Infância Urgente

segunda-feira, 18 de maio de 2009

campo de extermínio

José Rabelo

“Um campo de concentração”. Essa foi a definição que o vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Fábio Feitosa, encontrou para tentar traduzir o que viu, na última terça-feira (12), após visitar a Unidade de Internação Socioeducativa (Unis), em Cariacica. A direção da Unis - que vem sendo alvo de uma série de denúncias de irregularidades por parte de membros dos conselhos de direitos e de organizações da sociedade civil do Estado – assistiu passivamente à execução de dois adolescentes, mortos com requintes de crueldade por outros internos da unidade em menos de 30 dias. Coincidentemente, essa foi também a mesma expressão (campo de concentração) utilizada pelo presidente do Conselho Nacional de Política Prisional e Penitenciária, Sergio Salomão Shecaira, após visitar os presídios de Viana (Cascuv e Novo Horizonte). Nesta sexta-feira (15), Salomão entrou com pedido de intervenção no Estado, diante das condições desumanas que se encontram os detentos do sistema presidiário capixaba.

Na Unis, Elber de Souza, que acabara de completar 17 anos, morreu na madrugada do último dia 6. O adolescente de Boa Esperança (norte do Estado) foi executado por outros internos de forma brutal. “Eu imaginava que o meu filho estava ali para ser recuperado, não esperava que ele fosse sair de lá dentro de um caixão. Isso é muito doloroso para uma mãe”, lamentou a mãe do adolescente.

O mesmo destino trágico teve Julielvis Michaela Salustriano, 16 anos, que também foi espancado cruelmente por outros adolescentes da Unis, no último dia 8 de abril. Julielvis não resistiu aos ferimentos e morreu no dia 14 de abril, após ficar uma semana na UTI do hospital São Lucas, em Vitória.

Tentando mascarar os acontecimentos, que poderiam desgastar ainda mais a imagem do governo, que já anda bem manchada quando o assunto é direitos humanos, na segunda-feira (11), véspera da vinda do Conanda ao Estado, o Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases) – responsável pela Unis – transferiu às pressas mais de 120 adolescentes para o Centro de Detenção Provisória de São Domingos do Norte, recém-construído para abrigar adultos do sistema prisional.

As manobras desesperadas do governo faziam parte de um conjunto de medidas para tentar esconder dos membros do Conanda as arbitrariedades cometidas na Unis, que são flagrantes de desrespeito às diretrizes do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), ao Estatuto da Criança e do Adolescente, aos direitos humanos, ao princípio constitucional de sujeito em condição peculiar de desenvolvimento e à dignidade humana, como muito bem definiu o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Bruno Alves de Souza.

Ainda na terça-feira (12), às 14h30, os membros do Conanda, inclusive com a presença da subsecretária de Promoção dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente, Carmen Silveira de Oliveira, participaram da solenidade de inauguração do Centro Socioeducativo de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei (CSE). A inauguração do CSE – unidade modelo com capacidade para abrigar 80 adolescentes - era a última cartada do governo para tentar desviar a atenção dos integrantes do Conanda e evitar o vexame de uma visita à Unis. A missão da diretora-presidente do Iases, Silvana Gallina, era convencer a equipe do Conanda de que o Estado está empenhado em construir um novo modelo de atendimento socioeducativo para os adolescentes que cumprem medida de internação. E que as mortes na Unis, como ela mesma afirmou à imprensa no dia da inauguração, eram uma página que precisava ser virada. Faltou Gallina combinar isso com as mães dos dois adolescentes mortos, que abaladas e revoltadas com a perda dos filhos, avisam que irão processar o Estado, pedindo na Justiça uma reparação.

No entanto, todas as manobras para driblar os membros do Conanda foram em vão. Após a inauguração da nova unidade – que ironicamente é vizinha à Unis –, os membros do Conanda não deixaram por menos e fizeram questão de conhecer as instalações da unidade que foi palco das cenas de horrores dos últimos dias.

