Infância Urgente

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A barbárie da tortura continua e ainda é tolerada

Por Alexandre Pontieri

Qual a diferença entre Guantánamo, Abu Ghraib, Favela Naval, Febem de São Paulo e
tantos outros estabelecimentos prisionais do mundo? Cremos que nenhuma, talvez a
localização física. A tortura é uma das maiores aberrações constatadas desde os
primórdios históricos, vigorando, infelizmente, até os dias atuais.

Um dos casos mais famosos, que foi notícia tanto no Brasil como no exterior, foi o Caso da Favela Naval, quando, entre os dias 6 e 7 de março de 1997, na cidade de Diadema,São Paulo, policiais militares espancaram, torturaram e mataram o conferente Mário José Josino. Tudo devidamente registrado pelas câmeras de um cinegrafista, que seriam posteriormente transmitidas pela TV Globo em seu Jornal Nacional (1).

A barbárie chamada tortura continua existindo e alcançando seus objetivos. De acordo
com dados do Human Rights Watch, "segundo grupos brasileiros de direitos humanos,
um número significativo de delegacias policiais no Brasil, talvez até mesmo a maioria
delas, possui uma cela de tortura. Essa cela é normalmente chamada de sala do pau, em
referência à técnica de tortura mais utilizada pela polícia brasileira, o pau de arara. Este consiste de uma barra na qual a vítima é suspensa por trás dos joelhos com as mãos amarradas aos tornozelos. Uma vez no pau de arara, a vítima, normalmente despida, sofre espancamentos, choques elétricos e afogamentos. Afogamento, por sua vez, é uma técnica de tortura na qual a cabeça da vítima é imersa em um tanque de água, ou água é jogada na boca e narinas da vítima causando a sensação de afogamento. Segundo aqueles que passaram por tal forma de tortura, a experiência produz uma sensação terrível de morte iminente”.

E continua, “durante a pesquisa, a Human Rights Watch entrevistou dezenas de presos
que, de forma convincente, descreveram a tortura em delegacias nos primeiros momentos de suas detenções. Um preso em Manaus, condenado por tráfico de drogas,descreveu como fora torturado em uma delegacia, pendurado de cabeça para baixo por mais de três horas e espancado com paus até a fratura de suas costelas. Em São Paulo, presos da carceragem do Depatri descreveram que foram levados à sala de torturas num andar superior onde retalhos de pano foram postos em suas bocas enquanto sofriam choques elétricos nas orelhas, pescoços e debaixo dos braços. Mas foi no estado de Minas Gerais onde ouvimos as mais consistentes e convincentes denúncias de tortura.

Com frequencia, os presos entrevistados permaneciam nas mesmas delegacias onde
sofreram os abusos, expostos ao contínuo contato com seus torturadores.” (2)

O difícil é saber: por que se recorre tanto ao uso da tortura, apesar de todos os avanços humanísticos (3)?

Sempre atuais as lições de Michel Foucault ao descrever que “o suplício tem então uma
função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um
instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução pública, por
rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder
eclipsado e restaurado (coroação, entrada do rei numa cidade conquistada, submissão
dos súditos revoltados). Por cima do crime que desprezou o soberano, ela exibe aos
olhos de todos uma forma invencível. Sua finalidade é menos de estabelecer um
equilíbrio que de fazer funcionar até um extremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer sua força. Se a reparação do dano privado ocasionado pelo delito deve ser bem proporcionada, se a sentença deve ser juta,a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida, mas do desequilíbrio e do excesso; deve haver, nessa liturgia da pena, uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade intrínseca. E esta superioridade não é simplesmente a do direito, mas a da força física do soberano que se abate sobre o corpo de seu adversário e o domina:atacando a lei, o infrator lesa a própria pessoa do príncipe: ela – ou pelo menos aqueles a quem ele delegou sua força – se apodera do corpo do condenado para mostrá-lo marcado, vencido, quebrado”. (4)

E o mesmo Professor Michel Foucault nos traz um relato de um caso de tortura ocorrido
em França antiga:
“(Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757), a pedir perdão publicamente diante
da porta principal da Igreja de Paris (aonde devia ser) levado e acompanhado numa
carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; (em
seguida), na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido,
atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita
segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre e
às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche
em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e
desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo,
reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento”. (5)

A tortura no Brasil, como obtenção de meio de provas através da confissão e como
forma de castigo a prisioneiros, existe desde os tempos de seu descobrimento pelos
portugueses, no ano de 1500, tendo os índios que aqui habitavam, sofrido com os novos
tratamentos trazidos do velho continente.

Nos dois períodos ditatoriais republicanos, de 1937 a 1945 (o chamado Estado Novo) e
entre 1964 e 1985 (a ditadura militar), a prática da tortura não só passou a alcançar
opositores políticos de esquerda, como sofisticou-se nas técnicas adotadas. No final dos anos 60 e início dos anos 70, as ditaduras militares do Brasil e de outros países da região criaram a chamada Operação Condor, para perseguir, torturar e eliminar opositores (6). Receberam o suporte de especialistas militares norte-americanos, ligados à CIA, que ensinaram novas técnicas de tortura para obtenção de informações. A Escola das Américas, instalada nos EUA, foi identificada por historiadores e testemunhas como um dos centros de difusão de técnicas associadas à prática da tortura e maus-tratos (7).

Nenhum comentário: