílias - diz a juíza da 12 Vara de Fortaleza, Maria Ilna de Castro.

Manaus também conta com uma vara especializada. Foi criada em 2007, mas ainda não julgou nenhum processo de exploração sexual. Assim como em Fortaleza e no Rio, predominam os casos de abuso sexual: no primeiro semestre, foram ajuizadas 114 ações por estupro e atentado violento ao pudor, ante três por prostituição infanto-juvenil.

O juiz Luiz Albuquerque, de Manaus, diz que a desproporção não significa que a cidade esteja livre da exploração sexual:

- Se há, e há muita, não tem chegado a nós. Não tem tomado a forma de processo.

O julgamento é o último passo de uma investigação. Assim, as decisões tomadas no primeiro semestre de 2010 refletem a realidade dos últimos anos. Fortaleza é a cidade brasileira com maior número de denúncias de exploração ao Disque 100: 966, desde 2003, quando o serviço passou para o governo federal, até 30 de junho de 2010. O Rio aparece em terceiro, com 682, e Manaus em oitavo, com 333. As três capitais são destinos turísticos nacionais e internacionais. E serão sede da Copa de 2014.

No Rio, não há sequer vara especializada em crimes contra crianças e adolescentes - só contra menores infratores. Isso dificulta até mesmo a contabilização dos casos, já que as ações ficam espalhadas por 40 varas.

- A exploração sexual é um crime impune, porque o aparelho judicial não está preparado para receber esse tipo de denúncia. Sem instrumentos, não há como punir - diz o desembargador do TJ-RJ Siro Darlan.

Para descobrir o número de processos instaurados no primeiro semestre, no Rio, foi preciso analisar uma lista do TJ com todos os crimes sexuais e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Os casos de prostituição infanto-juvenil foram identificados mediante contato com as varas, considerando-se apenas casos já denunciados pelo MP. Ainda assim, há risco de imprecisão, porque processos com registro eletrônico ou etiqueta de um assunto podem, na verdade, tratar de outro. Em Fortaleza e Manaus, as varas especializadas divulgaram dados.

Temos informação para tudo, mas não para esse tipo de pergunta. Desinformação é sinônimo de negligência - diz Siro.

Em Fortaleza, a jovem de 17 anos usou os R$ 2 para fazer um lanche. O homem de 70 foi embora a pé. Como nas estatísticas do Rio, a prostituição dela e de outras adolescentes permanece invisível à Justiça.

Demétrio Weber e Sérgio Marques

Fonte: O Globo

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