Infância Urgente

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

VISITA DO COLETIVO EM DEFESA DOS DIREITOS DO/A JOVEM PRIVADO/A DE LIBERDADE NA FEBEM/FUNDAÇÃO CASA

“Licença, Senhor(as)”. Com esta “saudação” meninos e meninas, com olhos baixos e mãos para trás, cumprimentam, os funcionários e outros adultos em seu convívio nas unidades da Fundação Casa, visitadas no último dia 08 de dezembro. Foram vinte locais, da Capital e outras cidades, em que entidades da sociedade civil, conselheiros tutelares, parlamentares, exerceram o direito e prerrogativa de fiscalizar o cumprimento da medida socio-educativa de internação, bem como ver garantido o direito de os jovens internos presenciarem a entrada das entidades e demais atores sociais.

Os funcionários informaram que as unidades estão com vagas “disponíveis”, mas na verdade contatou-se que violam a norma da Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente- CONANDA, nº 46, aprovada em 1996, que estabelece o limite de 40 jovens por unidade. Não se trata de questão numérica, mas da possibilidade de efetivar um trabalho intensivo de sócio-educação, que envolveria, principalmente, garantia ao acesso a direitos nunca vivenciados pelos internos. Porém, a realidade é alarmante: a grande maioria desconhece sua situação processual (ficando vulneráveis as pressões de funcionários) e nunca viram seus defensores. Sobre a atenção técnica, raramente sabem informar quem são os psicólogos e os assistentes sociais (por outro lado, sabem o nome dos diretores, encarregados e chefe de segurança). O poder de disciplinamento é tal que os adolescentes se apressam em justificar que os técnicos têm muito trabalho, e que por isso estão sem atendimento. Os jovens, note-se, têm consciência que os educadores, técnicos e funcionários que os respeitam também são pressionados e, às vezes, segregados na unidade ou colocados à disposição (“levam bonde”). São estas as “regras” que os obrigam a silenciar, preservando uma espécie de cumplicidade e lealdade entre estes sujeitos.

Abaixo, registramos a epígrafe do Manual de Técnicas e Táticas Operacionais de Segurança da Fundação Casa, fornecido por uma chefia de Segurança.
“Lutar e vencer em todas a batalhas não é a glória suprema; a gloria suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar...
Manobrar um exército é vantajoso; manobrar uma multidão indisciplinada é perigoso demais.” (extraído do livro Arte da Guerra).

O “novo modelo” afirma que realiza três passos: pré-acolhida, acolhida e elaboração de projeto de vida. Porém, os adolescentes sabem apenas dizer que sofreram a privação de liberdade por alguma infração. Desconhecem o real sentido da medida sócio-educativa. Tampouco associam este processo à intervenção do Estado. Em alguns lugares, a acolhida significa ficar o primeiro ou até vários dias totalmente isolado no “quarto”.

Na sócio-educação todos os funcionários deveriam ter treinamento para serem efetivamente educadores. Porém, foram muitos os relatos de maus-tratos, espancamentos, humilhações, violência psicológica e moral. Em parte das unidades as equipes de fiscalização aguardaram 30 a 40 minutos para adentrarem aos recintos e foram na maior parte bem tratados pelos funcionários. Em Franco da Rocha após 04 horas não conseguiram entrar e no Bom Retiro (capital) não foi permitida a entrada das entidades, ainda que este seja um direito garantido constitucionalmente e recentemente matéria de acórdão do Tribunal de Justiça que “derrubou” a portaria 90/05 da ex-Febem, por sua ilegalidade.

