Infância Urgente

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Uma tarde na Vara de Infância: histórias de crianças adotadas, recusadas, devolvidas e obtidas ilegalmente

Na ante-sala do gabinete do juiz Iasin Issa Ahmed, titular da maior Vara da Infância e Juventude da América Latina, a de Santo Amaro, em São Paulo, sua secretária, Jandira, suspira: “Aqui tudo é urgente. Pior que pronto-socorro”.

Panorama da adoção no Brasil muda com cadastro nacional


Jan, como todos a chamam, tenta agradar com ursinhos de pelúcia um menino de 7 anos que aguarda, impaciente, o resultado da reunião que ocorre na outra sala. Lá dentro, naquele instante, o juiz está resolvendo mais um caso de abandono de crianças e a decisão que tomar afetará, para sempre, o destino de um menino de 4 e de uma menina de 6 anos, irmãos do que está lá fora.

Trata-se de um processo de destituição do poder familiar. É um caso complicado. A mãe não quer saber dos três filhos. O pai, morreu. A avó materna se propõe a cuidar do menino de 7 anos, mas diz que não tem condições de ficar com os dois menores. Uma tia, irmã da mãe, deficiente física, também não tem como aceitar o encargo.

Cabe ao doutor Iasin, como é chamado, assinar o ato extremo, que consumará a perda do poder familiar sobre aquelas duas crianças e a disponibilidade de ambos para uma futura adoção. Mas ele tenta esgotar todas as possibilidades antes de fazer isso. Radiante, depois de uma hora de reunião, conta como resolveu a situação:

“Interrompi o processo de adoção na hora da sentença. Achei um parente da parte paterna em Vitória da Conquista (BA) que se propôs a ficar com as duas crianças. O tribunal paga a passagem para a avó levar as crianças”.

Uma adoção por dia

O juiz Iasin está à frente da Vara de Infância de Santo Amaro desde junho de 2005. É apaixonado pelo trabalho. Sob a sua jurisdição, há 3,5 milhões de pessoas, sete subprefeituras, sete conselhos tutelares, além de 52 abrigos, responsáveis pela guarda de cerca de 800 crianças, “fora os abrigos clandestinos”.

Aos 49 anos, casado, sem filhos, se considera pai destas 800 crianças. “Adotei todos eles aqui. A paternidade que eu não exerci, exerço aqui”, diz. Entre janeiro e outubro de 2008, o juiz Iasin já autorizou 231 adoções. Calcula que chegará a 280 até o final do ano. Mais de uma adoção por dia de trabalho.

“A adoção é um termômetro da situação econômica e social do país”, diz. “É muito ruim a gente ser produtor de criança para adoção, ser conhecido na Europa como um país que tem muita criança para adotar. Isso é uma vergonha para nós”.

Fracasso: crianças adotadas e devolvidas

Em 2008, houve dois casos de adoção que deram errado. O juiz Iasin está muito chateado. Um casal adotou uma criança de 8 anos. Pouco tempo depois, voltou à Vara para devolver a criança. “Ela tem um problema de saúde (epilepsia) que não me falaram”, alegou a mãe. Consultado o processo de adoção, o juiz viu que a mãe não falava a verdade – ela fora avisada do problema.

Pressionada, a mãe disse que não queria uma criança de 8 anos, mas a aceitou pois a sua idade correspondia à idade do filho que ela teria tido de forma natural, se pudesse. “Uma razão muito egoísta”, observou o juiz. O pai foi ainda pior. “A gente tentou. Quis tentar para ver se dava certo”. O juiz não se conforma: “Isso é o fim do mundo”.

O outro caso. Uma professora conheceu um menino de 10 anos no abrigo. O garoto disse: “Você tem tudo para ser minha mãe”. Ela ficou encantada. Pediu a adoção. O juiz concedeu seis meses de guarda provisória, antes de dar a adoção definitiva. Um mês depois, a professora e seu marido reapareceram para devolver a criança. “Deu errado”, ela disse. “Foi muito rápido”.

“E a cabeça desse menino?”, pergunta o juiz. “Me arrependi de ter concedido a adoção. Faltou preparo para os pais”, diz. O fracasso levou Iasin a decidir que, a partir de agora, crianças acima de 6 anos terão que passar por um estágio de convivência de um ano antes de a adoção definitiva ser concedida. Como a lei não estabelece um prazo exato, o juiz determinou que na Vara de Infância de Santo Amaro, doravante, será assim.

“Tenho 66 crianças para adotar. Ninguém quer”

Cerca de 90% das crianças em abrigos não estão disponíveis para adoção. São crianças que ainda têm algum tipo de vínculo familiar, mas estão abrigadas porque foram vítimas de maus tratos, negligência ou, mais basicamente, porque seus parentes não possuem condições materiais de criá-las. Pobreza, em resumo. Os pais perderam a guarda, mas não foram destituídos, explica o juiz.

