1. As Conferências do Estado com a Sociedade Civil no Brasil
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, tem se realizado conferências setoriais reunindo o Estado e setores da sociedade, sobre diversos temas, com o objetivo de fornecer diretrizes gerais e propostas específicas sobre as políticas públicas nas áreas relacionadas.
Teoricamente, tais conferencias temáticas seriam um avanço dentro da democracia representativa, permitindo uma interferência ativa de setores organizados da sociedade na elaboração de políticas de Estado. Claro que, tal como a própria Constituição de 1988, essas formas de “aperfeiçoamento” da democracia estiveram desde o início limitadas pela permanência de uma estrutura econômica e social desigual e perversa, baseada na concentração de renda e riqueza em geral nas mãos de poucos, e na pobreza e exclusão de muitos.
Entretanto, mesmo dentro dessas graves limitações, várias organizações e movimentos da sociedade esperaram que nas conferências pudessem defender, aprovar e ver efetivadas muitas de suas reivindicações históricas.
Hoje, podemos dizer que não é isso o que acontece. Em primeiro lugar, as conferências por vezes demoram muito a ser convocadas, e quando o são, tem que se limitar a avaliar e “remendar” políticas já definidas e postas em prática há muito tempo pelos diferentes níveis do Estado.
Em segundo lugar, as formas de convocação e representação das conferências nem sempre garantem que os setores mais interessados e relevantes, principalmente aqueles setores sociais que são objeto das políticas públicas, sejam predominantes entre os delegados.
Finalmente, e isso é o principal, não há nenhum mecanismo ou garantias que, nos casos onde as propostas e posições da sociedade civil sejam predominantes nas conferências, essas deliberações efetivem-se nas políticas públicas.
Esse último ponto tem sido evidente nas Conferências de Direitos Humanos, tanto ao nível estadual como nacional, pelo menos desde 2004. Onze Conferências Nacionais já foram realizadas desde 1996, sendo duas convocadas pelo poder público. Organizações defensoras dos direitos humanos e movimentos sociais têm conseguido aprovar importantes diretrizes e disposições bem específicas, mas praticamente nada sai do papel, e a situação de violação de direitos de amplas parcelas da população só tem se agravado no país nos últimos anos, sendo o próprio Estado, por ação ou omissão, o principal violador.
2. “Segurança pública” e democracia no Brasil
Todos esses problemas aparecem de forma muito clara na atual 1a Conferência Nacional de Segurança (Conseg), convocada pelo Ministério da Justiça para o final de agosto desse ano, e cujas etapas preparatórias já estão acontecendo em vários estados.
Antes de tudo, chama a atenção o fato de que, para um tema tão sensível (que se tornou foco de problemas e atenções nas últimas décadas) uma conferência setorial só seja convocada mais de vinte anos após o encerramento institucional da ditadura civil-militar implantada em 1964. Ora, quando falamos em segurança pública nos referimos necessariamente às polícias. Estas, seguindo a tradição na qual foram criadas, em pleno regime escravocrata há 200 anos atrás, foram das principais forças repressivas envolvidas em torturas, assassinatos e outras graves violações de direitos durante a ditadura.
Sem que tenha se procedido a investigações e julgamentos dos crimes e violações da época ditatorial, a segurança pública foi deixada nas mãos dessas mesmas instituições, cuja prática e ideologia, formada em tantos anos de violência e arbitrariedades, acabou sendo a efetiva “política de segurança” existente, na ausência quase total de debate público e planejamento sobre a questão.
O atual governo federal, afirmando buscar um “momento inédito na história da segurança pública brasileira”, continuou, entretanto, com a prática de convocar a sociedade para debater sobre fatos quase consumados, pois já em 2007 anunciou e passou a implementar o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), que o próprio “texto base” do Ministério da Justiça define como o “novo paradigma” que devem orientar as discussões e decisões da Conseg. Ou seja, as organizações da sociedade terão que limitar a discussão ao que já foi definido pelo poder público num plano de abrangência nacional já em execução, o que significa muito pouco sujeito a alterações, ou mesmo a ser rejeitado como um todo, como seria de se esperar numa conferência legítima e democrática.
Não é nosso objetivo aqui entrar em considerações detalhadas sobre o Pronasci, inclusive porque os movimentos sociais não têm qualquer possibilidade de alterá-lo, mas queremos registrar o que vem sendo observado e relatado por pessoas em diferentes locais do país: é impossível acompanhar realmente o que tem sido feito em nome e com os recursos do programa; investimentos relacionados à repressão tem sido privilegiados em face aos com caráter social (para citar um exemplo, a Secretaria estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro enviou em abril de 2009 seis novos projetos ao Programa, no valor de R$ 47.682.273,49; os que têm maior custo são a implantação de identificadores biométricos de armas nos batalhões da Polícia Militar -R$ 21.814.386,56; e a compra de um helicóptero blindado para a PM - R$ 12.069.719,05); em diversas localidades onde os recursos vem sendo implementados, tem havido várias denúncias de utilização político/eleitoral dos projetos.
