Infância Urgente

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

As crianças de classes populares

De que forma as crianças das camadas populares lidam com a publicidade televisiva, mais especificamente com os comerciais de brinquedos? Foi à procura desta resposta que a pesquisadora Anna Karine Gurgel de Castro Alves resolveu estudar o assunto junto às crianças da Comunidade do Trilho, do bairro Aldeota, em Fortaleza.

Por meio da realização de grupos focais e entrevistas com crianças na faixa de 8 a 12 anos, Anna constatou que, desde muito cedo, esses meninos e meninas aprendem a lidar com o fato de não poderem ter os brinquedos que desejam, privando-se, até mesmo, de pedir seus objetos de desejo aos pais ou outros familiares. "Tamanha é a consciência da impossibilidade de obtê-los. Além disso, muitas vezes, ao elaborarem seus pedidos, as crianças fazem uma opção por objetos que possam facilitar, de algum modo, o desempenho de atividades no cotidiano, como a bicicleta para ir à escola", destaca.

Acompanhe a entrevista que Anna Karine concedeu com exclusividade ao site do RIO MÍDIA:


RIO MÍDIA - De que forma as crianças, especialmente as das camadas populares, lidam com a publicidade televisiva, mais especificamente com os comerciais de brinquedos?

Anna Karine Castro - De fato a publicidade é um dos meios que levam as crianças a refletirem sobre sua condição social. Como a televisão é o meio de maior penetração nas casas, independente de classe social, vemos que os receptores estão sujeitos a diferentes contextos e, por isso, a mensagem da TV terá diferentes significados culturais, de acordo com a realidade de cada um. Expostas diariamente àquela abundância de produtos ofertados a elas, as crianças das camadas populares têm de lidar constantemente com o contraste entre aquilo que vêem e o ambiente em que vivem. Na maioria das vezes, seus desejos são negados por seus pais ou responsáveis. Numa família de classe média, quando não podem comprar os brinquedos solicitados pelas crianças, os responsáveis alegam que os produtos são caros e que naquele momento não será possível efetuar a compra. Mas numa próxima ocasião - como natal ou aniversário - a criança acaba recebendo aquele objeto que almejava. Consideremos então uma criança de família menos favorecida economicamente que teve seus anseios várias vezes negados e que sabe que será praticamente impossível ganhar o brinquedo. É previsível que essa realidade gere significados específicos. O que mais me surpreendeu nessa pesquisa foi o fato de que, ao iniciá-la, achava que, ao refletirem sobre tais diferenças, as crianças produziriam sentimentos ou reações de animosidade ou até mesmo de revolta. Para minha surpresa, pude observar que elas conformam-se com essa restrição, pois, como muito cedo têm de aprender a lidar com o fato de não virem a possuir os brinquedos que desejam, elas privam-se, muitas vezes, de até pedir algo aos pais, tamanha é a consciência da impossibilidade. Além disso, ao elaborarem seus pedidos, as crianças tendem a optar por objetos que possam facilitar, de algum modo, o desempenho de suas atividades do cotidiano, como por exemplo, a bicicleta para ir a escola ou o tênis pro colégio, já que nem mesmo isso elas possuem. No entanto, a descoberta que mais me atraiu foi vislumbrar que tais crianças exercem muito mais sua capacidade de criação ao desenvolver novos brinquedos e/ou brincadeiras. Diante da impossibilidade de obterem muitos dos brinquedos desejados, as crianças desenvolvem grandes habilidades manuais, recuperando brinquedos quebrados, refazendo a roupinha dos bonecos, unindo objetos distintos para formar um novo brinquedo, expressando, assim, sua capacidade para criar e reinventar seus próprios brinquedos.


RIO MÍDIA - O nível socioeconômico de uma família, portanto, interfere no ato de brincar e nas brincadeiras das crianças?

