Infância Urgente

quinta-feira, 12 de março de 2009

ESCOLA PERMANENTE DE FORMAÇÃO DE MILITANTES

Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente-SP
FEDDCA-SP

Introdução
Não temos tido vida fácil, como militantes do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente-SP. Atingidos por uma ação segregatória, acusados de radicalidade excessiva, acuados por uma cultura cada vez menos favorável à doutrina da prioridade absoluta presente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), temos tido atitudes mais reativas frente às graves e violações de direitos do que conseguido criar condições para um enfrentamento cultural e político de maiores proporções. A duras penas, temos sobrevivido apesar da escassez de recursos materiais e humanos: não é sem lutas que preservamos nosso espaço e a nossa unidade de concepção e ação vanguardista, marcas, por excelência, de nossa condição de um verdadeiro movimento social. São unânimes e reiteradas, entretanto, as considerações de que precisamos superar as dificuldades para manter acesa a luta coerente pautada na defesa da infância e da adolescência plenas.
Não somos ingênuos de acreditar, narcisisticamente, que estamos sós em nossas dificuldades. Elas somente podem ser compreendidas com um olhar mais amplo sobre a sociedade brasileira. Martins (2000), num texto memorável que associa a análise da formação histórica do Brasil com uma antropologia de nosso cotidiano, mostra como o legado colonialista associou-se ao capitalista para a acumulação de dívidas sociais seculares, num jogo de contradições que, ao longo da história, tornaram o Brasil um expoente da modernidade anômala. Um exemplo dessa desigualdade são as grandes corporações financeiras que se valeram do trabalho escravo no seu processo de expansão. Comparando o Brasil à Inglaterra, Martins destaca que o mundo brasileiro é mais o mundo da fé e da festa do que

o mundo das regras nas relações de trabalho, do direito costumeiro e dos privilégios ligados às corporações profissionais. Sociedade originada da escravidão e da desigualdade étnica e social institucionalizada nos estamentos [...] nunca dispôs de um código de direitos sociais. Foi mais a sociedade do castigo e da privação do que a sociedade do privilégio. [...] E mesmo o Brasil independente, até o Brasil republicano, foi e tem sido lento e tardio no reconhecimento da igualdade social de todos, negros e brancos, mulheres e homens, pobres e ricos. (Martins, 2000, p.33)

