Crônica publicada em 21 de março de 2010 - Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, data criada em lembrança das vítimas do massacre racista de Sharpeville, na África do Sul, em 1960.
Aconteceu no bairro Bela Vista, na região central de São Paulo.
- Não é por nada não! - disse o rapaz que aparentava ser mais velho - mas esse papo contra as cotas já tá cansando.
Estavam juntos três rapazes que demonstravam ser amigos e caminhavam pela calçada. Eu parei o carro e fui comprar crédito para celular. A conversa corria solta, típica de fim de expediente. Sem querer, fiquei ouvindo.
Os três pararam no mesmo boteco que eu havia entrado.
- Não adianta - falou o mais jovem, de sotaque baiano – a mulher fez a melhor oratória de toda a audiência - e prosseguiu: - não importa se é do DEMo ou não é, mas impressionou quem estava no Supremo.
- Pelo amor de Deus, cara – balançou a cabeça o único negro do grupo, em sinal negativo - Isso não é argumento, falar que não dá pra saber quem é negro no Brasil?
A resposta veio de supetão:
- Eu assisti e vocês também assistiram a audiência no STF, ok? Eu não concordo com nada do que ela falou. Só falou besteira, mas soube chamar atenção, soube cativar, mesmo falando aquilo.
- Que adianta? – voltou à prosa o mais velho, que é branco e barbudo.
Sentaram-se à mesa do lado de fora, pediram cerveja e amendoim. O mais novo acendeu um cigarro.
- Vamos pedir um churrasquinho também?
- Opa! Dois de carne, um de queijo!
Decidi ficar na espreita. Pedi uma Coca e colei na mesa ao lado. O de sotaque baiano jogou mais essa:
- Não tem jeito. O pessoal que ficou lendo tratados teóricos e estatística... perderam tempo. Isso não convence mais ninguém.
- E você, me convenceria de ser a favor das cotas como?- disparou o barbudo, com cara de mais velho.
O rapaz negro atropelou:
- É, agora eu vou olhar no espelho e ver um loiro, ou vou sair na rua e vão me confundir com o Di Caprio! Só a advogada do DEMo pra falar isso. Será que no fundo ela acredita no que fala ou tá só fazendo um serviço pago? Ou melhor, bem pago!
- Será que eles sabem quem é negro aqui na mesa? baixou o tom da voz, apontando o dedo para uma viatura da GCM que passava.
- Cara, a gente sabe que ela falou besteira, mas pra quem não sabe nada do assunto, ela conseguiu misturar tudo... e as frases de efeito... soam como se fosse verdadeiro, é fod*, irmão!
Eu pedi um churrasco de lingüiça e passei da Coca pra uma Itaipava.
- O pior cê nem viu. O discurso do medo, que as cotas vão gerar conflito, agressão de negros contra brancos e tudo mais. – soltou o barbudo, chegando mais à frente da cadeira.
- Você é bom baiano?- Indagou o mais velho.
- Alguma dúvida? - o mais jovem devolveu.
- Então pede uma pinga com mel !
- Pinga com mel é coisa de mineiro...
Por ser sexta-feira, chegava mais gente ao bar, mesmo já passando das nove. Uns meninos “de rua” vendiam balas, de mesa em mesa. Apesar de estar bem no Centro, aquela rua não era tão movimentada.
- O que você tinha perguntado? - o baiano passou a mão no queixo olhando para o barbudo - Quer saber como a gente convenceria alguém de defender cotas, é isso?
O outro assentiu com a cabeça, dando mais um tapa na cana.
- Eu te falo: podem dizer que a questão é de fundamento teórico, moral ou sei lá o quê. Eu ainda vejo que a questão deve ser olhada como psicológica.
- Como assim? - Perguntou o rapaz negro.
- Não quero dizer que a maioria dos brancos são contra as cotas. Não sei. Mas muitos dos brancos que são contra as cotas, não aceitam porque isso os remete a uma parte de culpa no cartório, concorda?
Os outros dois ficaram em silêncio como que pedindo para ele continuar.
