Rodrigo Martins
Um menino pobre, que vive com a mãe e os avós num apertado e miserável casebre, é sorteado para visitar uma fantástica fábrica de chocolates. Ao lado de outras quatro crianças agraciadas com o mesmo convite, ele encontra um encantador jardim de delícias na fábrica, com árvores carregadas de guloseimas e um enorme rio de chocolate. Essas aventuras foram narradas no livro Charlie and the Chocolate Factory, de Roald Dahl, publicado em 1964. A obra ganhou duas adaptações para o cinema, em 1971 e 2005. Fizeram tanto sucesso que ainda hoje os filmes inspiram propagandas direcionadas ao público infantil, como a de uma famosa marca de biscoitos comercializada no Brasil, que desvendou os segredos de seu “mundo encantado” num anúncio de tevê repleto de animações criativas.
Peças publicitárias como esta certamente despertam o interesse e aguçam a fantasia das crianças, mas têm causado séria preocupação para as autoridades da saúde. Principalmente quando os artifícios da tevê e da propaganda são utilizados para estimular o consumo de alimentos industrializados com baixo teor nutritivo, mas repletos de calorias, gorduras, sal e açúcares. Também conhecidos como junk food ou “alimentos porcaria”, esses produtos processados são considerados um dos principais responsáveis pelo avanço da obesidade no mundo, principalmente entre crianças e adolescentes.
Não por acaso a Organização Mundial da Saúde (OMS), ligada às Nações Unidas, aprovou, no início do ano, um documento elaborado por um grupo de cientistas, a recomendar que os governos nacionais adotem medidas para restringir ou disciplinar a publicidade de alimentos dirigida a crianças e adolescentes. No momento, a OMS organiza consultas públicas em diferentes regiões do mundo para refinar o documento, que deve ser submetido à Assembleia Mundial da Saúde, em 2010. Inicialmente previsto para junho, depois remarcado para agosto, um encontro em Brasília deve reunir líderes políticos de diversos países das Américas para discutir o tema.
A tentativa de disciplinar a publicidade dirigida a crianças e adolescentes, principalmente a de junk food, não é uma novidade. Alguns países europeus, a exemplo da Suécia e da Inglaterra, já proibiram completamente ou criaram fortes restrições. Consideram este público vulnerável, por não ter condições cognitivas de resistir aos encantos da propaganda ou de discernir claramente o entretenimento das estratégias de marketing. Outros países da Europa e os Estados Unidos optaram por fechar acordos de autorregulamentação com as grandes fabricantes de alimentos.
No Brasil, há dois projetos em tramitação no Congresso visando à regula-mentação da publicidade infantil. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também promete fechar o cerco aos anunciantes de alimentos. Após abrir a consulta pública nº 71, em novembro de 2006, a entidade propôs a proibição completa de anúncios de produtos com altor teor calórico na tevê entre 6 da manhã e 10 da noite. Pretende ainda obrigar os anunciantes a colocar mensagens sobre os riscos do produto à saúde, semelhante ao que existe nas propagandas de cigarro. Ao ver o anúncio de um chocolate, por exemplo, o espectador poderia se deparar com um alerta: “Este alimento possui elevada quantidade de açúcar. O consumo excessivo aumenta o risco de desenvolver obesidade e cárie dentária”.
“Os próximos passos são convocar uma audiência pública, para coletar novas contribuições à proposta, e depois submeter o documento à aprovação da diretoria colegiada da Anvisa”, explica a advogada Maria José Delgado Fagundes, gerente de monitoramento e fiscalização de propaganda da agência. “O processo deve ser concluído até o fim do ano. Trata-se de um tema de extrema relevância, se levarmos em conta que 69% das mortes no Brasil são causadas por doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e cardiopatias, decorrentes muitas vezes da obesidade.”
A principal discussão no Congresso, hoje, gira em torno do Projeto de Lei 5.921, de 2001, apresentado pelo deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). O texto original proibia a publicidade de produtos destinados a crianças. Mas, em 2008, a então deputada Maria do Carmo Lara, hoje prefeita de Betim pelo PT, conseguiu aprovar na Comissão de Defesa do Consumidor um texto substitutivo do projeto. Permite a propaganda de qualquer tipo de produto, mas determina a proibição da publicidade e da comunicação mercadológica dirigida a crianças de até 12 anos, além de apresentar restrições à voltadas aos adolescentes. Os anunciantes de brinquedos, por exemplo, seriam obrigados a fazer anúncios para os pais, e não para as crianças.