Anna Karine Castro - Quando visitamos a casa dos meninos que estavam envolvidos nesse projeto, deparamo-nos com cenas raras nos grandes centros urbanos. Crianças andavam livremente pelas ruas da comunidade – essa pesquisa foi realizada com 10 crianças na faixa dos 8 aos 12 anos, residentes da Comunidade do Trilho, uma comunidade carente que atravessa a Aldeota, região nobre da cidade de Fortaleza – brincando de bicicleta, jogando bola, bolinhas de gude e até empinando pipa. Consideremos nesse momento dois fatores – dentre muitos – que acarretam esse quadro. Primeiro: as famílias são numerosas e vivem em casas pequenas, o que leva esses meninos a gastarem mais tempo em espaços abertos, ou seja, a rua. Segundo: a criação desses meninos é bem mais livre e desprendida de medos, diferentemente das crianças de classe média, criadas por pais apavorados com a insegurança e a violência do nosso país (realmente alarmante). Estes últimos optam por proteger seus filhos, mantendo-os em casa e munindo-os de muitos brinquedos. Pudemos perceber nas entrevistas realizadas que, embora o tempo gasto pelas crianças dos setores populares em frente à TV seja considerado muito (três horas diárias em média), elas dividem seu tempo entre a TV e as brincadeiras de rua. Azambuja, um dos autores utilizados em nossa pesquisa, quando reflete sobre essa realidade, afirma que, por mais que as crianças gostem de ver TV, elas ainda preferem brincar na rua como as crianças de “antigamente”. De fato, a infância tem mudado muito com o passar do tempo e as formas de brincadeiras são indícios dessa transformação. As brincadeiras antigas quase sempre são reportadas como maneiras pelas quais as crianças utilizavam-se de poucos recursos materiais para se divertir. Tivemos acesso a maravilhosos relatos de idosos que viveram a infância no início do século XX em Fortaleza (extraídos do livro de Celeste Cordeiro: “Brinquedos da memória: a infância em Fortaleza no início do século XX”) e pudemos constatar como quase tudo era artesanal: um jogo era formado a partir da junção de vários objetos, as bonecas de pano eram feitas pelas mães. As crianças brincavam muito nas ruas, de velocípede e de jogar pedra. Outro aspecto interessante foi observar que o nível socioeconômico da família já interferia no ato de brincar. Antigamente não havia grandes lojas e ofertas de produtos para o público infantil (e a publicidade televisiva era inexistente), mas já havia distinção entre os brinquedos das crianças das classes mais providas economicamente e os das que vinham dos setores populares. Nos depoimentos, os adultos e idosos afirmam que as crianças de famílias “ricas” ganhavam jogos vindos da Europa enquanto os “mais humildes” brincavam de “barra”, uma brincadeira de rua típica da época. No entanto, o mais valioso foi observar a semelhança das brincadeiras das crianças dos setores populares de hoje em dia com as das épocas passadas. Como já dissemos, por mais que as crianças dos setores populares almejem os brinquedos ofertados na TV, cientes da realidade de sua família, elas acabam desenvolvendo habilidades manuais, refazendo a roupa do boneco, formando um jogo com objetos usados e explorando de maneira especial o lado lúdico da brincadeira.


RIO MÍDIA - Muitos dizem que a publicidade 'pega pesado'. Que ela consegue atrair a atenção das crianças e impor o consumo. Mas alguns publicitários afirmam que não se pode culpar a propaganda. A questão é, dizem eles, vivemos numa sociedade desigual e injusta, onde há uma enorme concentração de renda. O que a senhora pensa a respeito?