O juiz Iasin entende que o Estado tem um papel fundamental neste processo. “Ele deveria abrigar a criança por três anos e ajudar a família nesse período. Do contrário, a família não consegue tirar a criança do abrigo”, defende. Hoje, o prazo máximo de abrigamento, como se diz, é de dois anos, após o qual os pais perdem o poder pátrio.

“A adoção é uma medida extrema. Não foi criada para satisfação dos interesses dos adultos. É uma medida de proteção, instituída em nome das crianças”, diz o juiz. “Tenho hoje 66 crianças para adotar. Ninguém quer.” São grupos de irmãos, maiores de 7 anos, pardos ou negros, alguns com problemas de saúde.

Casal gay tem que assumir condição

Não há restrições, diz o juiz, para homossexuais e pessoas solteiras interessadas em adotar uma criança. “Três casais homo-afetivos estão pleiteando adoção”, conta. “Como a nossa lei é heterossexual, só posso conceder a adoção a um dos membros do casal. Mas exijo que os dois passem pelo processo de entrevistas como um casal. Se vem apenas um, e ele não quer assumir a homossexualidade, ficamos desconfiados”.

O caso da mãe que deu a criança e desistiu na hora agá

Enquanto conversamos, uma assistente social e uma psicóloga entram na sala. Descrevem ao juiz um caso cabeludo que está ocorrendo ali fora. Uma mulher, mãe de três filhos, um recém-nascido, de nove dias, decidiu dar o bebê a um casal que conheceu. Este casal já estava habilitado à adoção pela Vara de Santo Amaro.

A mãe, com o bebê no colo, e casal foram à Vara para formalizar a adoção. No meio da conversa com a assistente social e a psicóloga, a mãe mudou de idéia e desistiu de entregar a criança. O que fazer? – é a pergunta das funcionárias da Vara ao juiz. Elas dizem que a mãe não tem condições de criar o bebê. Não tem marido, a sua casa é pequena, tem apenas duas camas e, além dos filhos, ainda moram alguns agregados. Na visão da assistente social e da psicóloga, o bebê deve ser destinado a um abrigo.

O juiz Iasin pergunta se a equipe de assistentes sociais já foi à casa da mulher, verificar as condições em que ela vive. A resposta é negativa. O juiz ordena que isso seja feito e toma a sua decisão. Por enquanto, o bebê fica com a mãe. “É melhor esse bebê dormir em pé, com a mãe, do que ficar num abrigo”, diz. “Já achei positivo a mulher se arrepender e não querer mais deixar a criança”.

“Adoção à brasileira”: um flagrante

O juiz Iasin convoca a psicóloga Célia Regina Cardoso e a assistente social Solange Rolo para ajudá-lo nas respostas ao repórter. Célia e Solange chefiam, cada uma, equipes de 16 profissionais. É esse o time de frente da Vara de Infância, do qual fazem parte as duas funcionárias que acabaram de enfrentar o caso da mãe que desistiu de dar o seu bebê.

Aos 49 anos, casado, sem filhos, se considera pai destas 800 crianças. “Adotei todos eles aqui. A paternidade que eu não exerci, exerço aqui”, diz. Entre janeiro e outubro de 2008, o juiz Iasin já autorizou 231 adoções. Calcula que chegará a 280 até o final do ano. Mais de uma adoção por dia de trabalho.

“A adoção é um termômetro da situação econômica e social do país”, diz. “É muito ruim a gente ser produtor de criança para adoção, ser conhecido na Europa como um país que tem muita criança para adotar. Isso é uma vergonha para nós”.

Fracasso: crianças adotadas e devolvidas

Em 2008, houve dois casos de adoção que deram errado. O juiz Iasin está muito chateado. Um casal adotou uma criança de 8 anos. Pouco tempo depois, voltou à Vara para devolver a criança. “Ela tem um problema de saúde (epilepsia) que não me falaram”, alegou a mãe. Consultado o processo de adoção, o juiz viu que a mãe não falava a verdade – ela fora avisada do problema.

Pressionada, a mãe disse que não queria uma criança de 8 anos, mas a aceitou pois a sua idade correspondia à idade do filho que ela teria tido de forma natural, se pudesse. “Uma razão muito egoísta”, observou o juiz. O pai foi ainda pior. “A gente tentou. Quis tentar para ver se dava certo”. O juiz não se conforma: “Isso é o fim do mundo”.

O outro caso. Uma professora conheceu um menino de 10 anos no abrigo. O garoto disse: “Você tem tudo para ser minha mãe”. Ela ficou encantada. Pediu a adoção. O juiz concedeu seis meses de guarda provisória, antes de dar a adoção definitiva. Um mês depois, a professora e seu marido reapareceram para devolver a criança. “Deu errado”, ela disse. “Foi muito rápido”.

“E a cabeça desse menino?”, pergunta o juiz. “Me arrependi de ter concedido a adoção. Faltou preparo para os pais”, diz. O fracasso levou Iasin a decidir que, a partir de agora, crianças acima de 6 anos terão que passar por um estágio de convivência de um ano antes de a adoção definitiva ser concedida. Como a lei não estabelece um prazo exato, o juiz determinou que na Vara de Infância de Santo Amaro, doravante, será assim.

