Infância Urgente

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Crianças e seu (des)lugar nas culturas

Por Regina de Assis


Participo de um grupo de profissionais dedicados à causa das crianças de 0 a 6 anos, que através da internet trocam informações, idéias e propostas, compartilhando, vez por outra das falas infantis. Uma delas bastante saborosa, dá conta do que uma criança comentou com sua mestra: "Professora, minha cabeça fala e canta comigo".

Esta inusitada descrição original, traz a todos nós a possibilidade de compreender os sentidos próprios que as crianças atribuem a si e às suas relações com a vida e o mundo.

No entanto, descrições, impressões, curiosidades, medos ou ansiedades e conquistas infantis só têm lugar quando há um outro - adulto, adolescente ou criança - disposto à escuta interessada, às relações afetivas e ao diálogo que constitui significados, provenientes das trocas entre sentidos muito particulares.

A criação do que Bakhtin (1985) chamava de gêneros discursivos, vitais ao relacionamento afetivo e ao entendimento de pais, responsáveis, professores e outras pessoas significativas com as crianças, é o que permite o reconhecimento das características específicas da infância, de seu tempo e de seu espaço na vida humana.

A memória gerada por estas trocas significativas, através dos signos, das palavras, constitui para as crianças a consciência de quem são na diversidade de situações vividas.

As diferentes estratégias exigidas pelos diálogos entre crianças e adultos transformam suas próprias relações culturais, influindo sobre suas maneiras de conviver e constituir suas identidades, seus conhecimentos e valores.

No entanto, neste mundo globalizado, cheio de contradições para a vida humana, ora provocando sua desumanização, devido à lógica selvagem da economia de mercado, ora unindo e colocando em rede habitantes das mais longínquas partes do planeta, observa-se que um fenômeno vai tomando novas formas: o do desaparecimento da infância e de sua falta de lugar nas culturas contemporâneas.

A obra do historiador Philippe Ariès (1978), que há cerca de 30 anos gerou muitas discussões ao analisar o "sentimento de infância", buscando definir a "descoberta da infância" por meio das características da família medieval e suas modificações, até chegar à família moderna, ainda é atual, porém provoca outras interpretações sobre o que vivemos agora, no início do século XX1 e do terceiro milênio da história humana.

Se Ariès mostrava naquela obra que as crianças, nos primórdios de sua "descoberta", ainda eram entendidas como adultos em miniatura ou então como bibelôs, nos contextos sociais, culturais e econômicos dos períodos históricos estudados, poderíamos dizer que – guardadas as proporções destas análises – na atualidade nossas crianças continuam, como antes, sendo um simulacro dos adultos e, muitas vezes, objetos de exibição.

Um curta-metragem brasileiro A invenção da infância, produzido no ano 2000, defende a tese de que, "ser criança não significa ter infância", mostrando um cenário contrastante, onde crianças brasileiras de diferentes regiões em certo sentido comprovam as descobertas de Ariès. As práticas sociais e econômicas do trabalho infantil, da violência contra as crianças, do erotismo e do consumo precoces exibem a imagem grotesca de seres humanos cuja infância é forçadamente encurtada ou levada ao desaparecimento.

Outro filme, intitulado Crianças Invisíveis, uma co-produção internacional em que várias histórias são apresentadas em diferentes contextos geográficos e culturais, também mostra o quanto ser criança na contemporaneidade é um fato que começa a rarear e tomar novos contornos.


Há vários outros exemplos propostos pelo cinema ou pela televisão, porém estes dois são bastante eloqüentes e contemporâneos ao polemizar se atualmente as crianças têm sua infância reconhecida e respeitada pelos adultos.

É oportuno considerar que, a partir da conquista da autonomia cidadã pelas mulheres, após ter seus direitos negados por séculos, houve uma transformação no núcleo familiar. Este deixa, gradualmente, seu aspecto vitoriano de família nuclear para assumir uma variedade crescente de alternativas, inclusive, a de famílias monoparentais e homossexuais.

O papel de provedor do pai passou por alterações, uma vez que as mães também começaram a contribuir para o sustento da família. Nesta perspectiva, uma outra circunstância que se universaliza - não só em nosso país, mas em todo o mundo - é a da ausência crescente da figura paterna permanente.

Há uma alternância de pais substitutos ou simplesmente as crianças pequenas passam a depender, quase que exclusivamente, de um universo feminino, tanto nas famílias, como nas creches e escolas de educação infantil, onde ainda são muito raros no Brasil, professores do gênero masculino.

A vida em família nos contextos urbanos brasileiros passou a exigir cada vez mais uma disciplina estrita, seja nas de renda baixa ou média, impondo longas horas de trabalho aos pais e responsáveis, que, ausentes dos lares, nem sempre dispõem de outros adultos para cuidar das crianças pequenas, educando-as e atendendo-as.

Neste cenário - que, em circunstâncias mais favoráveis, pode ter vários aspectos positivos, com o aumento das possibilidades nas quais as crianças se tornem mais autônomas, responsáveis e solidárias por terem que conviver em diferentes contextos sociais e culturais com outras crianças e adultos - surge a influência da mídia audiovisual, e mais recentemente, digital.

O poder de atração das imagens em movimento, dos efeitos sonoros e visuais e da suspensão da realidade fascina as crianças desde bem pequenas, convivendo assim com outras formas de afetos e satisfação, mesmo que virtual, de desejos e necessidades.


No contexto cultural gerado pela mídia audiovisual e digital, cada vez mais atraente pela interatividade que proporciona, os processos afetivos, sociais, cognitivo-lingüísticos e motores passam por novas alternativas de mobilização, que influem sobre a constituição das identidades infantis e de seus conhecimentos e valores.

A voracidade do mercado de mídia centra seu foco cada vez mais sobre as crianças pequenas, entendidas como consumidoras em potencial ou indutoras de consumo por parte dos adultos.

Em 2006, num relato apresentado por um profissional de mídia inglês, revelou-se que o público-alvo preferencial para a publicidade sobre roupas, brinquedos e alimentos era o das crianças de 3 anos de idade. Isto porque já falam, andam, demonstram suas preferências, são "engraçadinhas" e encantam aos adultos com suas manifestações .

No entanto, tais roupas, alimentos e brinquedos, em boa medida, antecipam o mundo adulto, em vez de estarem a serviço das características específicas e dos direitos destes seres humanos a um período em que estão constituindo suas identidades de gênero, de etnia e de pertencimento a um grupo social, produtor de cultura.

Resta muito a analisar eticamente sobre as possibilidades de um tempo e um lugar para a infância, como um direito das crianças de 0 a 6 anos e como uma conquista inalienável da espécie humana ao democratizar e civilizar as relações entre adultos e crianças.

É bom lembrar a fala original do início deste artigo, quando a criança declara que sua cabeça canta e fala com ela. Que estes cantares e falares sejam eticamente bem inspirados, ouvidos e considerados como direitos inalienáveis.


Bibliografia

- Ariès, Philippe
A história social da criança e da família, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1978

- Bakhtin, Mikhail
Estética de la creación verbal, Madrid, Siglo XX1, 1985

- Smolka, Ana Luiza
Modos de inscrição das práticas cotidianas na memória coletiva e individual in A magia da linguagem, Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2001

- Souza, Solange Jobim
Subjetividade em questão, A infância como crítica da cultura,
(organizadora ) Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000

- Vygotsky, Lev S.
A formação social da mente, São Paulo, Martins Fontes, 1984

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