Feitosa, que participou da visita, disse que as condições da unidade são totalmente inadequadas. Ele destacou que o ambiente é precário para se desenvolver qualquer processo de ressocialização. “O local é insalubre, há superlotação, não são oferecidas atividades pedagógicas, educacionais, esportivas, culturais ou profissionalizantes aos adolescentes, que permanecem ociosos o dia todo. Sem falar que eles ainda mantêm dois contêineres com 17 adolescentes em cada. Essa situação é desumana. O local não oferece ventilação, é insalubre, enfim, totalmente inadequado. Aquilo me pareceu mais semelhante a um campo de concentração”, compara.

Para a subsecretária, praticamente tudo está errado na Unis. “Não estou me referindo aos padrões arquitetônicos do prédio, que são realmente ultrapassados. O mais grave é a situação de insalubridade do espaço. Certamente, esse prédio não receberia alvará de funcionamento da vigilância sanitária. A Unis apenas mantém os adolescentes confinados. Talvez, por um lado, as mortes dos dois adolescentes possibilitaram que essa realidade fosse desvelada”.

Denúncia

Chocados com o que viram, Feitosa e Lúcia Elena Santos Junqueira Rodrigues, coordenadora nacional do Atendimento Socioeducativo de Adolescentes em Conflito com a Lei, agendaram uma reunião, em caráter de urgência, com o titular da Vara da Infância e da Juventude de Vitória, juiz Paulo Roberto Luppi (foto).

Na tarde da quarta-feira (13), os dois representantes do Conanda se encontraram com o juiz para colocá-lo a par da situação. Feitosa disse que, na conversa com Luppi, dois pontos foram apresentados como prioritários. O vice-presidente do Conanda alertou Luppi sobre o fato de vários adolescentes estarem na Unis por mais de 45 dias sem julgamento. Segundo Feitosa, esse é o prazo limite previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para se manter um adolescente em internação provisória. O outro ponto, continuou Feitosa, se refere ao grande volume de processos que estão parados ou andando com muita morosidade. “Há casos de adolescentes que estão dois ou três meses aguardando julgamento. Isso é ilegal, de acordo com o ECA”, ressaltou.

Além da morosidade do Judiciário, Carmen Silveira de Oliveira afirmou que outra hipótese levantada é a falta de defesa técnica. “Se o adolescente tem um defensor público ou um advogado dativo constituído pelo Estado para representá-lo, provavelmente essa situação de prazo expirado não ocorreria”.

Luppi admitiu aos membros do Conanda que há certa burocracia entre o Judiciário e a Promotoria. Segundo o juiz, é ai que os processos emperram. Luppi prometeu que irá promover um mutirão para acelerar os processos.

Superlotação desnecessária

Mesmo com a transferência às pressas de cerca de 120 adolescentes para o Centro de Detenção Provisória de São Domingos do Norte, na última segunda-feira (11), Feitosa afirmou que a Unis ainda abrigava, no dia da visita (12/5), 428 adolescentes – 400 meninos e 28 meninas. Ele disse que a situação de superlotação é patente, mas explicou que fica até difícil estabelecer um número de referência para determinar a capacidade de internação da Unis. “Do jeito que está não dá para estimar quantos adolescentes podem ser internados lá. Essa referência da capacidade já foi perdida há muito tempo”.

O vice-presidente do Conanda disse também que chamou a atenção da equipe o alto índice de adolescentes que estão internados por sanção. A internação por sanção se dá quando o adolescente descumpre uma medida de meio aberto, que pode ser a prestação de serviços comunitários ou a Liberdade Assistida. “Na Unis, 30% dos adolescentes estão internados por descumprir uma medida de meio aberto. Esse número é muito alto se comparado ao de outros estados. Cerca de 150 adolescentes estão nessa situação hoje na Unis. É um número muito alto”.