Comércio no Orkut

Também é proibido, naturalmente, promover a adoção em ambientes privados, longe do controle do Estado. “Há várias comunidades no Orkut que oferecem crianças para adoção”, conta Célia. “Isso é um comércio de crianças. É proibido”, lembra o juiz Iasin.

Diante da chefe das psicólogas e da chefe das assistentes sociais, o juiz conta que solicitou à Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo que contrate psiquiatras para ajudá-los nos processos de adoção. “Qual é o melhor critério para avaliar um candidato a adoção? Usamos três ciências, psicologia, serviço social e direito. Precisamos dessa quarta ciência”, diz.

O objetivo é aumentar a capacidade de detectar futuros problemas decorrentes da adoção. Tentar entender melhor quais são os objetivos dos candidatos a adotar, as suas motivações, a sua capacidade de suportar frustrações e de compreender o filho que será adotado.

Criança recusada porque andava

Solange, a chefe do serviço social, diz que é muito comum o casal fazer concessões quanto é entrevistado na Vara de Infância. Para conseguir adotar mais rapidamente, as pessoas dizem estar interessadas em crianças com determinadas características, mas não estão falando a verdade.

“A mulher disse que queria adotar uma criança até 3 anos”, conta Solange. Foi oferecida a ela uma criança de um ano e meio. “Mas ela anda”, espantou-se a futura mãe. “Se você quer uma criança de um ano e meio que não anda, deveria adotar uma criança paralítica”, respondeu a assistente social.

Solange também desconfia de candidatas a adoção solitárias, sem apoio de um núcleo familiar. “A mulher tinha mais de 50 anos e disse que queria adotar uma menina de 6 anos. Para daqui a dez anos, a menina cuidar dela. É muito egoísmo”, conta ela.

Afinidade de cor

“Não podemos desprezar o ideal de filhos que eles esperam”, diz a psicóloga Sueli. “É o que os pais podem fazer”. Ao que o juiz Iasin acrescenta: “Faço questão de respeitar a afinidade de cor. A diferença pode causar um problema social e a criança acaba sofrendo”, diz.

“A adoção é algo para o futuro. Temos que pensar nisso. O problema vai aparecer daqui a dez, vinte anos”, diz Iasin.

Como tem medo de se confundir olhando fotos, sobretudo de bebês, o juiz vai pessoalmente aos abrigos conferir a cor das crianças disponíveis para adoção. “Sempre sem gravata”, diz. “As crianças associam pessoa de gravata a coisa ruim”.

Por que é tão difícil adotar um bebê?

A equipe da Vara de Infância de Santo Amaro faz de tudo para evitar a adoção de bebês. A prioridade, sempre, é tentar manter o vínculo familiar. “Só quando a mãe nos procura antes do parto e fala das suas necessidades. É algo que tem que ser trabalhado”, diz Solange. “Mãe que larga o bebê no hospital e não vem aqui explicar por que fez isso, eu não concedo a adoção”, acrescenta.

A menina que queria ir para a Itália

O juiz Iasin se envolve pessoalmente em vários casos de adoção. Conta com carinho do caso da menina de 6 anos que ele visitou em um abrigo e que lhe pediu: “Eu vou pra Itália?”. Não havia candidatos do outro lado do mundo, mas, comovido, o juiz prometeu: “Eu vou escolher os pais para você, mas você tem o direito de dizer que não gostou”.

“Eu me apaixonei pela menina”, conta o juiz. Era uma garota que havia morado numa Kombi com a mãe – usuária de drogas e, aparentemente, prostituta. “Ela viu coisas horríveis”.

Um casal, finalmente, se encantou pela menina – e ela os aceitou como pais. Na última entrevista na Vara de Infância, para consumar a adoção, o juiz Iasin sentiu um leve odor de álcool no futuro pai da menina. Fez então um longo discurso, lembrando ao casal até então sem filhos que a chegada de uma criança obriga a certas mudanças de hábito.

“Não pode beber na frente da criança. Não pode deixar a porta do banheiro aberta. A porta do quarto do casal deve ser fechada no momento do sexo. Não devem brigar na frente da menina”, pregou.

Instalações deficientes

O juiz Iasin conduz o repórter pelas instalações da Vara da Infância. As salas de atendimento, tanto das psicólogas quanto das assistentes sociais, são separadas por divisórias, sem cobertura até o teto. Ou seja, não há privacidade alguma. “Já pedi ao Tribunal de Justiça para reformarem isso, mas até agora nada”, diz.

Por iniciativa própria, o juiz Iasin reuniu um grupo de amigos, da comunidade maçom da qual faz parte, e pediu recursos para transformar uma sala da Vara em berçário – de maneira que as mães possam utilizar, enquanto esperam atendimento. Também funciona na Vara uma “caixinha”, a base de doações dos funcionários, cujo dinheiro serve para cobrir despesas de emergência – um brinquedo para uma criança, um alimentação, uma passagem de ônibus...

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