Anna Karine Castro - Entre as principais correntes tradicionais da comunicação há dois grupos bem distintos: os apocalípticos e os integrados. Os primeiros acreditam que a sociedade torna-se apática e os indivíduos cada vez mais dependentes em suas formas de pensar e agir influenciados pelos meios de comunicação. E, como conseqüência disso, responde consumindo o que lhes é apresentado. Contudo, essa concepção apresenta um aspecto unilateral ao postular a sociedade formada por indivíduos sem escolha e dependentes dos meios de comunicação para adquirir seus conhecimentos. Os integrados acreditam no oposto. Para eles, os meios de comunicação promovem o desenvolvimento intelectual da sociedade, assim como são instrumentos a serviço do povo, por meio dos quais as pessoas mostram suas consternações. O renomado autor Umberto Eco afirma que o erro primordial em tais análises está em questionar os meios de comunicação a partir da dicotomia intransponível entre o bem e o mal, além de fundamentar as idéias, esquecendo-se do contexto socioeconômico em que a comunicação de massa está inserida. Os meios de comunicação certamente trazem novas possibilidades de discussão dentro das sociedades. Considerá-los somente como produtos mercantilizados e concentrados nas mãos dos que possuem o poder, com amplos poderes para produzir pessoas alienadas, é uma visão intolerante e passível de crítica. Por isso, culpar a publicidade pela “imposição” do consumo infantil é exagerado. Em contrapartida, é perceptível que as crianças são atraídas pelos apelos publicitários assim como nós somos. Nos relatórios de autores que pesquisei, bem como em minha própria pesquisa, as crianças afirmaram sentirem-se atraídas pelo que viam. As cores, os movimentos e as músicas são os elementos que elas mais apreciam. E todos esses recursos são artifícios usados pela publicidade para atrair o público almejado. Culpar a sociedade desigual e a concentração de renda significa também retirar da publicidade a sua responsabilidade no processo de conquista do público-alvo, levando-o a consumir.


RIO MÍDIA - Neste sentido, o que a televisão representa para as crianças das comunidades populares?

Anna Karine Castro - Um dos métodos utilizados nessa pesquisa para alcançarmos os objetivos almejados foi a realização de cinco grupos focais, ou seja, reuniões temáticas em que muníamos os meninos de papéis, canetas, giz e eles desenhavam livremente sempre a partir de uma questão provocativa. A primeira reunião, que teve o tema “Os meus brinquedos”, já nos evidenciou o espaço da TV no cotidiano dessas crianças. A maioria delas desenhou brinquedos clássicos, como bola, bonecos e carrinhos, porém, mesmo sem termos mencionado a televisão, alguns meninos a desenharam. Quando questionamos sobre aquele “brinquedo”, eles afirmaram gostar muito, o que nos leva a refletir que esses meninos consideram a televisão como uma brincadeira. Itânia Gomes, uma das autoras pesquisadas, afirma que as crianças não substituem as brincadeiras pela tela da TV, mas encontra nela outro brincar. Vemos isso claramente, já que nos momentos de lazer dessas crianças, a televisão tem espaço cativo. No terceiro grupo focal, cujo tema era “Os brinquedos da TV”, os brinquedos mais desenhados foram os mais presentes na mídia (da época) como videogame, skate, carro do Batman, bonecos do Dragonball Z, Power Rangers e Mortal Kombat. Nas entrevistas, último método utilizado, perguntamos se eles gostavam dos comerciais da televisão e quais eles apreciavam. Todos afirmaram gostar das propagandas dos brinquedos já citados (videogame e Power Rangers). Sendo assim, vemos a influência da TV sobre as crianças dos setores populares. Acho válido, no entanto, frisar que a televisão permeia o ambiente infantil e torna-se um outro brincar principalmente pela capacidade criativa que as crianças possuem, como por exemplo, quando, em suas brincadeiras, seus pais e irmãos são os reis, mocinhos, bandidos de suas histórias, o quarto é um esconderijo, a vassoura é um cavalo etc. Esse fantástico universo infantil deve ser relevante por ser intrinsecamente ligado à essência da criança. Contudo, podemos refletir que a inserção das novas tecnologias – como a TV, a publicidade e a internet – têm mudado os conceitos sobre o “brincar”, e, conseqüentemente, a imaginação infantil tem sofrido alterações.