Somos país religioso de subempregados e indigentes, porém com uma elite que obtem todas as conquistas da sociedade moderna. Sociedade lenta no reconhecimento dos direitos humanos em geral e das crianças em particular, expõe-nas a inúmeros abusos nos espaços institucionais, à violência física e mental que imprime a marca da humilhação e da subalternização, devidamente escudada por instituições e uma indústria cultural que não deixa brechas para que as classes populares organizem-se por si mesmas, e reflitam sobre sua própria condição. Modernidade cuja formação deve ser lida pelo seu avesso colonial, fundamentada no jesuitismo do ensino religioso e numa superexploradora disciplina burguesa. Nosso Estado hoje, na sua cúpula, não é tão diferente daquele fundado sobre as sesmarias e capitanias hereditárias: é síntese de público e doméstico, remodelado como modernidade que se caracteriza pela confusão entre público e privado, no qual se criou uma democracia de padrões liberais que reserva direitos puramente imaginários para a população mais pobre.
A história recente da industrialização brasileira criada sobre nosso legado colonial em nada melhorou o acesso aos bens socialmente produzidos. O Estado de São Paulo, centro dessa industrialização, não foge à regra: em 2005 tínhamos um PIB de R$ 727 bilhões. Os 10% mais pobres da população paulista vivem com um salário mínimo/mês, enquanto os 2,3% dos mais ricos usufruem de mais de 20 salários mínimos/mês. Os movimentos sociais, cada vez mais acuados, sofrem com os governos neoliberais do Estado (também em muitos municípios e mesmo na Federação). Verifica-se que tênis uma educação pública reprodutora uma desigualdade social banalizada, vista como direito inalienável dessas elites, as quais perguntam, ameaçadoras, quando ameaçamos o seu poder: "Sabe com quem está falando?!". Traço de uma sociedade de cultura autoritária. Essa frase, tão freqüente em nosso dia-a-dia, pode ser encarada também como uma síntese da arbitrariedade e do preconceito presentes nos espaços da infância. Escolas, unidades básicas de saúde, hospitais, colocam profissionais e população atendida num conflito direto, em que o pequeno poder do profissional parece ser o prêmio de consolação para a carência de bons salários e condições de trabalho. Muitos deles, podem ser de algum modo envolvidos por nossa Escola de Formação.
O ranço de tempos da ditadura não nos deixou, mas parece ter adquirido novos contornos criminalizantes, quase tão perigosos e sinistros quanto o do regime militar, embora mascarados por uma pseudo-democracia na qual a única expressão realmente indecorosa é "direitos humanos". Revistas de grande circulação, jornais impressos e televisados fazem o monopólio da informação para que a frase clássica de Margaret Thatcher "There is no alternative!" (traduzindo: "Não há alternativa!") seja a um só tempo a epígrafe, o provérbio e o decálogo neoliberal. "Não há alternativa!", ouvimos em nosso cotidiano. "Todos esses bandidos no paredão!". "Não há alternativa!", "vamos linchar esses assassinos de criança!". Ideologia difusa, perpetuadora da dominação de uma classe sobre outra, de profissionais sobre usuários e de adultos sobre as crianças e adolescentes, pela qual as graves violações de direitos da criança são vistas como loucura individual, sem que o cidadão perceba suas verdadeiras determinações históricas, políticas e sociais,.
O FEDDCA-SP, entre tantos outros movimentos sociais ainda vivos apesar das dificuldades, não subscreve esse decálogo cansativo e monocórdico. Temos muitos simpatizantes, nossos eventos são bem freqüentados; somos referência para outros Fóruns e conquistamos a confiança de várias entidades. Mas é visível que nossa concepção de criança e adolescente, tão presente em reuniões freqüentadas por poucos e, não raro, oculta num jargão difícil de compreender, acaba sendo fragmentada ao transcender os muros dos espaços onde os militantes vem se reunindo ao longo da história deste Forum. Tal como demarcado no nosso I Congresso e Assembléia Geral, em julho/2007, carecemos de um processo formativo mais consistente, durecionado não só para simpatizantes, mas para militantes que enriqueçam e multipliquem nosso raio de ação. Dado o perfil acrítico da discussão política no cotidiano brasileiro, que encaramos maciçamente em todos os espaços da sociedade, percebemos que o oprimido, como dizia Paulo Freire, é mão direita do opressor ao enxergar-se com os olhos dele. E a reprodução acrítica da ideologia burguesa do individualismo e do sucesso não é meramente uma questão de nível de escolaridade: o autoritarismo tem raízes profundas em nossas instituições de ensino superior. Mormente em São Paulo, o grande centro das universidades privadas e da concentração de capital(esta frase parece-me equivocada, pois o público não é o lugar dobom e o privado do ruim, a realidade émais complexa. Eu retiraria esta frase.. O desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a luta de classes, a exploração contra o trabalho, o socialismo e a infância é essencial para a construção da luta dos trabalhadores, sujeitos de sua historia. É fundamental para a sistematização e produção de conhecimentos e não se deixar enganar pelo canto das sereias governamental que, periodicamente, age para cooptar os indivíduos face seus interesses individuais e desmobilizar a articulação do FEDDCA-SP.
É com base nessa dificuldade que o presente projeto defende a criação de uma Escola de Formação Permanente. Por que Escola Permanente? Porque formar politicamente não é ensinar discursos, mas, com paciência histórica, atravessar resistências nutridas por um autoritarismo unidimensional no qual o discurso conformista tornou-se quase uma segunda pele para toda a gente. É criar espaço para a dúvida e a reflexão, sem impor idéias, mas permitir que uma dinâmica participativa e uma proposta pedagógica fundada no auto-conhecimento como sujeito histórico e no conhecimento da sociedade brasileira impulsionem outras trajetórias.
Propomos, então, como objetivo geral de nossa Escola de Formação: promover a circulação, debate e construção de idéias sobre a infanto-adolescência, tendo como diretriz a práxis do FEDDCA-SP. Deste eixo, partem alguns conteúdos fundamentais, que, sugerimos, sejam trabalhados na ordem abaixo disposta:
1. Aula Magna: A importância da militância
2. Processo histórico da construção do Estado Brasileiro
3. Conceito de práxis, ideologia, participação política e movimento social
4. Educação
5. Historia e legislação da infância e da adolescência no Brasil
6. Infância, adolescência, desenvolvimento e saúde mental
7. Violência e etnia
8. Participação Popular e mecanismos de controle social
9. Políticas sociais: conservadorismo e rupturas