Ratificando a informação de Feitosa, a subsecretária ressaltou que a situação não acontece somente na Unis, mas em todas as unidades de privação de liberdade do Iases. Carmen de Oliveira disse que se as medidas de meio aberto não estão sendo cumpridas é porque está havendo falhas nesse acompanhamento. “Isso acontece porque simplesmente esse acompanhamento não existe ou as medidas não são aplicadas devidamente. Não basta aplicar a medida, é preciso que exista todo um trabalho de acompanhamento para que a medida seja efetiva. Com isso, podemos concluir que de cada 100 adolescentes internados no Espírito Santo, pelo menos 30 não precisariam estar cumprindo medida de privação de liberdade”, alerta.

Pesquisa

A partir de uma pesquisa realizada pelo Conanda em 2007, foi constatado que a aplicação e acompanhamento das medidas de meio aberto ainda estão distantes do ideal em todo o País. Entretanto, ela destacou, com base no estudo, que a situação do Espírito Santo é bastante grave. “À época da pesquisa, constatamos que apenas oito municípios do Espírito Santo mantinham programas de meio aberto. Para você ter uma ideia da gravidade da situação, Cariacica tem unidades de internação e ainda não oferece programas de meio aberto. E como se você construísse um hospital, mas não tivesse uma rede de atendimento básico à saúde”, compara. Ela ainda lembrou que o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome financia, desde 2008, a implantação de programas de meio aberto para municípios com mais de 50 mil habitantes. “É preciso que haja um esforço para se implantar urgentemente os programas de meio aberto nos municípios capixabas”.

Fechamento da Unis

Feitosa afirmou que não é possível fechar a Unis da noite para o dia, mas aponta que a adoção de algumas medidas emergenciais, como a maior celeridade nos processos, poderia, ao menos, amenizar a situação de superlotação na unidade. Entretanto, ele adverte que todas as medidas possíveis e necessárias devem ser tomadas o mais rápido possível para que a Unis seja fechada o quanto antes.

Os Conselhos de Direitos Humanos do Estado, a Pastoral do Menor e as organizações da sociedade civil vêm há anos pedindo o fechamento da Unis. Padre Xavier Paolillo, da Pastoral do Menor e membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos, costuma visitar as unidades de internação de adolescentes a cada 15 dias. Ele confirma que a situação da Unis é realmente absurda e insustentável. “Não se desenvolve na Unis nenhum trabalho socioeducativo. Os meninos ficam na ociosidade e isso só gera mais violência. A unidade hoje está dividida em gangues. É um verdadeiro barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento. Já enviamos vários ofícios ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, mas nada acontece. Não poderia ser diferente, uma vez que a atual presidente do Conselho, Silvana Gallina, acumula também o cargo de diretora-presidente do Iases. Essa situação é muito complicada e inaceitável”.

De acordo com o padre Xavier, os conselhos de direitos e as organizações da sociedade civil estão se articulando para rever essa situação. Ele disse que o Neca (Núcleo de Estudos sobre a Criança e o Adolescente), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), junto com outras organizações, está questionando a permanência de Silvana Gallina à frente do Conselho.

Como defende o padre e as organizações sociais de defesa de direitos, a permanência de Silvana Gallina à frente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente passa por uma questão ética. Fica difícil de acreditar que Gallina investigue todas as denúncias que estão sendo feitas contra a Unis com a devida isenção e puna com rigor os responsáveis. A constatação de irregularidades na Unis, consequentemente, atestaria que ela, como diretora-presidente do Iases é, no mínimo, co-responsável pelos descalabros cometidos na unidade, que funciona sobre sua gestão.

Para a subsecretária Carmen Silveira, a alternância de poder no Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e a paridade são prerrogativas previstas no ECA. “Teoricamente, como se trata de um conselho paritário, a sociedade civil tem direito a 50% dos votos. Não acredito que a posição da presidência do conselho se sobreponha à do coletivo, uma vez que o conselho é um colegiado. Concordo em parte com a sua argumentação, se considerarmos que o governo não deveria ser representado no conselho por um órgão executor. Isso daria, sem dúvida, mais isenção ao processo”.