RIO MÍDIA - Na sua avaliação, as crianças das camadas populares têm outro conceito de brincar/brincadeira do que as crianças das classes mais favorecidas?

Anna Karine Castro - Não, acho que elas têm vivências diferentes – como têm todas as crianças entre si – e oportunidades diferentes, mas a vontade e o prazer de brincar são os mesmos. Tem uma frase maravilhosa de Monteiro Lobato, em um conto chamado “A negrinha”, que diz: “Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma - na princesinha e na mendiga”. Li esse conto há muito tempo, mas no momento que vi essa frase fui tocada profundamente e acreditei tanto na verdade dessas palavras que nunca mais me esqueci delas. As crianças dos setores populares também têm acesso às novidades de brinquedos desse mundo hoje tão tecnológico, pois alguns deles conseguem ter esses brinquedos. Isso ocorre, normalmente, depois de muita economia de seus pais (ou até mesmo deles, como vi alguns desses meninos economizar no dinheiro do ônibus para comprar algo) ou porque ganham os produtos de segunda mão. Sabemos, entretanto, que as crianças das famílias de classes médias têm mais facilidade a esse universo das grandes lojas, permeadas de brinquedos cada vez mais cheios de recursos. Porém, se por um lado as crianças das famílias de classe média têm mais oportunidades de ter tais brinquedos, as crianças dos setores populares aproveitam a oportunidade de criar e recriar a partir do que têm. É claro que as crianças de classes médias também criam e trabalham de maneira artesanal, mas tal possibilidade é mais notória nos setores populares, como citei na primeira pergunta dessa entrevista. Outra realidade é que as crianças dos setores populares colocam como prioridade em seus pedidos até mesmo algo útil para o seu dia-a-dia. Durante o projeto, percebi que esses meninos almejavam um tênis para treinar futebol, ou uma bicicleta para não ter que ir mais andando para a escola. Por isso afirmo que, nesse sentindo, há dessemelhanças – pela diversidade do ambiente e da criação que elas recebem, por exemplo –, mas brincar é inerente à criança, independente de onde, como e quando ela nasceu.


RIO MÍDIA - Em nossa sociedade contemporânea, a infância está cada vez mais curta?

Anna Karine Castro - Acontecem grandes mudanças ao nosso redor diariamente, e a infância também se encontra em constante processo de transformação com o passar do tempo. É nítido que o que foi interessante para minha avó brincar já não foi pra mim. E o que foi para mim não é para a atual geração. Isso porque a tendência é existir cada vez mais informação e oferta, fazendo com que sejam gerados novos aprendizados e muitas vezes, uma precocidade no comportamento dessas crianças. Particularmente acho lamentável - sob alguns aspectos – tal precocidade. Um menino não precisaria experimentar vivências de um adolescente porque ele o será dentro em breve. Todos nós adultos sentimos um certo saudosismo do tempo que passou, da nossa infância tão cheia de liberdade e despreocupações. E como nos acalenta saber tudo de lúdico que vivemos! Por isso penso que não deveríamos estimular nas crianças um amadurecimento extemporâneo, a fim de que não deixem precocemente para trás um tempo que é único em suas vidas. Mas, ao refletir sobre isso, encontramos inúmeros impasses. Como fazer isso? Limitando o acesso à informação? Criaríamos pessoas alienadas e à margem do curso que se segue. E qual o ideal de infância, o de meus avós ou o da minha? Perceberíamos que muitas mudanças já ocorreram e os ideais devem ser revisitados constantemente. Penso que por mais que as mudanças ocorram e a infância não seja como idealizamos romanticamente, é válido refletir sobre um resgate de aspectos valorosos da nossa infância e da de nossos pais e avós. Aquilo que vale a pena manter, pois permite que a essência da criança perdure para sempre, seja atemporal.

Fonte:Boletim Rio Mídia
Texto - Marcus Tavares

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado pelo texto. Parabéns pelo blog. Acompanho diariamente. Att. Paulo