Em seu livro de memórias, o ex-presidente Ernesto Geisel afirmava:
“(...) que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter informações. (...) no tempo do governo Juscelino alguns oficiais, (...) foram mandados à Inglaterra para conhecer as técnicas do serviço de informação inglês. Entre o que aprenderam havia vários procedimentos sobre tortura. O inglês, no seu serviço secreto, realiza com discrição. E nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente. Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior” (8).
Conforme citado no trabalho elaborado por Cecília Maria Bouças Coimbra (9), em
1971, foi elaborado pelo Gabinete do Ministro do Exército e pelo seu Centro de
Informações (CIEx) um manual sobre como proceder durante os interrogatórios feitos a
presos políticos (10). Alguns trechos apontavam que:
“(...) O interrogatório é uma arte e não uma ciência (...). O interrogatório é um
confronto de personalidades. (...) . O fator que decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que o interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência para que ele se torne um cooperador submisso (...). Uma agência de contra-informação não é um tribunal da justiça. Ela existe para obter informações sobre as possibilidades, métodos e intenções de grupos hostis ou subversivos, a fim de proteger o Estado contra seus ataques.
Disso se conclui que o objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a justiça criminal processálos; seu objetivo real é obter o máximo possível de informações. Para conseguir isso será necessário, frequentemente, recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente,constituem violência. É assaz importante que isto seja bem entendido por todos aqueles que lidam com o problema, para que o interrogador não venha a ser inquietado para observar as regras estritas do direito (...)” (11).
O “Relatório Azul”, documento produzido pela Comissão de Direitos Humanos e
Cidadania da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, citando o célebre relatório
“Brasil, nunca mais”, informa que pelo menos 1.918 prisioneiros políticos atestaram ter sido torturados entre 1964 e 1979. Este documento descreve 283 diferentes formas de tortura utilizadas pelos órgãos de segurança à época (12).
Com a redemocratização, em 1985, cessou a prática da tortura com fins políticos. Mas
as técnicas foram incorporadas por muitos policiais, que passaram a aplicá-las contra os presos comuns, os “suspeitos” e os detentos. Pode-se, portanto, afirmar que a tortura existente hoje no Brasil principalmente “contra negros e pobres” é herdeira de uma tradição totalitária e foi intensificada principalmente durante o Estado Novo e a ditadura militar.
Como bem definiu o ex-Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, "o estado
de direito – como o próprio nome diz – exige que seus agentes ajam sempre de acordo
com o direito, isto é, dentro dos limites da lei e segundo a Constituição, visando à
realização da justiça. A violência policial tem historicamente gerado as maiores
violações de direitos humanos no País. A criminalidade resulta, então, em alguns casos,de suposto combate ao próprio crime” (13).
Opinião pública
Apesar de todos os relatórios apresentados e noticiados diariamente, recente pesquisa do Instituto de Pesquisa Datafolha (14) mostra que aumentou a tolerância dos moradores da cidade de São Paulo com a tortura. O percentual dos que concordam com a frase "pessoas suspeitas nunca devem ser torturadas" caiu de 78% em 1997 para 72% hoje.
Por outro lado, a taxa dos que concordam com as frases "ás vezes pessoas suspeitas
devem ser torturadas para confessarem seus crimes" e "pessoas suspeitas sempre devem
ser torturadas" oscilaram, de 15% para 17% e de 5% para 7%, respectivamente.
Pessoas suspeitas nunca devem ser torturadas
78% (1997)
72% (hoje)
Às vezes pessoas suspeitas devem ser torturadas para confessarem seus crimes
15% (1997)
17% (hoje)
Pessoas suspeitas sempre devem ser torturadas
5% (1997)
7% (hoje)
Na região do bairro do Morumbi/Butantã, o percentual dos que acham que, dependendo
da situação, a tortura é aceitável, chega a 24%, sete pontos acima da média, enquanto o dos que acham a tortura inaceitável é de 64%, oito pontos abaixo da média.
A Comissão de Direitos Humanos possui em seus registros diversos dossiês elaborados
por entidades de direitos humanos relacionando as denúncias de tortura. Além desses
dossiês, há dezenas de processos administrativos abertos na Comissão objetivando
acompanhar a apuração das denúncias. Ao todo, são mais de 100 casos registrados na
CDH. Para uma amostragem, selecionamos alguns desses casos e que servem para
demonstrar como tem sido esta prática criminosa no Brasil. (15)
Vítima: J. I. S. S. - preso em 24 de outubro de 1995 pela Polícia Federal em Fortaleza,sob acusação de porte de drogas, foi encontrado morto, no dia 25 de outubro, nas dependências da Superintendência da Polícia Federal com graves lesões no tórax,abdômen e pescoço. O laudo do IML confirmou lesões corporais, no entanto concluiu pela ausência de elementos que pudessem configurar a tortura. Posteriormente, um laudo independente, realizado pela equipe de legistas da Universidade de Campinas (Unicamp), confirma que J.I. morreu em decorrência de espancamento. Oito policiais foram indiciados. Na defesa judicial, a polícia tentou forjar uma versão de que o rapaz foi morto por um companheiro de cela, o que foi posteriormente desmentido. A União reconheceu sua responsabilidade e, num caso até então inédito, concedeu à família da vítima uma pensão mensal.
