Infância Urgente

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Número de conselhos tutelares aumenta, mas estrutura ainda é precária

Pesquisa exclusiva da Andi revela que existem hoje, pelo menos, 5.772 conselhos no país (2010), um aumento de 23,94% em relação a 2006, quando havia 4.657. Porém, a falta de estrutura dos órgãos prejudica gravemente o atendimento prestado às crianças e aos adolescentes.

Em Alagoas, por exemplo, apenas 30% dos conselhos tutelares têm telefones. "No restante o que vale é o celular do próprio conselheiro", diz o coordenador-geral do Fórum Estadual dos Conselhos Tutelares de Alagoas, José Edmilson de Souza. Na Bahia, Uellington Sousa Rios, presidente da Associação de Conselheiros Tutelares do estado, afirma que a precariedade prejudica a apuração inicial das denúncias, fundamental para que seja possível dar o encaminhamento ao caso. "O estado é enorme e alguns conselhos cuidam de grandes áreas. Em vários municípios não temos carros e, quando existem, não há combustível. O mesmo ocorre com o telefone", lembra. "Não basta criar conselhos. Sem estrutura é como se não existíssemos".

Reportagem especial de Érika Klingl

A menina deu entrada no hospital de Aracaju levada pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Tinha sido vítima de maus tratos e os médicos de plantão fizeram o que manda a lei estadual: avisaram imediatamente o Conselho Tutelar da capital de Sergipe. Nesse momento da história, começaram os problemas relacionados a uma das principais ferramentas de proteção dos direitos criada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em 13 de julho deste ano completa duas décadas.

Apesar da existência do conselho tutelar – órgão que está sob a competência das instâncias municipais –, a falta de estrutura dificultou o exercício das funções dos conselheiros de zelar pelo cumprimento e absoluta prioridade na efetivação dos direitos. “A criança morava em Brejo Grande – a 137km da capital – e a notificação tinha que chegar lá onde estavam a família, a escola e todas as partes relacionadas aos direitos dela...”, observa Danival Lima Falcão, coordenador do Comitê Estadual de Enfrentamento a Violência Contra a Criança e o Adolescente.

“Mas, como fazer isso se os conselhos têm telefone, mas as pessoas não podem ligar. Se têm computador, mas não existe conexão de internet? Se não têm fax e assim por diante?”, pergunta. “Ficamos de mãos atadas por trabalhamos sem uma condição mínima necessária para fazer cumprir o que manda o ECA”, completa.

Precariedade em todo o Brasil

A realidade narrada por Falcão está longe de ser rara. Na verdade, é bastante comum entre os mais de 5.700 conselhos tutelares espalhados pelos quatro cantos do país. E a falta de estrutura dos órgãos tem influência direta no atendimento prestado às crianças e aos adolescentes.

Em Alagoas, por exemplo, apenas 30% dos conselhos tutelares têm telefones. “No restante o que vale é o celular do próprio conselheiro”, afirma o coordenador-geral do Fórum Estadual dos Conselhos Tutelares de Alagoas, José Edmilson de Souza.

Sem telefone e conexão à internet, não há comunicação. Sem um carro, por exemplo, os conselheiros não conseguem apurar denúncias de maus-tratos contra jovens ou, ainda, entregar ao juiz documentos nos prazos determinados. E sem lugar apropriado para atender as denúncias que chegam às sedes dos conselhos, a privacidade acaba posta de lado, o que fere também o ECA. “Em muitos conselhos daqui, os locais não são adequados e alguns chegam a dividir espaços com outros órgãos, separados apenas por divisórias”, completa José Edmilson.

Ivana Leal, secretária-executiva do Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente do Piauí analisa: “Frequentemente o Poder Executivo e o Judiciário oferecem pouca estrutura para o funcionamento destes conselhos, prejudicando principalmente o combate ao trabalho infantil e à exploração sexual de crianças e adolescentes nos municípios”.

Muitas etapas ainda devem ser cumpridas para que a rede de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes saia efetivamente do papel. “A falta de estrutura gera uma grita geral. Muitos conselhos não conseguem se comunicar com o restante da rede. Ficam isolados e sem conseguir cumprir todas as funções legais“, denuncia Conceição Nunes, secretária-executiva do Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará.

AVANÇOS QUANTITATIVOS

Mesmo com o cenário desanimador, 20 anos após a promulgação do Estatuto, os números relacionados aos conselhos tutelares dão sinais de que o primeiro desafio foi vencido: são poucas as cidades sem conselheiros. A realidade já é bem diferente daquela de cinco anos atrás. Em 2006, uma pesquisa da Rede ANDI Brasil revelou que 19 dos 27 estados brasileiros, o equivalente a 70% do total, não cumpriam a premissa legal mais básica: ou seja, não mantinham pelo menos um conselho tutelar em cada cidade.

