RIO - A recente aprovação do Projeto de Lei nº 2A/2009, pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, que introduz, no âmbito municipal, o modelo de organizações sociais para as creches, pode significar um profundo retrocesso para a educação dos primeiros anos de vida. A proposta foi imposta à sociedade sem uma discussão prévia com os setores mais diretamente envolvidos: o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), sindicatos, pais e profissionais de educação. Trata-se de uma ação que afeta tanto a concepção quanto as práticas sociais hoje presentes no campo da educação infantil que vêm, ao longo dos últimos 20 anos, lutando por uma educação pública, gratuita, de qualidade e submetida a mecanismos de controle social estabelecidos por conselhos de direitos, fóruns populares, associações de pais, moradores, movimentos sociais, dentre outros.
A educação infantil brasileira desenvolvida em creches e pré-escolas e voltada para as classes populares sempre foi alvo de ações assistencialistas, tuteladas por organizações não governamentais, muitas delas vinculadas a interesses clientelistas e eleitoreiros. O controle sobre a mortalidade infantil e sobre o trabalho da mulher operária, principalmente na emergência da industrialização brasileira, marcou a institucionalização e o reconhecimento das creches como uma demanda social. Daí a forte presença de ideologias higienistas e moralistas que tratavam a criança ora como foco de problemas de saúde pública, ora como propensa a desvios morais concebidos, por estas ideologias, como inerentes às classes populares. Foi a partir da criação do Departamento Nacional da Criança, em 1940, e da Legião Brasileira da Assistência (LBA), em 1942, que as creches assistenciais se expandiram entre nós. Esta expansão ocorreu fundamentada em algumas premissas que articulavam um rígido controle sobre os hábitos da criança e de sua família a uma concepção meritocrática da vaga, condicionada ao trabalho da mulher fora do lar. As iniciativas eram organizadas por meio da parceria entre o Estado e organizações não governamentais encabeçadas, à época, pela própria LBA por meio de programas como creches-casulos, mães crecheiras e outros similares.
A LBA expandiu o atendimento às custas de um trabalho de péssima qualidade, em espaços mal adaptados, desenvolvido por leigos e utilizando a mão de obra local, das comunidades carentes, muitas vezes sem vínculos trabalhistas, como voluntários. Conhecemos, também, o legado que a LBA nos deixou: corrupção, desvio de verbas públicas, reinado das primeiras damas, clientelismos e crianças pobres sem uma educação de qualidade.
No campo da educação infantil, a luta dos setores populares organizados através de fóruns estaduais articulados pelo Mieib e de outros movimentos vinculados à defesa dos direitos da criança vêm obtendo significativos avanços tanto nas práticas sociais quanto na concepção do sentido de educar crianças pequenas, na faixa de 0 a 6 anos.
Os principais avanços podem ser destacados no reconhecimento da educação infantil como um direito da criança e como primeira etapa da educação básica, na exigência de formação adequada de magistério para o exercício da função de educar, na incorporação da educação infantil ao financiamento do Fundeb, no estabelecimento de parâmetros de qualidade para a educação infantil e na transferência de toda a educação infantil da área da assistência para a educação, incorporando-a aos sistemas municipais de ensino, dentre outros. Todas estas conquistas estão na base de um novo reconhecimento social para a educação infantil como etapa decisiva para o desenvolvimento emocional e cognitivo da pessoa e que deve ser desenvolvida por profissionais qualificados, em espaços adequados e dentro de uma política pública de educação que assegure tais condicionalidades.
Todas estas conquistas apontam para a ruptura com as práticas tradicionais de atendimento, centradas em ações isoladas, focalizadas e fragmentadas em instituições não governamentais sem uma proposta de unidade política. A experiência de transferência de serviços sociais para a esfera do que se convencionou chamar como o terceiro setor, no qual se inserem as organizações sociais, setor privado sem fins lucrativos muito familiar ao campo das creches para as classes populares, tem mostrado que a corrupção, a malversação do dinheiro público e a gestão fraudulenta lá se perpetuam com o agravante de que tais entidades, por não se constituírem como públicas, não se abrem aos mecanismos de controle social possíveis na esfera das políticas públicas.
Lamentamos que tanta luta e tantas conquistas estejam hoje ameaçadas com a criação de organizações sociais para as creches num município que foi palco de tantas manifestações populares, do movimento das fraldas pintadas, das passeatas pela inclusão das creches no Fundeb e que recentemente abrigou o 24º Encontro Nacional do Movimetno Interfóruns de Educação Infantil. Lamentamos que o direito a uma educação de qualidade esteja atravessado por esta proposta de transferência da responsabilidade pública da educação para entidades privadas, ainda que sem fins lucrativos. Lamentamos a insensibilidade dos nossos vereadores que, a despeito de toda a manifestação popular contrária a tal medida, tenham votado a favor.
Deise Gonçalves Nunes é professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do CNPq e coordenadora do Movimento Interfóruns de Educação Infantil
Um comentário:
O estado do Rio de Janeiro é um péssimo exemplo para a educação Infantil,nossos governantes precisam se informar do que vem acontecendo por exemplo no estado de São Paulo para melhoria da Educação Infantil e valorização dos profissionais que trabalham nesta área. Lamentável!!!
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