Carmen Silveira lembrou que toda a responsabilidade sobre as irregularidades que acontecem há pelo menos oito anos no Estado, não podem ser creditadas à gestão de Silvana Gallina, que não está à frente do Conselho por todo esse período. Foi explicado à subsecretária, no entanto, que a prática de conduzir com mãos de ferro todos os conselhos estaduais é uma marca do governo Paulo Hartung, que garante a presidência aos gestores do governo ou coopta os representantes da sociedade civil, para garantir o controle integral da situação. Não fosse assim, a Unis, por exemplo, já teria sido fechada há muito tempo.

Carmen Silveira disse que se é verdade que não está havendo no Estado alternância nos conselhos, existe um equívoco na própria concepção do entendimento de qual é a verdadeira função de um conselho. “Se como você está afirmando há um arranjo para garantir que só os gestores governamentais se mantenham na presidência ou influencie as decisões do conselho, a paridade, fundamental para o funcionamento saudável de um conselho, fica comprometida”, concluiu.

Carta de Vitória

Após permanecer no Espírito Santo de 12 a 14 de maio para a realização da 174ª Assembleia Ordinária, o Conanda, após visitar as unidades de internação do Estado, constatou uma série de violações. A Carta de Vitória, divulgada nesta sexta-feira (15), exige apuração de responsabilidades sobre mortes e espancamento nas unidades de internação do Iases.

Na Carta, o Conanda pede providências ao governo do Estado do Espírito Santo e aos Conselhos Estadual e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, para a garantia de direitos dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.

Embora o colegiado tenha se reunido na capital capixaba de 12 a 14 de maio, para debater o enfrentamento ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes, a morte de dois internos nos últimos 30 dias na Unidade de Internação Socioeducativa (Unis), em Cariacica, e o espancamento de um terceiro adolescente na quarta-feira (13), no Centro Integrado de Atendimento Sócio-Educativo (CIASE), em Maruípe, Vitória, levou os conselheiros a incluírem em sua agenda a visita a unidades socioeducativas de meio aberto, semi-liberdade e internação.

Protocolada pela mesa diretora do Conanda na quinta-feira (14) junto ao Tribunal e à Procuradoria-Geral de Justiça do Estado do Espírito Santo, a Carta de Vitória, divulgada nesta sexta-feira, chama a atenção para as violações de direitos cometidos contra os adolescentes, sobretudo os da Unis.

De acordo com a Carta de Vitória, a maioria dos internos que tiveram contato com os conselheiros apresentava lesões corporais decorrentes da ação policial no ato de apreensão e da revista semanal realizada pelos agentes socioeducativos, atos estes que incluem desnudamento e agressões com cassetetes e projéteis de borracha.

Além disso, afirma o Conselho, os adolescentes não têm garantido o direito à defesa técnica, tampouco a informações relativas ao processo judicial e são comumente descumpridas as decisões judiciais de instâncias superiores em favor dos adolescentes.

Diante de tais violações, o Conanda pede que o governo do Estado apure responsabilidades sobre as mortes e o espancamento de internos e que entregue, em um prazo de 30 dias, um plano emergencial que garanta condições dignas para os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, com prioridade para a garantia dos direitos à saúde e à educação.

O documento também solicita que os governos municipais realizem a vistoria das condições prediais e sanitárias das unidades de internação, com auxílio dos órgãos estaduais competentes e que apresentem aos Conselhos dos Direitos, em prazo de 60 dias, planos de implementação das medidas em meio aberto, em especial na região metropolitana e municípios com mais de 50 mil habitantes.

Finalmente, é exigência do Conanda que a Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Espírito Santo instaure procedimentos administrativos para apurar as irregularidades na execução das medidas socioeducativas e que crie estruturas e procedimentos necessários para assegurar aos adolescentes o direito ao devido processo legal.

