1. O “toque de recolher”. Em 2005, a Vara da Infância e Juventude em Fernandópolis ordenou a observância de um “toque de recolher” no município, para evitar que crianças e adolescentes circulem sozinhos nas ruas após as 22 horas. Caso sejam encontrados vagando sem a companhia dos pais após esse horário, a decisão determina às Polícias Civil e Militar que conduzam as crianças e adolescentes às suas casas. O pais, nesses casos, estão sujeitos à multa prevista no artigo 249 de Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), se reiterada a “negligência”.
Neste ano, a Vara da Infância e Juventude adotou também a política do “toque escolar”, com o intuito de evitar que estudantes fiquem fora da escola em horário de aula. Caso algum cabula seja localizado nesse período, deve ser recolhido e encaminhado coercitivamente à escola. Assim como no “toque de recolher”, os pais respondem pela conduta dos filhos.
2. Opinião jurídica:
(a) Em primeiro lugar, as medidas adotadas em Fernandópolis contrariam frontalmente direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, notadamente pela norma do inciso XV do artigo 5º. A liberdade de locomoção é desprezada em favor de certo tipo de moralismo, que supostamente encontraria amparo jurídico no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
(b) É bom lembrar que o ECA, antes de negar, reforça essa proteção constitucional, quando a estende também à criança e ao adolescente. Ou não há uma norma expressa que lhes garante a liberdade de “ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários”? Pois é esse precisamente o teor do inciso I do artigo 16 do Estatuto.
(c) A liberdade de ir e vir - direito fundamental assegurado também às crianças e adolescentes - é cerceado tanto pelo “toque de recolher” quanto pelo “toque escolar”. Tais medidas partem da equivocada premissa de que o fato de encontrar um jovem fora de casa, após às 22h, ou longe da escola, no horário letivo, é motivo bastante e suficiente para que tenha castrada sua liberdade. Ou seja, é uma restrição sustentada, basicamente, por uma presunção automática de culpabilidade, que não corresponde aos princípios do Estado de Direito.
(d) No mais, medidas como essas, em que o Poder Público decide a priori quem pode e quem não pode frequentar o espaço público - e quando pode - são típicas de períodos de exceção. Assemelham-se a atos de polícia típicos de regimes autocráticos. Convém lembrar que “toque de recolher” é uma medida característica do estado de sítio. É admitido, constitucionalmente, em situações excepcionalíssimas, e justamente para defender os direitos humanos e a ordem democrática. Ora, se nem o legislativo municipal pode tomar esse tipo radical de decisão, o que dizer de um juiz singular? Seria a decretar a permanência, em âmbito local, do estado de exceção.
(e) A restrição do direito de locomoção não está entre as competências do Juiz da Infância e da Juventude previstas no ECA. O Estatuto estabelece que compete a essa autoridade judiciária disciplinar a entrada e permanência de crianças e adolescentes desacompanhadas dos pais em locais específicos, tais como bailes, boates e casa que explorem comercialmente diversões eletrônicas (art.149, I). Mesmo essas medidas devem ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral (art. 149, §2º).
Não há dúvidas de que tanto o “toque de recolher” quanto o “toque escolar” são contrários à lei, uma vez que têm caráter público e geral. Tratam da permanência no espaço coletivo, e não das vedações admissíveis em relação a certos lugares privados. Mesmo nestes casos excepcionais, a proibição deve ser estritamente fundamentada, para não se derivar para anacrônico moralismo, também este, porque expressa uma visão particular e subjetiva, contrário à norma objetiva de direito.
(f) No mais, o ECA prevê que o Conselho Tutelar deve ser comunicado pelos dirigentes dos estabelecimentos de ensino fundamental sobre reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, se esgotados os recursos escolares (art. 56,II). Isso quer dizer que a intervenção do Conselho Tutelar deve se dar com cautela e não pode ignorar a política adotada em cada escola para lidar com a situação.
(g) Em suma, a medida pode parecer, à primeira vista, uma tentativa de concretizar o ECA e de efetivar direitos básicos das crianças e dos adolescentes. Para edulcorar o radicalismo da restrição ao direito de ir e vir, alguns chegam a falar até “toque de acolher”! Ele representa, contudo, um cerceamento de liberdade que parte de uma concepção moralista e preconceituosa, segundo a qual o jovem que está nas ruas de uma município do interior é, sempre e necessariamente, perigoso ou está, inevitavelmente, em perigo.
(h) Há diversas situações em que os problemas relativos à esfera familiar podem e devem ser enfrentados por políticas públicas (basta lembrar a repressão à violência doméstica). O caso do “toque de recolher”, contudo, exacerba a autoridade do Poder Público. Manifesta não a responsabilidade estatal de cumprir obrigações de cuidado, mas sim um paternalismo autoritário recusado pela ordem democrática.
3. Estratégias à disposição da cidadania contra o arbítrio
(a) A primeira medida jurídica que pode ser tomada contra o toque de recolher é, naturalmente, a impetração de habeas corpus, ação constitucional justamente destinada a impedir ameaças à liberdade de locomoção.
Como estamos diante de restrição abusiva do direito de ir e vir de crianças e adolescentes de Fernandópolis, esse é o instrumento jurídico mais apropriado para pleitear a anulação da decisão judicial. No mais, o habeas corpus é aconselhável por ser um instrumento ágil e célere. Seria o caso de pensar num hábeas simbólico, que explorasse uma situação absurda, de flagrante exagero, que expusesse o autoritarismo inerente à medida.
Qualquer pessoa está legitimada a impetrar o habeas corpus, desde que haja interesse de agir em favor do direito de liberdade daquele que sofre ou está ameaçado de sofrer constrangimento à sua liberdade de locomoção (no caso, um jovem da cidade de Fernandópolis afetado pelo “toque de recolher”)1.
(b) É possível ainda que um terceiro interessado recorra da decisão judicial. Tendo em vista a necessidade de demonstração de interesse em recorrer, o recurso pode ser interposto por uma associação local, ou mesmo por membros mais democráticos do Conselho Tutelar.
(c) A arbitrariedade demanda respostas que extravasam o âmbito jurídico. A reação deve ser politicamente organizada e requer a mobilização da comunidade. Nesse sentido, algumas sugestões podem ser excogitadas:
(i) Articulação entre os diversos atores governamentais e não-governamentais organizados em torno da proteção da criança e do adolescente. É possível agregar a essa rede instituições como o Ministério Público e a Defensoria Pública, visto que ambas têm uma preocupação especial com a proteção dos direitos de crianças e adolescentes. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo possui um núcleo especializado em Infância e Juventude e tem se mostrado órgão muito mais aberto a inovações progressistas.
(ii) Dessa articulação podem resultar campanhas efetivas contra a implementação do “toque de recolher”.
(iii) A rede de mobilização social pode se organizar para divulgação de opiniões contrárias ao “toque de recolher” em jornais de circulação nacional, que sejam capazes de colocar o debate em pauta na sociedade.
Enfim, era o que nos ocorria no momento. Espero que ajude.
LUIZ ARMANDO BADIN
Advogado em São Paulo
Doutor em Direito pela USP
Um comentário:
Em São Joaquim da Barra, estado de São Paulo, perto de Ribeirão Preto também foi instituido o "toque de acolher". Conheço uma família cujos pais estão sendo processados, pois o filho de 16 anos estava apenas na companhia de amigos maiores, que bebiam. Mas de acordo com um funcionário da prefeitura que conduziu o menor para casa, o menor não estava bebendo. O menor foi advertido e os pais, que sofrem de grave depressão, estão sendo processados.
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