Na ocasião, Piauí, Bahia e Maranhão lideravam a lista daqueles com a menor quantidades de conselhos. No primeiro, 61% dos municípios não dispunha de nenhuma instância. O território baiano vinha logo atrás, com ausência em 60% das cidades. Maranhão apresentava um déficit de 53%.

Hoje, dois levantamentos constatam clara evolução. O primeiro, desenvolvido pela ANDI junto aos CEDCAs – Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente de todas as unidades da Federação, em junho de 2010, mostra que existem, pelo menos, 5.772 conselhos no país, um aumento de 23,94% em relação a 2006, quando havia 4.657. Bahia e Piauí já conseguiram abrir conselhos em todos os municípios e o Maranhão diminuiu o déficit para 22% (veja tabela a seguir).

Um segundo levantamento, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta a presença de conselhos em 5.472 cidades no País. Ou seja, 93 dos 5.565 municípios brasileiros (o que equivale a 1,67%) não contavam com esse órgão em 2009. Vale destacar que os dados vieram da Pesquisa de Informações Básicas Municipais de 2009 e teve como objetivo apenas afirmar ou refutar a presença de pelo menos um conselho em cada cidade.

A ampliação no número de conselhos deveu-se, de acordo com Eliete Miranda, coordenadora de Gestão e Formulação de Política Assistencial do Amapá, à criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2005. “Os prefeitos receberam a exigência de criar e estruturar os conselhos tutelares para receber mais recursos e provar os gastos com a rede de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Isso acelerou o processo”, explica. Especialistas na área avaliam que, se por um lado, a medida foi positiva porque estimulou a criação de novos conselhos, por outro, trouxe alguns efeito negativos. Muitos conselhos tutelares foram criados com pressa, para cumprir o pré-requisito administrativo. O resultado, muitas vezes, foi o improviso e ausência de estruturas básicas para o funcionamento dessas instâncias.

FORTALECER OS CONSELHOS PARA PROTEGER AS CRIANÇAS

De acordo com Helena Oliveira, oficial de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente, vinte anos atrás, foi justamente criar os conselhos tutelares com o objetivo de assegurar a garantia dos direitos infanto-juvenis no nível municipal. “A ideia é que cada criança e cada adolescente tenha uma referência na sua comunidade na defesa dos seus interesses. Quando essa estrutura não funciona bem, todo o resto fica comprometido. Nosso esforço hoje é fortalecer essa estrutura, principalmente com a qualificação dos conselheiros e a responsabilização do poder público em oferecer condições mínimas para que seja realizado uma atendimento de qualidade às crianças e aos adolescentes".

Carmen Oliveira, subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), ressalta também a importância democrática desses órgãos. "A criação dos conselhos tutelares foi uma das maiores inovações do ECA. O conselheiro é um ouvidor comunitário, eleito pela sociedade”.

De acordo com a subsecretária, é preciso dar atenção à infraestrutura dos conselhos, mas qualificar os profissionais seria ainda mais importante. “Em 2005, realizamos uma pesquisa e a queixa mais frequente entre eles era a falta de capacitação. Cerca de 37% deram essa resposta”, avalia.

A partir dos dados, o Conanda e a SDH fizeram uma reorientação de suas ações, investiram na formação continuada, em parceria com as universidades, utilizando o ensino à distância. Mais de 3.500 conselheiros receberam instruções sobre temas como violência sexual, matrizes programáticas, marco legal e orçamento público.

A SDH também trabalhou na reformulação do Sistema de Informações para a Infância e a Adolescência (Sipia), que permite o registro e encaminhamento de denúncias. “Todo esse investimento no fortalecimento dos conselhos não é responsabilidade do governo federal. Mas, mesmo assim, temos destinado uma verba importante para a aquisição de computadores e veículos. Isso não tira a responsabilidade dos gestores municipais, é apenas um estímulo para que continuem fazendo o seu trabalho”, explica Carmen.

PAPEL DOS CONSELHOS TUTELARES

Além da estrutura precária dos conselhos, Conceição Nunes, secretária-executiva do Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará reclama também que nem todos os personagens da rede de proteção sabem quais são as reais funções do Conselho Tutelar. “Com frequência a Justiça, o Ministério Público e a própria sociedade exigem coisas que estão longe da alçada de um conselheiro. Não temos que sair à noite para fiscalizar bares ou distribuir cestas básicas”, exemplifica.

O ECA é claro: a função do Conselho Tutelar não é responder diretamente à demanda por direitos, mas sim zelar para que os atores responsáveis por ofertar os serviços efetivamente cumpram seu papel. Ou seja, denúncias de agressões de todos os tipos, de negação de atendimento médico ou falhas no sistema educacional, entre diversas outras reclamações, chegam regularmente a essas entidades. Os conselheiros tutelares são responsáveis por encaminhar – de maneira mais ágil e efetiva – as ocorrências aos órgãos competentes (Ministério Público, Vara da Infância etc) e acompanhar o desenrolar dos mesmos.