Embora existam unidades com nova estrutura arquitetônica, tal projeto sempre foi questionado pelas entidades de direitos humanos, além de desrespeitar o que estabelece o Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativo – SINASE. Tanto nesta quanto em estruturas antigas, observa-se características asilares, não permitindo acesso semanal ao banho de sol. Jovens relatam ter bastante dores de cabeça por conta da fragilidade em que se encontram ao sofrerem, visualmente, os raios solares. Evidente “asilamento” é também a estrutura de grades e instituição total (a vida se restringe ao acesso limitado a determinados espaços internos). Quanto à higiene, o tempo do banho varia bastante. Alguns relataram que podem utilizar o chuveiro por somente 3 minutos, queixam-se do sabão, feito de gordura, sem odor e que desperta processo alérgico em muitos deles. Outros mencionaram que recebem castigo de terem que se molhar, fechar o chuveiro, se ensaboar e depois, tomar uma rápida ducha. Chegam a ficar 3 semanas sem troca de toalha. Assim, não pareceu estranho o fato de relatos de sentirem "coceira" (visualmente aparentava ser algum tipo de sarna), a ponto de terem ferimentos nas pernas, braços, axilas. Referiram, numa unidade, terem recebido atendimento de um dermatologista três meses atrás, mas que a medicação nunca lhes foi administrada.

A "tradicional" cabeça raspada vigora e com aperfeiçoamento: em algumas unidades colocam um jovem para raspar a cabeça do outro, o que configura em violação de direitos e podendo ser considerada prática de tortura. É utilizado com normalidade a regra de "cabeça baixa" e "mãos para trás", sendo que o não cumprimento dessas "regras" é resolvido com agressões físicas, coação e isolamento. Até o cumprimento educado como o aperto de mãos entre dois jovens motiva o funcionário a agredi-los. Se esquecerem de dizer “licença, Senhor”, são obrigados a voltarem e refazer o percurso e, então, expressar tal frase. Os adolescentes queixaram-se que nem podem conversar durante a noite e que se cochicham rapidamente há intervenção aos gritos e pancadas nas portas – de aço - para se calarem. Em alguns lugares há castigos, por exemplo, de ficarem nus, em pé, com o rosto virado para a parede, por até quatro horas. Durante a visita, sem qualquer pudor, jovens foram pressionados por funcionários, alertando sobre as represálias. Portanto, não se vislumbra a possibilidade de uma relação de respeito que é fundamental para a formação e a sociabilidade de qualquer ser humano, em especial, destes adolescentes.

As unidades de internação provisória referem realizar o Programa de Educação e Cidadania - PEC, que consiste em aulas conhecidas como de “aceleração”. Alguns reconhecem que pela primeira vez recebem alguma atenção de um professor – até porque a adesão a tal atividade é pequena, oportunizando-lhes este cuidado diferenciado, evidenciando-se o contentamento face a ausência de direitos humanos no decorrer de sua vida. Os cursos de profissionalização existem, mas são geralmente formações de subalternização, com atividades mecânicas. Mencionaram que num curso de panificação não tocaram na farinha.

A gestão compartilhada que é uma das mudanças muito divulgadas pela Fundação, segmenta e terceriza os serviços, sem que estes tenham relação com o projeto pedagógico. Por exemplo, o motorista, serviço de cozinha, lavanderia, não são treinadas para nenhum contato com os educandos. Em relação à segurança, foi garantido que sua atuação é na área externa: “porque se precisar a Fundação tem o choquinho”.

Quando precisam de atendimento médico ou odontológico fora da unidade, todos são escoltados algemados. Argumenta um jovem: “Senhora, imagina se entrar três caras algemados e a senhora com seu filho? A senhora fica com medo. Todos vão para parede. É muito chato... dá para ver que as pessoas sentiram medo”. Segundo os adolescentes, somente retiram as algemas se há solicitação do médico. As atividades externas são escassas. Referem, em algumas entidades, que mesmo em apresentações de suas habilidades artísticas, etc, são levados com uniforme da Fundação. Queixam-se: “Porque alguns (internos) podem ter roupa “normal” e a gente tem que ir com essa?”, referindo sentirem-se constrangidos. Preservando sua dignidade, perguntam um dos jovens: “Não podia usar perfume pelo menos no domingo para a gente receber nossa visita?”. Desodorante, onde existe, é em forma de creme, colocado em suas mãos. Queixam-se do creme dental, que é similar a um “chiclete” e que provoca “rachadura na boca”.

A relação com funcionários da noite, segundo eles, é bastante tensa, de modo que por exemplo, para ir ao banheiro, enquanto dormem, devem gritar, deitados, até a chegada de um funcionário.

