Podemos concluir que a negligência flagrante ocorrera por, pelo menos, duas vezes neste caso. Ademais, pode-se perceber total desatenção por parte da instituição responsável, por ora, por seu “processo sócio-educativo”, o que fora realizado com a evidente conivência do Poder Judiciário.
O patente equívoco aqui narrado expressa o tratamento displicente dispensado aos jovens submetidos a internação na Fundação CASA e confirma nossa tese de que tal instituição tem servido unicamente para o depósitos de seres humanos em condição peculiar de desenvolvimento, e consequentemente, e que há em seu manejo real descompromisso com a implementação da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Uma das testemunhas ouvidas no caso do citado adolescente, o médico do conveniado à Fundação CASA, NUFOR – Núcleo de Estudos em Psiquiatria Forense e Psicologia Forense do Hospital das Clínicas, Dr. Fábio Beites, psiquiatra que atendeu Ronaldo, também ouvido perante o órgão correicional, disse que “somente após a tentativa deste em se suicidar é que começou a tratar do referido adolescente”, disse, ainda que “encaminhou o adolescente para o Pronto Socorro da Lapa com vistas à internação; que a internação de Ronaldo se fazia necessária em razão de concreto risco de suicídio, já que sua atitude não era simplesmente de manipulação, isto é, demonstrava um total descaso com sua própria vida, um total descaso com o mundo, como se não mais quisesse ninguém perto dele; (...) que, muito embora se tratasse de um caso de internação psiquiátrica, não foi possível que a mesma fosse efetivada; que, diante disso, foi providenciada uma ‘internação forjada’, foi improvisado um local no anexo ‘CEU’ (...) já que seu caso reclamava uma maior atenção, ou seja, um cuidado mais acentuado”. Esclareceu, ainda, em relação ao suicídio que “existem dois quadros possíveis: um, quando a pessoa adota uma postura suicida para chamar a atenção, então o faz esporadicamente, e outro, quando o comportamento da pessoa chega a ser de frieza, mas demonstrando sempre o potencial suicida; que este último caso é o mais difícil de ser manejado, ou seja, detido a tempo; e o quadro psiquiátrico do adolescente Ronaldo Alves Cordeiro se enquadraria neste último caso”.
Portanto, o fatídico episódio ocorrido era não somente previsto, como documentalmente diagnosticado, e, mesmo assim, nenhuma providência emergencial e assistencial foi tomada a fim de evitar a sua trágica ocorrência.
Aliás, para casos análogos a este o ECA não se olvidou em tratar, contendo expressa determinação no § 1º do art. 112 que “a medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração”, e, ainda, no seu § 3º determinou que “os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado as suas condições”.
Isto significa que quando da imposição de quaisquer das medidas sócios-educativas, levar-se-á em conta a capacidade do adolescente em relação ao seu cumprimento adequado, devendo os adolescentes portadores de problemas de ordem mental serem tratados em local especializado, de outra forma não deveria ser em face da proteção integral que são merecedores todas as crianças e adolescentes. Não se apresentar nenhum especialista no assunto para saber que instituições tipo FEBEM não se prestam a oferecer o referido tratamento especial, e a todos adolescentes que se diagnosticar a presença de doenças mentais, deve o Estado assegurar o seu devido acompanhamento por especialista em adequado local, não restando, portanto, motivação que sustente sua permanência na Fundação CASA.
No entanto, as decisões judiciais dos magistrados que aplicam ou que acompanham a execução de medidas sócio-educativas proferidas em casos de autores de atos infracionais com problemas de ordem mental, demonstram que se parece desconhecer – ou pior, simplesmente ignoram – tal proceder legal, pois historicamente vêm não somente compactuando como também determinando a permanência de adolescentes com tal problemática nas unidades da antiga FEBEM, o que faz com que cotidianamente os defensores dos jovens recorram aos Tribunais Superiores, a fim de corrigir tamanho constrangimento legalmente inaceitável.
Por medidas sócio-educativas compreendem-se ações que propiciem, ao adolescente desenvolvimento, educação, aprendizagem, enfim, ações que possibilitem sua sociabilidade saudável na sociedade com mais recursos para superar e transformar os fatos que o levaram a encontrar-se em conflito com a lei. Mas, no entanto, certamente, tal intento não será alcançado se não conseguirmos tratar o adolescente como sujeito de direitos e apresentar uma proposta efetiva de reconhecimento de sua cidadania. Num ambiente insalubre, com tantas privações, sem acompanhamento adequado, sem condições de socialização que levem ao desenvolvimento salutar e de acordo com a dignidade que merece por sua condição humana, somente se conseguirá reproduzir a violência a que estão sendo expostos arbitrariamente.
É impreterível que o Estado brasileiro, em suas três instâncias de governo (Executivo, Legislativo e Judiciário), promova a superação deste modelo FEBEM/FCASA a que são submetidos os adolescentes internados, buscando implantar uma política sócio-educativa a partir do paradigma dos direitos humanos, que afirme o adolescente autor de ato infracional como sujeito de direitos, respeitando-se a sua peculiar condição de desenvolvimento, independentemente de ter cometido infraçõesPara tanto, é imprescindível que essa política privilegie a formação de competências e valorização dos profissionais do sistema; o estrito cumprimento da legalidade; a elaboração de um modelo pedagógico que promova a cidadania do adolescente; a adequação arquitetônica dos estabelecimentos; a garantia do devido processo legal e da ampla defesa, bem como a transparência e abertura para o controle social do sistema, além de investimentos públicos necessários para a satisfação desses objetivos, na busca da implementação deste modelo sócio-educativo, garantindo a esses adolescentes, um novo projeto de vida e de sociedade.
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