Vítima: P. A. F. - No dia 09 de junho de 1996, foi detido por policiais estaduais em
Manaus sob a suspeita de envolvimento em crime de latrocínio. Quatro policiais civis
foram identificados pela vítima, todos lotados na Central de Informações da Polícia
Civil na cidade de Manaus (AM). O laudo do IML comprovou que a vítima foi
torturada. Os policiais colocaram um saco de lixo na cabeça da vítima na tentativa de
asfixiá-lo enquanto desferiam socos e pontapés. As sessões de tortura se repetiram por mais outras vezes enquanto a vítima encontrava-se nas dependências policiais. Em 1998 a corregedoria de polícia instaurou para apurar a conduta dos policiais.
Vítima: W. J., C. O. e D. J. A. F. - No dia 29 de setembro de 1997, foram as vítimas
abordadas por seis policiais militares na cidade de Itamaraju, Bahia, entre eles o
subcomandante local, sargento, cabos e soldados. As vítimas foram surpreendidas pelos
policias que não vestiam a farda. Os policiais estavam procurando quem tinha baleado
um policial e roubado um parque de diversão. Os rapazes foram levados para as
margens de um rio e várias tentativas de afogamento foram desferidas juntamente com
espancamentos. Foi instaurado na Procuradoria de Justiça da Bahia procedimento para
apuração dos crimes.
Vítima: M. B. A.- Em 01 de janeiro de 1997, a vítima foi presa por policiais militares lotados no município de Chupinguaia, Estado de Rondônia, e levado ao quartel da cidade. Lá foi trancado numa sala por três policiais fardados e torturado com choque elétrico e pancada. Em razão da tortura, perdeu 90% da audição. Foi ameaçado de morte, caso quisesse processar os policiais. O Ministério Público instaurou procedimento.
Vítima: S. B. S.: A vítima participou de um assalto a banco na cidade de Campina
Grande, Estado de Minas Gerais. A quadrilha rendeu policiais militares e civis
juntamente com a delegada da Polícia do município. Os policiais conseguiram reverter a situação e prenderam toda a quadrilha resultando, no entanto, na morte de dois
assaltantes. A vítima e os demais assaltantes foram detidos e levados para a cadeia
pública da cidade, onde sofreram todo o tipo de tortura como espancamento, choque
elétrico, telefone etc. Os policiais justificam suas atitudes como uma forma de revidar a ação da quadrilha. A vítima S. sofreu diversas sessões de tortura e através de advogado e do próprio Ministério Público solicitou a realização de exame de corpo e delito no IML, porém este não foi realizado.
Vítima: J. R. C. L.: No dia 14 de setembro de 1999, a vítima foi presa por policiais
militares, na cidade de Pedregal, Estado de Goiás, juntamente com um menino de 9
anos de idade. Não havia nenhuma denúncia formulada contra a vítima e tudo indica
que a mesma foi confundida pelos policiais. Os dois foram presos perto da residência de
J. R. e levados ao quartel da cidade do Novo Gama. No quartel, J. R. foi brutalmente
torturado. As sessões de tortura foram assistidas pelo menino que relatou o fato
posteriormente no Ministério Público. O menino descreveu como eram as dependências
do quartel. Após este depoimento, os policiais ensejaram mudanças no interior do
estabelecimento com o intuito de não confirmar a declaração do menino. Porém, a
perícia realizada confirmou a versão do menino. Dois dias após a detenção, foi
encontrado o corpo da vítima com marcas de tortura e sem os órgãos genitais, num
lugar ermo da cidade. O mesmo foi enterrado como indigente. A família e instituições
procuram durante meses o paradeiro da vítima. A elucidação do caso somente foi
possível porque a perita, responsável pelo exame cadavérico, identificou a autoria do
corpo. Os policiais nunca assumiram a detenção arbitrária. O Ministério Público de
Goiás teve uma atuação eficiente e pediu a prisão de nove policiais, que já eram
envolvidos em outros crimes contra a administração da justiça.
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