A partir do relato dos jovens e no trabalho das entidades e defensores é possível analisar que tanto a Segurança Pública quanto o Judiciário parecem ter adotado a prática de “tratar” a drogadicção com a internação. É sabido que a grande parte dos adolescentes são usuários de drogas e, por esta condição, são usados pelo pequeno tráfico nos bairros. Sabemos que tem sido comum adolescentes de classe média também se envolverem com tráfico, nestas condições, e também para obterem ganhos financeiros. Porém, suas famílias em geral buscam alternativas de tratamento particulares, evitando-se assim, e acertadamente, a privação de liberdade, inserindo-o em atenção à sua saúde de forma integral. É fundamental frisar que esta é uma questão de saúde pública, cabendo intervenção neste sentido, com a criação de serviços ambulatoriais nos municípios. Alem desta situação de saúde, outros jovens poderiam ser atendimento em liberdade, pois são claros exemplos de que vivem situações de extrema violação de direitos: família sem condições dignas de vida, membros doentes, sem moradia adequada, sem cultura, lazer e educação de qualidades. Este é o exemplo do que tem sido chamado de judicialização ou criminalização da pobreza. As demandas de natureza social não encontram eco na política social estatal (com qualidade e suficiência) e acabam sendo atendidas com a repressão da vítima da violência social.

Apesar das constrangedoras revistas íntimas, em que, dentre a varias situações vexatórias, as mulheres são obrigadas a retirar o absorvente que usam, trocando-os na frente da segurança, muitas mães, avós, tias e algumas namoradas visitam estes jovens. Um dado que se evidenciou é a reprodução da lógica prisional também em outra questão: as moças não podem receber visitas de seus companheiros ou namorados. Em nenhuma unidade foi apresentada qualquer informação sobre atenção à diversidade de orientação sexual.

Por fim, a situação de Iaras (região de Bauru), que já havia sido denunciada é grave. Um dos pontos mais significativos foi encontrar 06 (seis) internos sob o regime de "sanção disciplinar”, aplicada sem apuração de uma dita situação de conflito/agressão entre os adolescentes. Eles afirmam que estão "trancados" há onze dias. Só podem usar os colchões entre as 21h e 06h. Durante o resto do dia, devem ficar sentados nas camas de concreto e sem colchão, de cabeça baixa, mãos para trás e sem falar. Não participam do banho de sol e só podem participar das atividades educacionais. Basicamente, consta que esse seis internos teriam agredido e ameaçado de morte um outro adolescente (este foi retirado da unidade). Os adolescentes não concordam com a versão da direção. Há denúncias também nas outras unidades de Iaras.

Por fim, a relação hierárquica é uma grande marca da instituição. Quando há algum parlamentar ou autoridade acompanhando a visita, há grande diferença no tratamento das entidades que, frizamos, apenas cumprem o direito de fiscalização.

O coletivo fará um relatório minucioso nos próximos dias. Este breve relato visa afirmar que esta ação da sociedade civil não é algo extraordinário: deveria ser recebida pela Fundação Casa com tranqüilidade, posto que apenas visa garantir os direitos dos adolescentes. De toda forma, com tantas violações e denúncias, os jovens estão temerosos e com declarado receio de represálias: "Vou falar, mas sei que pode acontecer alguma coisa hoje a noite".

Os/as jovens têm coragem de denunciar, porque as violações podem piorar. Tornem-se públicas as suas vozes. Por nossa responsabilidade na garantia de direitos, conclamamos a todos os demais atores para esta defesa da prioridade absoluta.

Entidades que efetivaram as visitas:
ACAT,CEDECAs Limeira, Interlagos, Jardim Ângela, Conselho Regional de Serviço Social 9ª Região(CRESS-SP),Comissão da OAB de Direitos Humanos de Sorocaba e Diadema, CRP de Bauru, Escritório Modelo da PUC,Conselhos Tutelares de Bauru, Santana e Guarulhos, Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, Sociedade Santos Martires, Fundação Interamericana de Direitos Humanos, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Parlamentares que acompanharam as visitas:
Senador Eduardo Suplicy (PT), Deputado José Cândido(PT), Deputado Raul Marcelo(PSOL) e vereador eleito em São Paulo Italo Cardoso (PT).

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