Também são eles que determinam medidas para a proteção da criança e as dirigem a programas sociais, quando necessário. Por isso os conselhos devem ser instâncias independentes, inclusive também para denunciar e corrigir distorções existentes na própria administração municipal, relativas ao atendimento a crianças e adolescentes. Suas decisões só podem ser revistas pelo Juiz da Infância e da Juventude.

QUEM FISCALIZA

É função do Ministério Público fiscalizar o cumprimento das funções estatutárias dos conselhos tutelares, evitando que o órgão seja utilizado para outros fins, como, por exemplo, na promoção político-partidária de seus membros. Destaca-se também a necessidade do Ministério Público exigir – dos órgãos responsáveis municipais – estrutura adequada de trabalho e capacitação técnica dos profissionais, que deve ser composta por equipe interdisciplinar: psicólogos, assistentes sociais e servidores públicos que garantam todo o suporte técnico para o pleno funcionamento dessas instâncias.

SISTEMA REGISTRA DENÚNCIAS

Para tentar melhorar o funcionamento dos conselhos, estados e união trabalham agora na ampliação e nacionalização dos dados do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência. O Sipia é uma ferramenta de registro e tratamento de informação sobre a garantia e defesa dos direitos fundamentais preconizados no ECA. Ele tem uma saída de dados agregados em nível municipal, estadual e nacional e se constitui em uma base real em todos os estados para formulação de políticas públicas no setor.

“Na ponta do Sipia, estão seres humanos. O Sistema depende do conselheiro tutelar que deve preencher de forma clara e correta todos os dados”, ressalva Marcos. “E sem uma boa internet ou o treinamento adequado, não adianta criar sistema algum. Tem gente que acha que mouse é um bicho novo e não tem a menor idéia do que ‘é uma planilha’”, completa.

“O sistema é válido e pode ajudar na análise de dados mas é necessário um olhar parcial porque ainda existem muitos problemas”, considera Marcos Kohls, coordenador do Serviço de Informação para Infância e Adolescência do Paraná. O estado é um dos mais avançados na implantação do sistema e trabalha desde 2000 com a sistematização de dados.

Mais informações: http://portal.mj.gov.br/sipia/

O que faz e o que não faz o Conselho Tutelar

O que faz

Atende queixas, reclamações, reivindicações e solicitações feitas pelas crianças, adolescentes, famílias, comunidades e cidadãos.

Exerce as funções de escutar, orientar, aconselhar, encaminhar e acompanhar os casos.

Faz requisições de serviços necessários à efetivação do atendimento adequado de cada caso.

Contribui para o planejamento e a formulação de políticas e planos municipais de atendimento à criança, ao adolescente e às suas famílias.

O que não faz

Não é uma entidade de atendimento direto (abrigo, internato etc.) a crianças, adolescentes e suas famílias.

O Conselho Tutelar é um órgão municipal, de natureza administrativa e não faz parte do Poder Judiciário. Não deve ser confundido com o juiz da infância e juventude e muito menos com a antiga figura do “comissário de menores”.

Não tem poder para obrigar o cumprimento de suas determinações ou punir aqueles que infringirem preceitos legais.

Não tem atribuições para julgar conflitos, tais como atribuir a guarda de uma criança a determinada pessoa, suspender ou destituir alguém do poder familiar.

Fonte: PróMenino e Publicação “Ouvindo Conselhos” (ANDI, 2005)

Saiba como denunciar ao Conselho Tutelar

Não há necessidade de identificação do denunciante, que poderá permanecer anônimo. No entanto, para que a denúncia tenha consistência e conseqüência, é importante que dela constem:

• qual a ameaça ou violação de direitos denunciada;
• nome da criança ou adolescente vítima de ameaça ou violação de direitos;
• endereço ou local da ameaça ou violação de direitos;
• ou, pelo menos, alguma referência que permita a apuração da denúncia.

O QUE DIZ A LEI

A criação dos Conselhos Tutelares está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta lei.

Art. 132. Em cada município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar: composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local para mandato de três anos, permitida uma recondução.

Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: atender as crianças e adolescentes; atender e aconselhar os pais ou responsáveis; promover a execução de suas decisões, podendo requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança; providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária para o adolescente autor de ato infracional; Parágrafo único – Se, no exercício de suas atribuições, o Conselho Tutelar entender necessário o afastamento do convívio familiar, comunicará o fato ao Ministério Público, prestando-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família.

Art. 137. As decisões do Conselho Tutelar somente poderão ser revistas pela autoridade judiciária a pedido de quem tenha legítimo interesse.

Fonte: ECA

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