- Já ouviram falar que tratar de racismo é mexer numa ferida aberta? É difícil para o negro e para o branco. Para o negro por razões óbvias. Ficar lembrando que foi roubado, escravizado, que teve os avós, bisavós, sei lá, violentados.
- Mas e o branco? - jogou o mais velho.
- Não dá pra generalizar companheiro, mas isso acontece e é comum. Vai numa sala de aula de Direito e toca no assunto! – ficou mais eufórico, com o dedo em riste: - Os brancos vem com o discurso da Constituição que todos são iguais, blá, blá, blá...- E bebeu mais um gole.
- Mas você acha que a Lei iria garantir alguma coisa? - o mais velho gostava do debate.
- Acorda mano, e por acaso a Constituição não tem cotas? Não tem ação afirmativa pra todo mundo lá? - Ele falava como se contasse em cada dedo de sua mão: - cota pra mulher, cota pra deficiente, proteção ao consumidor, trabalhador rural, idosos, menores, pequeno empresário, tem direitos especiais pra todo mundo... pára! Só pra negro é que dá problema?
O rapaz negro emendou:
- Já pensou o que aconteceria se a Globo tivesse que ter 30% de seus contratados todos pretos, bem pretinhos? - Deu uma risada sarcástica, mas continuou: - E se o papel do negro nas novelas e filmes não for mais de empregada ou bandido? Já pensou se a Veja iria suportar isso? - E engrossou a voz, imitando algum apresentador de jornal, tipo Cid Moreira: - Revistas semanais são obrigadas a preencher 40% de suas publicidades com fotos de negros.
- Você acha mesmo que o problema tá aí? - O baiano perguntou com o espeto na mão e o sotaque bem carregado.
- Não, isso não é nem o começo. Mas gente igual o Ali Kamel, o Bonner e essa turma da Folha e do Estadão não querem cotas porque assim eles admitem a existência do racismo brasileiro e a parcela de culpa deles, dos pais deles, dos avós que foram donos de escravos, sabe? - E completou depois de colocar mais cerveja no copo: - o problema maior pra eles é que as cotas dividem o poder. Se o Supremo decide que as cotas são constitucionais, todo espaço de poder concentrado nas mãos deles fica ameaçado. Desde a novela até a gerência do banco, partidos políticos. Guarde isso que eu vou te falar, mano: as cotas revelam a dimensão racial da luta de classes, entendeu?
Eu já tava na minha terceira latinha. Pedi um churrasco de coração.
O mais velho entrou na mesma linha:
- O que será do Objetivo se seus alunos puderem abocanhar só metade das vagas da USP? Imagina a coordenação das bolsas da FAPESP ou CNPq tendo que fatiar esse bolo?
- Mas nesse caso, a cota é social e não racial, né? - disse o baiano.
-Não senhor! – o negro entrou na conversa - Olha só o que eu ouvi um dia: as cotas raciais conseguem contemplar as cotas sociais. Mas as cotas sociais não contemplam as raciais. Isso é um falso argumento inventado por quem é contra. - Tirou um jornalzinho da pasta, mostrando para os colegas. - Tem mais: comprovadamente as políticas de cunho universal não diminuem as desigualdades entre brancos e negros... Até no grupo em que todos têm baixa renda, os negros estão em desvantagens em relação aos brancos pobres... e aí vai...”
-Mas, voltando à advogada do DEMo, que coisa, né? - O mais velho falava com certa dose de ironia - Não bastasse as lorotas desse cara aí... o Demétrio, vocês viram o que falou o tal Demóstenes? Que a escravidão foi culpa dos africanos e as mulheres escravas consentiam a violência sexual... é mole?
- Oportunista do car****!
- Que ele é oportunista, a gente sabe. Vem fazendo esse serviço faz tempo! E se deu bem. Ganhou os votos e o apoio de todos os racistas. Demétrio, DEMo e Demóstenes! Estamos bem!
Fui embora pra casa. Aquele papo ia longe. Tava garoando.
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Obs.: todos os fatos narrados são fictícios.
*O autor, Cleyton Wenceslau Borges, reside na Zona Leste de São Paulo e é membro do Conselho Geral da UNEafro Brasil. Tem Especialização em Gestão de Políticas Públicas e Diversidade pela USF.
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