O projeto ganhou a simpatia das entidades de defesa dos direitos da criança e do consumidor. Poderia entrar em votação no plenário da Câmara tão logo fosse analisado pela Comissão de Constituição e Justiça, mas terá de seguir um caminho mais longo, e tortuoso. “O lobby dos anunciantes e das indústrias conseguiu aprovar um requerimento para que o projeto fosse avaliado por outras duas comissões, onde pode ser completamente desfigurado. Não temos esperança de aprová-lo tão cedo”, comenta Isabella Henriques, coordenadora-geral do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana.
Outro projeto, apresentado neste ano pelo deputado Capitão Assumção (PSB-ES), prevê a proibição de venda casada de alimentos e bebidas com brindes e brinquedos. “Não aguentava mais ver meu filho de 2 anos e meio pedindo para ir ao McDonald’s ou para comprar uma Coca-Cola a todo instante. Ele não sabe nem dizer o próprio nome, mas conhece essas marcas”, comenta Assumção. Mas o projeto deve entrar na longa fila de proposições -legislativas sem a participação -do governo em sua concepção. A grande esperança dos defensores da regulamentação continua sendo a proposta da Anvisa, sujeita a menos interferências externas que o debate no Congresso.
Para Rafael Sampaio, vice-presidente da Associação Brasileira de Anunciantes, a proibição da publicidade seria um ato exagerado. “Acreditamos que a Anvisa não tem atribuição para legislar sobre publicidade e mesmo o Congresso teria de mudar a Constituição para permitir esse tipo de censura”, afirma. “A solução não é colocar as crianças e adolescentes à margem da sociedade de consumo, mas orientá-las a como participar dela de maneira sadia. A autorregulamentação da publicidade tem funcionado muito bem no Brasil, e também em países europeus e nos Estados Unidos. Enquanto continuar o debate com essas posições extremadas, dificilmente esses projetos vão sair do papel, até porque o lobby dos anunciantes, dos industriais e dos próprios meios de comunicação, que sobrevivem da verba publicitária, faria o impossível para adiar qualquer decisão.”
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, o Conar, diz adotar medidas de proteção às crianças desde 2006. Segundo a entidade, há um monitoramento minucioso das peças publicitárias e algumas restrições, como o fim dos apelos imperativos (do tipo “peça à mamãe para comprar”), foram adotadas.
Atualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em parceria com pesquisadores da Universidade- de São Paulo, trabalha num novo levantamento sobre a obesidade infantojuvenil no País, ainda sem previsão para a conclusão dos trabalhos, informa o professor Carlos Augusto Monteiro, do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP e um dos responsáveis pela pesquisa. Os últimos dados consolidados são de 2003, quando se verificou que 18% dos jovens do sexo masculino, com idade entre 10 e 19 anos, estavam com excesso de peso, índice mais de quatro vezes superior ao de 1975, data do primeiro levantamento do gênero. Entre as meninas da mesma faixa etária, a incidência de sobrepeso e obesidade duplicou nesse período, até os 15,4% verificados no último estudo (ver gráfico).
“Em praticamente todos os países do mundo, a obesidade tem crescido em maior ou menor escala. Em que pese o fato de o homem moderno ser bem mais sedentário, dada a automatização das atividades e as opções de lazer sem esforço físico, um dos grandes responsáveis pelo agravamento desse problema é o consumo de alimentos processados, que em sua imensa maioria possuem baixo teor nutritivo e excesso de gordura, sal, açúcar”, avalia Monteiro.
Para o especialista, a iniciativa de se restringir a publicidade de alimentos dirigida a crianças e adolescentes é benéfica, pois pode conter o consumo exagerado desses produtos industrializados. “Quase não vemos anúncios na tevê de frutas e verduras, pois a margem de lucro é infinitamente mais baixa que as de produtos processados, que podem imprimir uma marca no rótulo ou na embalagem.” Além disso, Monteiro demonstra preocupação com o crescimento do consumo de junk food no Brasil, confirmado pelas pesquisas de orçamento familiar do IBGE.
