Infância Urgente

terça-feira, 31 de agosto de 2010

NOTA DOS EDUCANDOS E PARTICIPANTES DA COMUNIDADE DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO DE SALVADOR (CASE SALVADOR)

Os educandos internos e demais participantes da vida institucional da Comunidade de
Atendimento Socioeducativo de Salvador (CASE Salvador), unidade de internação de adolescentes do sexo masculino e feminino em cumprimento de medida socioeducativa e em internação provisória, reunidos por ocasião da celebração dos 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), se reportam às autoridades integrantes do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e Juventude para expor e requerer o seguinte:

1) no mês de agosto deste ano a CASE Salvador ultrapassou o número de 280 (duzentos e oitenta)adolescentes internos, quantidade muito superior à sua capacidade, o que além de por em risco a segurança e integridade física e psicológica dos adolescentes internos e dos funcionários,compromete sobremaneira a qualidade e individualização do atendimento prestado;
2) a superlotação deve ser necessariamente ajustada a limites de contenção pelas autoridades estatais (o que demanda encaminhamento judicial e, nesse sentido, é responsabilidade dos três poderes), a teor do artigo 125 do ECA – não há que se utilizar de escusas como a insuficiência de vagas para se manter a condição extrema de contenção de adolescentes na unidade, tendo em vista que os adolescentes privados de liberdade são sujeitos de todos os direitos humanos;
3) a cultura judicante no estado da Bahia tem contribuído para o encarceramento juvenil, em que pese a existência de poucos juízes e promotores especializados em matéria infracional, na medida em que há, também nesta data, diversos adolescentes privados de liberdade sem justificativa legal (posto que não praticaram atos infracionais com violência ou grave ameaça) ou estão há tempo superior ao recomendado pelos pareceres da equipe técnica interdisciplinar responsável pelo acompanhamento dos mesmos (contrariando-se os princípios da “brevidade” e da “excepcionalidade” da medida de internação);
4) há que se destacar, ainda, que há encaminhamentos de adolescentes para cumprimento de medida de internação na CASE Salvador por envolvimento com uso/abuso de drogas e por questões relacionadas a transtornos mentais, o que se revela numa estratégia equivocada e que não respeita o direito do adolescente ao atendimento especializado dos serviços de atenção e cuidado da rede de saúde numa perspectiva integral, contrariando-se ainda as orientações constantes da Lei de Reforma Psiquiátrica e do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária;
5) imperioso destacar a existência reiterada de diversas irregularidades de natureza jurídicoprocessual envolvendo adolescentes internos como vencimento do prazo de cumprimento da internação provisória e da internação-sanção, adolescentes sem definição de ultimação processual pela não realização de audiências, inexistência de investimento em práticas restaurativas, que acarretam em enorme prejuízo ao processo responsabilizatório por denunciá-lo uma justiça violadora de direitos;
6) há falta de estrutura da unidade para garantir direitos fundamentais como salubridade,arquitetura condizente com o documento referencial advindo da Resolução 119/2006 do CONANDA intitulado Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, o que, por si só, exige a internação de um mínimo possível de adolescentes nesse modelo institucional ultrapassado e precário;
7) os últimos meses têm sido marcados por reiterados tumultos, levantes e conflitos no âmbito interno da unidade, que historicamente têm se associado aos momentos de superlotação e extrema contenção, afetando a segurança de todos os que convivem na comunidade de atendimento e contribuindo para a desconstrução de uma cultura de paz e de garantia de direitos humanos que vem sendo construída institucionalmente pela FUNDAC nos últimos anos;
8) além disso, há grande estresse emocional, que afeta cotidianamente profissionais, familiares,membros da comunidade que participam de forma direta da vida institucional da CASE Salvador e, em especial, adolescentes, que têm prejudicada a sua capacidade de cumprimento da medida – acarretando a todos sofrimento mental e desgaste físico;
9) as recorrentes denúncias de violações afetam a CASE Salvador há décadas – em que pesem os recentes investimentos no sentido de se qualificar o atendimento socioeducativo no estado da Bahia - denunciam que o modelo de atendimento da referida unidade já deveria ter sido extinto há muito tempo, sendo a sua desativação imediata uma luta de todos aqueles que militam em favor da garantia dos direitos humanos dos cidadãos adolescentes a quem se atribua autoria de ato infracional;
10) finalmente, destacamos, numa postura que deve preconizar a garantia dos direitos humanos dos adolescentes privados de liberdade da CASE Salvador, que é dever da família, da sociedade e do estado, a teor do artigo 227 da Constituição Federal, assegurar a todos os cidadãos crianças e adolescentes a universalidade de direitos humanos fundamentais, pelo que devemos todos nós, neste momento, atuar numa postura efetivamente garantista e dissociada dos preconceitos, estigmas e discursos políticos que associam à superlotação da unidade à efetiva periculosidade
dos internos que ali cumprem medida (e da juventude como um todo), promovendo medidas
imediatas e emergenciais voltadas à diminuição do número de internos, por conta do iminente risco que condições extremas de superlotação como essas implicam.
Por todas estas razões, congregamos todos os atores envolvidos com a causa da infância e juventude, nas três esferas de poder, a focarem atenção para a grave situação da CASE Salvador, e agregarem esforços para a superação de sua triste realidade.
A legislação nacional (em destaque o ECA e o SINASE) bem como a internacional (Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, Regras Mínimas das Nações Unidas para Proteção de Jovens Privados de Liberdade, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), dentre outras) já apontam as soluções a serem cumpridas pelas Autoridades – necessário, portanto, que tais agentes se utilizem do poder
a eles investido para que, incorporados do espírito garantista do ECA, ajam promovendo as transformações urgentes e necessárias em favor dos adolescentes internos e de todos aqueles que compõem a comunidade de atendimento.

A redução do número de internos é uma demanda absolutamente emergencial para a garantia da integridade física e psicológica dos internos, exigindo-se a adoção de providências imediatas por parte das autoridades judiciárias, envolvendo e implicando todas as autoridades no cumprimento de suas obrigações legais.

As demais ações devem ser perseguidas e acompanhadas de forma atenta, voltada ao fechamento das portas da velha CASE Salvador, cuja história de violações de direitos deve ser sepultada.

Diante de tudo isso, todos os indicados a seguir e em especial a equipe de atendimento socioeducativo da unidade reafirmam seu propósito de continuar a atuar numa perspectiva de efetivamente contribuir para a ressignificação de vidas de todos os que convivem com a realidade da responsabilização de adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional, numa perspectiva de emancipação desses indivíduos para o pleno exercício de seus direitos e deveres
numa condição digna e cidadã.

Salvador, Bahia, agosto de 2010.

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