Como se não bastasse isso, o regimento interno da Conferência, definido pelo Ministério da Justiça, estabelece critérios que tornam necessariamente minoritária a participação dos delegados não vinculados diretamente ao Estado. Dos 2095 delegados previstos, apenas 810 (aproximadamente 40%) serão constituídos de “representantes da Sociedade Civil eleitos nas etapas municipais e estaduais”; 1214 (quase 60%) serão divididos igualmente entre “representantes dos Trabalhadores da área de Segurança Pública eleitos em Etapas Estaduais e Municipais” (isto é, policiais, agentes penitenciários, etc) e “representantes do Poder Público (municipais, estaduais e federal) indicados”. Isso é uma distorção completa do conceito de conferências, visto que estas deveriam permitir que as proposições da sociedade sejam discutidas e aprovadas. Parece que, em se tratando de políticas de segurança pública, continua prevalecendo a posição estatal de que a sociedade não tem capacidade de traçar as diretrizes gerais para políticas públicas.
Mesmo minoritária de antemão, a participação da sociedade civil no processo da Conseg, em alguns casos, vem sendo deformada pela participação de organizações estranhas à discussão de direitos humanos e segurança. No Rio de Janeiro, por exemplo, surpreendeu-nos a participação da Maçonaria como representante da sociedade civil. Quando questionados sobre isso pela Rede e outras organizações, nos foi informado pelo representante do poder público que a Maçonaria participava por iniciativa e convite do próprio presidente da República.
3. A sociedade organizada e a segurança pública
Tendo em vista esta situação, infelizmente, não temos porque esperar que do processo oficial da Conseg resultem modificações nas políticas públicas de segurança que alterem o gravíssimo quadro de violações de direitos humanos, desrespeito e violência institucionalizada no Brasil. Mais do que isso, não vemos na Conseg legitimidade suficiente para poder se afirmar que suas resoluções representarão verdadeiramente a visão da sociedade brasileira sobre segurança pública. Mais do que nunca, tanto antes como depois da Conseg, será necessária a mais ampla organização e mobilização popular para que essa cruel e terrível realidade em que vivemos seja modificada.
Não obstante, respeitamos e valorizamos o empenho de diversos movimentos e organizações que vem promovendo Conferências Livres (previstas no regimento da Conseg, mas que não têm o poder de eleger delegados) e mesmo buscando intervir, contra a corrente das dificuldades, nas etapas preparatórias oficiais. Na medida do possível nós da Rede continuaremos acompanhando e participando destas iniciativas, mas desde já conclamamos a todas e todos a priorizarem as atividades, encontros e manifestações paralelas e independentes que possam ser organizadas.
Tanto nas etapas oficiais como nas atividades independentes, pensamos que o essencial deve ser exigirmos que o acúmulo de propostas e iniciativas dos movimentos sociais e organizações defensoras dos direitos humanos seja tomado com base para políticas públicas de segurança realmente democráticas, e inseridas num projeto maior de transformação profunda da sociedade. Mais concretamente, pensamos que devemos exigir que as resoluções das Conferências Nacionais de Direitos Humanos (as quais, como já observamos, em sua grande maioria, nunca saíram do papel) sejam incorporadas e não possam ser contraditas por nenhuma resolução da Conseg.
A realidade e o histórico que conhecemos, permite-nos prever, contudo, que tais exigências não encontrem acolhida por parte do Estado. Por isso, também conclamamos a todas e todos que ampliem e intensifiquem as denúncias internacionais das violações de direitos praticadas pelo Estado no Brasil, em particular a denúncia do não cumprimento e implementação de diversas resoluções das Conferências Nacionais de Direitos Humanos.
Um exemplo de mobilização da sociedade e de denúncia eficaz, que pode servir como base para as Possíveis mobilizações e atividades da sociedade organizada face à Conseg, é o Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus, iniciativa que reuniu dezenas de organizações de todo o país em dezembro de 2008 em São Paulo, e que se mantém como uma rede nacional de denúncias e mobilizações. Uma reunião das organizações comprometidas com a organização do Tribunal Popular, em fevereiro último no Rio de Janeiro, propôs a organização, tanto ao nível dos estados como nacionalmente, de conferências populares (independentes da Conseg), para demarcar mais claramente a visão dos movimentos face à concepção oficial e dominante de segurança pública no Brasil. Propomos que todas e todos comprometidos com a defesa intransigente dos direitos humanos abracem e encaminhem esta proposta.
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
Rio de Janeiro, maio de 2009.
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