A aquisição de alguns produtos, como embutidos, biscoitos e refrigerantes, aumentou de 100% a 200% entre 1996 e 2003, afirma Monteiro. “O consumo de alimentos industrializados no Brasil ainda é bem inferior ao verificado em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, ou mesmo emergentes, a exemplo do México, onde a cultura do fast-food já é mais forte que a alimentação tradicional. Isso evidencia que o consumo desse tipo de produto tem potencial de aumentar no País, com graves consequências à saúde.”
Outro dado preocupante foi revelado em junho de 2008. Uma pesquisa feita pelo Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB) constatou que 72% da publicidade de alimentos chamava a atenção para guloseimas e fast-foods. Os pesquisadores analisaram mais de 4,1 mil horas de gravação de dois canais de tevê abertos (Globo e SBT) e dois da tevê a cabo (Cartoon Network e Discovery Kids). Também investigaram dezoito revistas. “O mais preocupante é que 44% da propaganda de alimentos era voltada ao público infantil, o mais vulnerável à publicidade”, afirma a nutricionista Regina Monteiro, coordenadora da pesquisa.
O fenômeno é mundial. No início de maio, o Cancer Council NSW, da Austrália, apresentou os resultados preliminares de um estudo em onze países desenvolvidos ou emergentes, incluindo o Brasil. O estudo revela que os anúncios de junk food ocupam dois terços da publicidade veiculada na tevê nos horários destinados aos programas infantis. “Há muita preocupação com a influência que o mercado de alimentos não saudáveis exerce sobre a obesidade infantil e vários governos relutam em regular o setor”, afirmou a nutricionista Bridget Kelly, uma das coordenadoras da pesquisa, durante o Congresso Europeu de Obesidade, realizado em Amsterdã, em maio.
Dados da OMS comprovam a tendência de crescimento da obesidade em todo o mundo. Em 2010, a entidade estima que mais de 45% da população dos Estados Unidos com mais de 15 anos estará com excesso de peso. No Brasil, 24% da população adulta feminina e 12% da masculina estarão nas mesmas condições (gráfico à pág. 32). A obesidade precoce também assusta. De acordo com a International Obesity Task Force (IOTF), sediada em Londres, existem mais de 177 milhões de crianças e adolescentes obesos ou com sobrepeso no mundo, dos quais 22 milhões são crianças com menos de 5 anos.
Apenas na Inglaterra, ainda de acordo com a IOTF, a porcentagem de crianças obesas ou com sobrepeso varia de 22%, entre os garotos, e 27%, entre as meninas. Diante do problema, a Ofcom, entidade que regula a mídia britânica, proibiu a veiculação de qualquer tipo de publicidade de alimentos calóricos e gordurosos na tevê nos horários de programas voltados aos jovens de até 16 anos.
“Foi um passo importante, mas entendemos que todo e qualquer tipo de publicidade infantil deve ser banido, porque não é apenas a publicidade de alimentos que causa efeitos nocivos”, defende Isabella, do Instituto Alana. “Os anúncios tentam criar identificação com os pequenos consumidores com animações, celebridades infantis, oferta de brindes. Até propagandas de inseticidas se valem desses artifícios.”
Um estudo divulgado pelo instituto TNS InterScience, em 2007, revelou que 71% das mães admitiram atender aos apelos dos filhos na compra de produtos. “Os pais viram reféns da vontade das crianças, facilmente manipuladas pela propaganda”, emenda Isabella. Por essa razão, ela defende que a publicidade se volte apenas aos adultos.
É o mesmo entendimento do Conselho Federal de Psicologia (CFP). “É indiscutível que os meios de comunicação têm um forte impacto na formação das crianças e adolescentes. E a propaganda, além de estimular o consumismo exagerado, incute a ideia de que eles só serão valorizados, reconhecidos e paquerados se adquirirem o produto da marca tal”, avalia Humberto Verona, presidente do CFP. “Isso causa sofrimento a quem não tem poder de compra. O apelo às questões afetivas da publicidade gera sensação de exclusão social e há estudos que indicam a relação com o recrudescimento da violência.”
Fonte: Carta Capital
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