Estudo revela a perspectiva dos adolescentes autores
de homicídios sobre o processo de internação na Unis


Um estudo de mestrado realizado em 2007 pelos psicólogos Alexandre Cardoso Aranzedo* e Lídio de Souza, intitulado – “Adolescentes autores de homicídio: vivência da privação de liberdade e planos para o futuro” -, revela que a situação da Unidade de Internação Socioeducativa (Unis), do ponto de vista dos adolescentes, sempre foi um local incapaz de cumprir seu objetivo fim, que deveria ser a ressocialização. De acordo com Aranzedo, a vivência da medida socioeducativa de internação na Unis é descrita pelos adolescentes com adjetivos negativos como “inferno, sinistro, cadeia, esquisito e sofrimento”. Na opinião do psicólogo, as declarações dos adolescentes revelam que na maioria das instituições de internação de adolescentes do Brasil o aspecto coercitivo da privação de liberdade prepondera sobre o trabalho socioeducativo, fato que se repete na Unis, conforme aponta o estudo.

Aranzedo explica que foram entrevistados 16 adolescentes do sexo masculino, que aceitaram participar voluntariamente da pesquisa, todos na faixa etária de 15 a 20 anos, a maioria (sete) com 17 anos, sendo 75% autodeclarados como morenos ou pardos e negros; 15 eram autores de homicídio e um autor de latrocínio, (roubo seguido de morte); a maioria (nove) estava cumprindo medida sócio-educativa privativa de liberdade há menos de um ano. A maior parte dos entrevistados (12) era morador de municípios da Região Metropolitana da Grande Vitória; 13 tinham como nível de escolaridade o ensino fundamental incompleto. Apesar de pequeno, esclarece Aranzedo, o número de entrevistados representa aproximadamente 48,5% do total de adolescentes que cumpriam medida privativa de liberdade na instituição pela autoria de homicídio.

Motivações para o ato infracional

Para o psicólogo, o envolvimento dos adolescentes com a prática de atos infracionais não pode ser compreendido de maneira simplista. “A literatura informa sobre diversos fatores socioeconômicos, culturais e psicossociais, que tornam os adolescentes vulneráveis à criminalidade e à prática de atos infracionais”.

Ele classifica cinco fatores que podem motivar o envolvimento com o ato infracional. São eles: condição socioeconômica associada à falta de perspectiva de acesso a bens materiais através do mercado regular de trabalho; violência, agressões físicas e psicológicas contra o adolescente por familiares e agressões físicas do pai contra a mãe; expulsão do lar; abandono; ter sofrido humilhações; influência do grupo de pares, influência de pessoas da mesma idade, colegas, amigos, parceiros; destino e vocação, gosto ou crença de terem nascido para a vida do crime; e herança do crime e influência de familiares.

Citando o antropólogo Gilberto Velho, Aranzedo destaca que o apelo ao consumo aliado à gratificação social promovida pela inserção dos adolescentes em grupos ligados aos atos criminosos favorece, entre outras coisas, a notoriedade dentro e fora da região de moradia, a qual favorece o sucesso entre as mulheres e o temor entre os homens, temor este decorrente da posse de armas e do uso de drogas. De igual modo, continua o psicólogo, a também antropóloga Alba Zaluar, considera que o consumo de drogas, a ausência de oportunidades de trabalho no mercado formal, a sedução pelo poder que a posse de uma arma de fogo fornece e, sobretudo, a sensação de pertencimento e a proteção que uma quadrilha bem armada pode oferecer são elementos essenciais para se compreender o fenômeno da delinqüência juvenil no Brasil.

“Outro aspecto que não deve ser negligenciado por todos aqueles que estão dispostos a compreender a inserção de adolescentes no mundo do crime, se refere ao caráter subjetivo do ato em si, pautado numa conjuntura de desemprego; exclusão social, cultural e moral de grupos populacionais; exacerbação do apelo ao consumo; mudança de valor das hierarquias tradicionais e da autoridade familiar e comunitária”.