A metodologia de nossa Escola de Formação deve se inspirar em práticas e movimentos sociais de esquerda, visando à adesão ao plano de estudos, o acolhimento e a permanência dos participantes ao longo do processo de formação, com a utilização de dinâmicas de grupo, textos provocativos e de fácil compreensão, enfoque dialógico, envolvimento dos participantes no registro e continuidade do trabalho grupal, a troca de conhecimentos, memórias e de bibliografia, com foco no diagnóstico da situação da infanto-adolescência e na sistematização. Sugerimos, então, a constituição de uma biblioteca, impressa e eletrônica, do FEDDCA, para consulta dos participantes.
Quanto à avaliação será processual, realizando-se ao fim de cada encontro, de modo a melhor conhecer os participantes e realizar uma auto-crítica, ajustando futuros projetos de formação. Todo o processo precisa ser cuidadosamente documentado. O grupo deve, entretanto, permanecer sempre aberto à integração de novos participantes.
Os recursos materiais e humanos serão adequados conforme o assunto, as dinâmicas e a bibliografia proposta. O local de nossa Escola de Formação será o Sindicato dos Psicólogos, na medida de suas possibilidades e aprovação deste projeto. Esta é uma proposta participativa, em que todas as entidades e militantes do FEDDCA-SP podem contribuir com o seu aprimoramento.
Referências sugeridas
ARIÈS, P. História Social da Infância e da Família. Rio de Janeiro, 1986.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 5. ed. São Paulo: Ática, 1995a. 440 p.
________. O que é ideologia. 39. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995b. 125 p. (Primeiros Passos)
FREIRE, Paulo. Educação bancária e educação libertadora. In: PATTO, Maria Helena Souza (Org). Introdução à psicologia escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. (Biblioteca de Psicologia e Psicanálise)
____________. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
____________.Pedagogia do oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
GONÇALVES FILHO, José Moura. Humilhação social - um problema político em psicologia. Psicol. USP, 1998.
KUHLMANN Jr, M. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. 210 p.
________________. Histórias da educação infantil brasileira. Revista Brasileira de Educação, Nº 14. 2000. Disponível online: http://www.anped.org.br/rbe14/02-artigo1.pdf. Acesso em 22/07/2005.
MARTINS, J.S. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. 209 p.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos esolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores)
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998.
PRIORE, M.D. História das crianças no Brasil. 2 ed. SP: Contexto, 2000. 444 p.
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição Federal.
___________________________________. Lei 8.069 de 13/07/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.
SARMENTO, M.J. A globalização e a infância: impactos na condição social e na escolaridade. GARCIA, R.L.; LEITE FILHO, A. (Orgs.) Em defesa da educação infantil. 1. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.13-28 (O Sentido da Escola)
Trindade, José Damião Lima. História Social dos Direitos Humanos. 2ª Ed. São Paulo, Peirópolis, 2008.

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