Homicídios dentro da Unis

Entre os 16 participantes do estudo, explica o psicólogo, 11 cumpriam a medida de internação pela primeira vez, 14 foram encaminhados à Unis em função da prática de homicídio, sendo um precedido de assalto, e dois foram internados por assalto e praticaram homicídios dentro da instituição.

“Os casos de homicídio ocorridos dentro da Unis nos levam a refletir, entre outras coisas, sobre a ineficácia do Estado em garantir os direitos humanos daqueles que se encontram sob sua tutela, principalmente no que diz respeito à sua integridade física, visto que “é dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança, conforme preconiza o Estatuto da criança e do Adolescente (ECA)”.

O pesquisador também ressalta que outro aspecto observado nos relatos dos adolescentes foram as relações tensas, conflituosas e ambíguas estabelecidas entre eles e alguns monitores, profissionais responsáveis pela garantia da segurança interna da instituição, locomoção interna e externa dos adolescentes, identificação e atendimento das demandas dos internos, de acordo com as normas da instituição e de suas possibilidades.

Em um dos depoimentos, um adolescente declara: “Eu pedi pra tirar ele de lá, aí teve um monitor que falou que só tirava ele de lá depois que tivesse morto. Pensô que nóis tava brincando, né [...] Ele não acreditou. Aí no outro dia tirou morto”.

Abaixo, a partir de alguns depoimentos colhidos pelos pesquisadores, dá para perceber a insatisfação dos adolescentes internados na Unis (todos nomes citados são fictícios):

Já me deu até vontade de se matar já. É muito sofrimento véio, eu não consigo ficar dentro de cadeia não. Não consigo não. Tem gente que via aí, nem comia direito, nem dormia direito. Sofrido (Júlio)

[...] porque aqui é um inferno, um sofrimento danado, ninguém merece isso aqui não. Aqui não é lugar pra ninguém não [...] sinistro, não tem nem como falar não, desse lugar não, todo esquisito (Cristiano).

[...] porque isso aqui não recupera ninguém, tá mais que na cara. É algo ilógico falar que a Unis vai reabilitar um adolescente (Ricardo).

Na avaliação do psicólogo, os depoimentos retratam a situação irregular a que os adolescentes estão sendo submetidos, aliada à inexistência de projetos pedagógicos, o que tem contribuído para que o processo de ressocialização não seja efetivado de acordo com o que é preconizado pela legislação. “Tanto no âmbito da aplicação de medidas socioeducativas, quanto no sistema prisional de adultos, se observa que os adultos entrevistados também representam o encarceramento como sofrimento, arrependimento, pagamento e sentimento de desrespeito. As avaliações negativas das medidas privativas de liberdade podem ser compreendidas a partir das práticas de intervenção adotadas nas instituições, mas também pelas características de seus espaços físicos, que não acompanharam a evolução da legislação sobre crianças e adolescentes ao longo do Século XX”.

Ele diz também que, além disso, enquanto se enfatizar o aspecto coercitivo das medidas privativas de liberdade, em detrimento da dimensão socioeducativa, o processo de socialização do adolescente estará fadado ao fracasso.

“Ao avaliarem a vida dos adolescentes, o ato infracional, a sociedade e a medida socioeducativa de internação e as demais políticas públicas, alguns entrevistados expressaram suas críticas ao modelo vigente. A vivência da privação de liberdade, vista como um inferno e sofrimento pelos entrevistados, tem contribuído para que a maioria almeje deixar a instituição e modificar as condições que contribuíram para a ocorrência do ato infracional ou, pelo menos, poder ficar próximo da família durante o cumprimento da medida”, finaliza o psicólogo.

* Alexandre Cardoso Aranzedo é doutorando em psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e professor de psicologia da Univix

(Fonte: Portal dos Direitos da Criança e do Adolescente)

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